Universidades públicas pagas? É constitucional?

Em países como Estados Unidos e Canadá, os alunos arcam com o pagamento de parcela de seus estudos em universidades públicas. No Canadá, por exemplo, arcam com cerca de 18% do custo efetivo do ensino



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Estudantes de universidades públicas com renda familiar superior a 30 salários mínimos (R$ 26,4 mil) poderão passar a pagar anuidade escolar. A proposta (PLS 782/2015) foi reapresentada no final de 2015 pelo senador Marcelo Crivella (PRB-RJ) e aguarda manifestação das comissões de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e de Educação, Cultura e Esporte (CE), cabendo a esta a votação final.

Pode e de fato à primeira vista nos aparenta algo inconciliável. Ou é público ou é privado, certo? A questão será estruturada para que possamos perceber se de fato a assertiva revela-se com tamanho a simploriedade. Ao final daremos o nosso parecer prévio, mesmo que desconhecendo os termos precisos da PLS sobredita, que não nos interessa, vale dizer, sob uma perspectiva constitucional de análise. Cuidaremos da ideia em sentido amplo, quando qualquer PL neste sentido estaria açambarcadas.

Ab initio, revela-se importante observar-se os termos do presente artigo:

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Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

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II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;

(...)

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V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;

§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

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§ 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

(...).

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Em nenhum momento menciona-se o ensino superior como dever do Estado. Observe-se que o nível obrigatório e gratuito é somente o ensino fundamental, prevendo-se em relação ao ensino médio sua “progressiva universalização” (com a redação alterada após a Emenda Constitucional nº 14 de 1996, pois originalmente o artigo referia a “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio”) e o ensino superior não é referido especificamente no mesmo artigo, somente tratando-se do acesso aos níveis mais elevados de ensino, deduzindo-se portanto a diferenciação de tratamento em relação ao ensino fundamental e médio.

Manifesta-se como inovação muito importante no campo do direito ao ensino fundamental a previsão do parágrafo primeiro do art. 208: “O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.” A carga de vinculação dos poderes públicos ao cumprimento desse artigo e os meios jurídicos para sua obtenção existentes ultrapassam a mera declaração do direito, existente desde 1934 mas carente de instrumentos adequados para promover uma ação contra o próprio Estado na eventualidade de atos omissivos na implementação desse direito, cabendo o uso de instrumentos como o MS coletivo, Mandado de Injunção, Ação Civil Pública pois aCF/88 tornou o acesso ao ensino obrigatório e gratuito um direito público subjetivo. A possibilidade de responsabilização da autoridade competente no caso de não-oferecimento do ensino obrigatório ou sua oferta irregular pelo Estado soma-se a esses mecanismos, reforçando a previsão do parágrafo primeiro.

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Artigo nuclear da discussão:

Art. 206 0 ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

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(...)

IV. Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais.

Embora se considere que os princípios expressos no art. 206 também se apliquem ao ensino superior, visto que o inciso não fez distinção, devem ser adaptados à definição e conformação próprias deste campo. A exemplo, tem-se a questão da universalização e da gratuidade do ensino, na qual se deve considerar que o ensino superior não pode ser tratado nos mesmos parâmetros do ensino fundamental e médio, visto que não é considerado nível obrigatório de ensino.Há a previsão de acesso aos níveis mais elevados de ensino condicionado às capacidades de cada um (conforme o inciso V do art. 208), havendo a necessidade de se tornar pública a forma e os critérios de seleção utilizados, tanto em relação às instituições públicas quanto privadas (obrigatoriedade explicitamente prevista no art.44II da Lei 9394/96- a Lei de Diretrizes e Bases da Educacao Nacional, e no Decreto2207/97, art. 12).

Jorge Miranda, referindo-se à Constituição Portuguesa, mas aplicável também àConstituição brasileira:

[...] ao passo que o ensino básico é necessariamente universal (por imperativo iniludível da Constituição) e o ensino secundário pode vir a ser (por decisão legislativa), o ensino superior não o é. Nem poderia ser, por causa das desigualdades naturais entre os homens (de aptidões, de vocações, de interesses) e reconhecê-las não vai contra o princípio, como se sabe. Tudo está em apurar tais capacidades mediante provas e formas objetivas, fiáveis e minimamente consensuais.

Em relação ao acesso ao ensino superior, deve-se portanto garantir que haja igualdade no acesso, a que fazem referência tanto os artigos 5o quanto o 206I daCF/88, para que seja adequadamente interpretada a disposição do inciso V do art.208 da CRFB. O comprometimento do ensino superior vincula-se ao desenvolvimento humanístico, científico e tecnológico do país (art. 214V, da CF/88), entre outros objetivos.

Desta forma deve ser interpretada a obrigatoriedade do ensino superior: a atuação do Estado nesse campo é necessária para a formação de quadros qualificados, levando-se em consideração como único critério de ingresso nas universidades públicas a questão da intelectualidade.

A autonomia de gestão financeira e patrimonial que consta entre as autonomias que aConstituição de 1988 dispôs as universidades em seu art. 207 consiste em gerir os recursos que lhe são postos à disposição. Neste sentido, tem alcance específico em relação às universidades estatais, uma vez que estas gerenciam recursos públicos, que em sua alocação e disposição devem possuir garantia de utilização criteriosa e destinação certa, exigindo-se das instituições responsabilidade institucional, ou seja, o processamento interno de demandas, estabelecimento de prioridades, de planos de desenvolvimento a médio e longo prazo, possibilitando também a busca de fontes alternativas de custeio que não os recursos públicos. O exercício da autonomia é submetido a controle a posteriori, conforme prevê o art. 70 da CF/88, que trata da prestação de contas de qualquer pessoa física ou jurídica que atue com dinheiro público. Embora a autonomia de gestão financeira e patrimonial possa ser comprometida pela irregularidade nos repasses de dotações orçamentárias globais e pela problemática da regulação da captação externa de recursos pela universidade, constitui-se sem sombra de dúvida em aspecto essencial da autonomia universitária, que deve ser desenvolvido, a fim de se garantir sua plena efetivação.

Para parcela dos que discutem o tema ao analisar a previsão normativa a respeito da atuação estatal em relação à educação superior, há de se ressaltar a função pública a ser exercida através das entidades estatais. Deve-se compreender a necessidade da existência do ensino superior público e gratuito como indispensável à democracia, distinguindo-o como espaço diferenciado das instituições privadas. Assim também pensamos. A universidade pública, neste sentido, deve-se distinguir da universidade privada, deve ser o local próprio daqueles que procuram a continuidade dos estudos apenas pelas qualidades que possuem, independente de condição social, credo, origem étnica, cor, etc. No entanto, o financiamento do poder público e a garantia dos princípios da isonomia e da gratuidade fazem da universidade pública um lugar especial e a preservação deste lugar implica a definição clara de uma política pública para as universidades estatais.

Haveria portanto um direito fundamental à educação superior gratuita em relação as universidades estatais? Primeiramente analise-se o direito ao acesso à educação superior, que não é garantido, somente que o ingresso deveria ser conforme o mérito intelectual, e sua aferição por instrumentos publicizados anteriormente. Em relação à gratuidade, a garantia existe em relação às entidades estatais?

Se pensarmos em uma leitura literal do art. 206, sim, a educação superior promovida por universidades estaduais deve ser gratuita, portanto, de lege lata, a partir de uma interpretação literal deve ser esta a conclusão e desta não poder-se-ia afastar-se, mas como consabido há normas que admitem mais de uma interpretação.

Por isso, de lege ferenda, se promovermos uma interpretação sistemática, caso o artigo 206 reste lido nos termos do art. 208, que prevê a educação básica como obrigatória e gratuita, e progressivamente o ensino médio, quando não menciona o ensino superior; em conjunto com o art. 207, que concede autonomia financeira e patrimonial para buscar fontes alternativas de custeio que não recursos públicos (no sentido de recursos orçamentários); se acrescermos como fundamento o art.  daConstituição, quando um dos objetivos da CF/88 é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional; poderíamos pensar em alunos de maior renda que optassem em estudar um universidades públicas (que o Estado não se obriga a oferecer) custeassem seus estudos para que o Estado custeasse tão apenas os reais necessitados das gratuidades.

Entendimento como este nos parece propiciador de maior grau de justeza, quando o princípio da Solidariedade mostrar-se-ia pertinente. Nestes termos estaríamos homenageando mais os parâmetros de uma ideal igualdade material que a muitas vezes hipócrita igualdade formal, que reiteradamente não garante qualquer isonomia, mas sim revela potenciais aumentos de desigualdades.

É clarividente que não poderiam as universidades publicas visar o lucro, mas tão apenas a percepção destas novas receitas para melhor custear os objetivos constitucionais e institucionais de uma universidade sem que dependa unicamente de orçamento público. Tratar-se-ia de uma receita vinculada. Corrobora neste sentido uma visão realista do estado caótico que se encontra a grande maioria das nossas universidades públicas, algumas que não mais oferecem as qualidades para um serviço digno de aprendizado.

Não abdicamos de que o ideal seria a desnecessidade de se aventar solução como a que propõe a PLS em um Estado social, que estamos pendentes a aceitá-la em sua proposta genérica como constitucional, prima facie, mas idealizamos a prestação de educação de nível fundamental (obrigatório) ao superior, com qualidade, com o custeamento a partir de orçamento público sim, já que pagamos tributos com efeitos quase que confiscatórios em sua totalidade. A realidade inobstante é a mais absoluta ineficiência nos gastos públicos, com desvios de finalidade quase que como a regra, quando a debilidade do ensino (do fundamental ao superior) não mais pode esperar o atendimento dos princípios do art. 37 da CRFB. Poderíamos pensar em uma eficácia temporária, até que se encontre o grau de eficiência desejado.

Assim que, à nosso sentir, tudo vai depender da interpretação que irá se emprestar ao art. 206 da Lei Constitucional, esta a pedra de toque da questão. Questão esta, que o Supremo Tribunal Federal poderia enfrentar, no que entenderíamos um ativismo judicial desejável pelo interesse social que a questão guarda. Modularíamos os efeitos da decisão declarando a interpretação que exclui as universidades públicas da obrigação de gratuidade ao interpretarmos o art. 206, como ainda constitucional, enquanto estas universidades públicas não se estruturassem qualitativamente e financeiramente para que sejam gratuitas para todos.

Lembramos que a Câmara aprovou a PEC 395/2014 por 318 votos, com 129 contrários, que permite as universidade públicas cobrarem por cursos de pós graduação. A proposta altera ao Artigo 206 da Constituição que determina a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Esta aprovação denota o sentido da vontade dos representantes do povo, embora muitas vezes não é a coerência o resultado que se obtêm da Casa do Povo, vale dizer. Tanto a PEC 395/2014 como o PLS que tratamos se referem a um início de privatização do ensino não obrigatório, porém o PLS tem caráter seletivo, alcançando apenas os que possuem uma renda qualificada, a PEC 395 não possui referido distintivo, o que não atenderia ao princípio da Igualdade Material, mas da Igualdade Formal, que como dissemos, pode agravar desigualdades, como privar os de renda mais baixa a possibilidade do estudo em uma pós graduação lato senso ou mestrado profissional.

Certo é, que em caso de aprovação final da PEC 395/2014 representará a abertura da porteira para PLs como a 782/2015 pela alteração que restaria promovida ao art. 206 que tratamos como nuclear à questão, quando o que era público no tocante aos níveis mais elevados do ensino poderá tornar-se privado.

Lembramos para finalizar que em países como Estados Unidos e Canadá os alunos arcam com o pagamento de parcela de seus estudos em universidades públicas. No Canadá, por exemplo, arcam com cerca de 18% do custo efetivo do ensino.

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