A falácia do marco temporal

A falácia do marco temporal reside justamente em fixar a data da promulgação da Constituição de 1988 como um limite para o reconhecimento da posse indígena

Protesto de deputadas contra o marco temporal na Câmara
Protesto de deputadas contra o marco temporal na Câmara (Foto: Lula Marques / Agência Brasil)


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A Constituição da República assegura aos indígenas a posse permanente de suas terras. Esta é uma assertiva que está na base de nossa nacionalidade, pois somos um povo fruto do processo da ocupação europeia das Américas, do final do Século XV. Um fenômeno que, de múltiplas formas, protraiu-se ao longo do tempo e vige até os nossos dias. Segundo José Afonso da Silva (2016), a posse tradicional é um direito originário dos povos indígenas já identificado na Carta Régia de 30 de novembro de 1611 e depois no Alvará de 1º de abril de 1680. O indigenato reconhece, por conseguinte, um direito anterior à ordem social que aqui se instalou a partir da ocupação portuguesa.

É na permanente tensão entre o direito originário indígena e o regime jurídico decorrente da ocupação que, há 4 séculos, ocorre o profícuo debate sobre a posse dos povos autóctones em contraposição aos títulos de propriedade de seus usurpadores. As populações indígenas do Continente, que totalizavam mais de 6 milhões de indivíduos, foram ao longo desse período reduzidas a pouco mais de 1 milhão, segundo dados do CIMI. Para justificar esta carnificina, foram engendradas ao longo dos séculos múltiplas teorias para acomodar as pretensões econômicas e expansionistas da metrópole e para dissipar a responsabilidade dos colonizadores e recolonizadores: a mais recente delas denomina-se marco temporal.

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A tese do marco temporal foi suscitada pela primeira vez no Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso da TI Raposa Serra do Sol. Ali o STF estabeleceu 19 condicionantes aplicáveis àquele caso concreto, como resultado da interpretação do §1º do art. 231 da Constituição da República, o  dispositivo que trata da ocupação tradicional. Neste julgado delimitou-se a incidência do procedimento demarcatório das terras tradicionais à sua fruição na data da promulgação da Constituição, em 05 de outubro de 1988. Exceção a esta exigência seria a demonstração e comprovação do "renitente esbulho" praticado em face das comunidades indígenas. Isto é: o direito originário seria respeitado apenas em relação àquelas comunidades que estivessem no efetivo exercício da posse ou, ao menos, em posição de confronto para a sua manutenção ou para a sua retomada, no início da vigência da nova ordem constitucional.

A adoção arbitrária da data da vigência da Constituição de 1988 deve ser creditada ao gênio brasileiro, mundialmente festejado por sua criatividade e invenção, uma vez que a posse indígena, como vimos, já era reconhecida desde antes do Império como um fato preexistente, infensa, por conseguinte, a um ponto de restrição no tempo. Com o advento da República este direito originário foi sucessivamente reafirmado, desde pelo menos a Constituição de 1934 (art. 129), na de 1937 (art. 154), na de 1946 (art. 216) e nas insuspeitas constituições outorgadas de 1967 e 1969 (arts. 186 e 198, respectivamente). A Constituição de 1988, nesta esteira, ao reconhecer o direito originário dos indígenas à posse  permanente das terras por eles tradicionalmente ocupadas, reafirmou as anteriores e nada mencionou, sequer indiretamente, acerca de um marco temporal, fruto exclusivo da interpretação criativa conferida à matéria pelo STF.

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Como se já não fosse suficientemente ruim o embrolho jurídico promovido pela Corte Constitucional, o próprio Congresso Nacional resolveu disciplinar a genial ideia em lei ordinária, para limitar a fruição da posse tradicional indígena segundo critérios que, em rigor, não constam do texto da Constituição. O PL 490/2007, apesar de flagrantemente inconstitucional, foi aprovado em regime de urgência em 30 de maio último e seguiu para debate no Senado. Enquanto isto a matéria continua na pauta do plenário do STF que, em 7 de junho, reiniciou os debates com o voto favorável aos indígenas proferido pelo ministro Alexandre de Moraes, seguido do pedido de vista do ministro André Mendonça. Já votaram os ministros Edson Fachin, com os indígenas, e Nunes Marques, com os ruralistas.

É preciso ter sempre presente que a redação do art. 231 da Constituição não é uma peça de ficção, tampouco um ensaio poético, mas sim fruto dos embates constituintes acerca da territorialidade indígena em um dado momento histórico. A adoção do conceito de posse tradicional, pela Assembleia Nacional Constituinte, veio como contraponto às políticas de integração e apagamento adotadas pelo Estado durante o Século XX até a redemocratização do País, nos anos 1980. Era indissociável do novo pacto democrático a restituição aos indígenas do direito à sua cultura, inclusive à sua territorialidade. Suas lideranças tiveram papel destacado ao lado dos movimentos sociais que lutaram pelo fim da ditadura militar e influíram nos debates constituintes. Passados 40 anos, com a atual expansão da fronteira agrícola e a valorização da terra nua cultivável, a hermenêutica jurídica presta-se novamente à desconstrução dos avanços aprovados pela Assembleia de 1987, para a instauração do nefasto mecanismo de repetição de que falava, com tanta propriedade, o saudoso pesquisador Marcelo Zelic: a construção de novas estratégias discursivas e performáticas para perpetuar o contínuo genocídio indígena.

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Ora, a Constituição aproximou o conceito de terra indígena à noção de identidade coletiva, de modo que a tradicionalidade não se relaciona a um ponto determinado na linha do tempo e sim aos usos, costumes e tradições que se perdem na memória. A Constituição adotou vetores antropológicos e não cronológicos, nos termos do § 1º do art. 231: as terras utilizadas para as suas atividades produtivas, imprescindíveis ao seu bem-estar, à sua reprodução física e cultural. Decorre das categorias adotadas pelo Constituinte de 1988 a necessidade de considerar as diferentes formas de ocupação e resistência desses povos desde o início da colonização. Neste contexto, em nada colabora tomar de empréstimo institutos de Direito Civil para debater a matéria, como os conceitos de posse velha ou posse nova, esbulho atual ou contínuo. É preciso que o exegeta não se deixe obnubilar pelos institutos civilistas e disponha-se a um desafio humanitário: interpretar o direito originário indígena à luz dos paradigmas multiculturais adotados pelo legislador constituinte e encrustados no Texto Maior.

A falácia do marco temporal reside justamente em fixar a data da promulgação da Constituição de 1988 como um limite para o reconhecimento da posse indígena, como se fosse possível delimitar cronologicamente a própria tradição. Após o Brasil escandalizar o mundo com a crise humanitária Yanomami, a aprovação do PL 490 na Câmara dos Deputados surge como afirmação do mecanismo de repetição: um ciclo vicioso que tem início na revelação da dor, a que se sucedem o escândalo, o arrefecimento, o esquecimento e, por fim, a renovação do ódio contra as populações tradicionais. Parece óbvio, mas quando falamos de indígenas não estamos nos referindo a seres imortais que sobreviveram ao longo dos últimos 400 anos e sim aos descendentes brasileiros daqueles que já ocupavam estas terras antes do ano de 1.500. Não estamos falando "deles", e sim de "nós". Nesta perspectiva, parafraseando Enrique Dussel, nós brasileiros, ao repetirmos a estratégia integracionista de nossos antepassados lusitanos, nos qualificamos como os mais cruéis colonizadores de nós mesmos.

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