O que fazia sucesso há um século

Em 1911, o mundo vivia o apogeu da Belle Époque e o Brasil a farsa da Republica Velha. Hoje a cena mundial não está tão bela, mas pelo menos temos uma República Nova



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Uma bela época: cem anos atrás, o mundo parecia em festa com incontáveis cabarés e clubes de jazz em cada esquina. O cancan, o cinema experimental e o impressionismo deleitavam os cosmopolitas. Em três anos estouraria a Primeira Guerra Mundial, e o resto é história. Foi tão violenta a pedrada que pra Eric Hobsbawm, por exemplo, existe um século político dentro do século cronológico: vai de 1914, quando começa a guerra, a 1989, quando cai o Muro de Berlim. Nesse meio tempo, viu-se de tudo: do mais abjeto fascismo ao mais descarado hitlerismo ou stalinismo.

Em dezembro de 1911, tudo isso ainda estava incubado. Talvez nem os mais pessimistas imaginassem que o século ia terminar com mais de 50 milhões de seres humanos exterminados. Cem anos atrás, vivia-se portanto a celebração de uma bela época e a antecipação de um morticínio. No Brasil, Hermes da Fonseca, militar e federalista, tentava emplacar seu primeiro ano de governo com o lema “O combate às oligarquias.”

“Alheia a tudo, dominava a política brasileira, declarou Rui Barbosa, uma oligarquia de ignorantes, de inconscientes, de desalmados, de ladrões de casaca” diz Fernando Jorge em Getúlio Vargas e Seu Tempo – Um Retrato com Luz e Sombra - Volume II, da editora T.A Queiroz. Era também o auge do ciclo da borracha: “Manaus, no meio da selva tropical, foi uma cidade opulenta, com amplas avenidas e edifícios imponentes. Produtos de luxo vindos da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos abarrotavam as prateleiras dos seus estabelecimentos comerciais.” Eis a excentricidade dos ricos: “A prosperidade era tanta – correu a história – que muitos cidadãos enviavam suas roupas à Europa, a fim de serem lavadas...” Em 1910, a borracha correspondia a 40% das exportações brasileiras.

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Época de experimentalismo nas artes gráficas, o começo do século legou pra posteridade várias revistas e periódicos que fazem a delícia dos ratos de arquivo: da influente Revista Ilustrada à modernosa Fon-Fon!, da irreverência de O Malho às seções psicodélicas de Leitura Para Todos. Essa última oferece um cabedal de informações caudalosas a quem se aventure a mergulhar um século no tempo: uma olhada casual em alguns de seus números (a tiragem era mensal) mostra a influência do esoterismo na escolha das pautas: chiromancia, hypno magnetismo, espiritismo, occultismo, telepathia, premunição, mediunidade etc. (Mantenho a grafia original).

Além de relações com o outro mundo, a revista também tinha uma editoria internacional voltada mais simplesmente pra outros países: na seção “O Mez no Estrangeiro” ficamos sabendo das novidades do circuito europeu de aviação, da coroação do rei Jorge V da Inglaterra e das conversações algo tensas entre diplomatas franceses e alemães.

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Chama atenção o artigo “O crescimento de Krupp – o construtor de armas de guerra da Alemanha”, da edição de julho de 1911, no qual o repórter nos conta que o império de Alfred Krupp tinha se desenvolvido tanto que “a sua capacidade em relação a produção de canhões, torres e outros materiais de armamentos excedia a de todas as fábricas da Inglaterra juntas.” E sugere que “Sem Krupp a Alemanha seria uma mão sem espada.”

Mesmo na bela época (ou principalmente nela) a indústria bélica se multiplica enquanto o mundo se faz de sonso. O expediente foi logo repetido: no entre guerras, a Inglaterra também se fez de sonsa pra militarização alemã, confiando que os nazistas poderiam servir de cordão sanitário contra o avanço soviético, o que no final acabou acontecendo.

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Notícias como o sucesso de Alfred Krupp vinham ladeadas e precedidas por dicas de moda e outras platitudes, como convém a uma revista de variedades. Alguns dos mais cobiçados modelitos eram o vestido mousseline de seda preta, com avental e chalé branco, e o vestido bordado inglez, com bolero “pelsine” e barra de veludo. Já as inserções publicitárias, pequenas e nada grosseiras, alardeavam: “GONOL - Cura a Gonorréia Mais Rebelde!” ou “PURGEN, O Purgativo Ideal – o preferido pelas pessoas fracas, creanças e parturientes.” Havia até pílulas que modelavam o busto das senhoritas: “Seios desenvolvidos, reconstituídos, aformozeados e fortificados com as pilules orientales.” Multinacionais também investiam na imprensa brasileira: “Standart Oil Company of New York – machinas, cylindros, teares, carros e trilhos.”

O curioso é que o tom do correspondente internacional é de entusiasmo – ele chama o empreendimento de “a firma maravilhosa de Krupp” -, só ocasionalmente transtornado por dúvidas quanto a natureza do empreendimento. Aí as “officinas de Krupp” se transformam na “fabrica de morte mais maravilhosa do mundo.” Depois de elencar números – “18.000 telegramas por ano”, “50.000 toneladas de aço” e de contar a história do Krupp patriarca – “nenhum negócio no mundo teve história mais romântica” – conclui com uma observação notável: “Não há um homem ou mulher no mundo que escape ao pagamento dos impostos que servem para preparar os acontecimentos que todos eles temem. Podem morrer de fome, mas precisam pagar para se defender do demônio que está escondido, como um espírito mau, rindo d`aquelles que são partidários da paz.”

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Tempos depois a Krupp viveu um caso de amor com o nazismo, mas em 1953 foi perdoada/anistiada e nos anos 90 uniu-se a siderúrgica Thyssen, e hoje a ThyssenKrupp AG segue fabricando de motores a elevadores (como o do meu prédio, por exemplo). E na nossa bela época digital, continuamos celebrando o mesmo empreendimento. Fora as matérias pagas e as notas laudatórias aos barões da indústria bélica, como os executivos da Colt e Taurus em publicações especializadas, espanta a naturalidade com que a arma de fogo é tolerada em 2011: no cinema ela reina absoluta, e é raro o conflito que não acabe em bala. Uma moda que pegou, e que não é nada agradável, é um maluco sair na rua dando tiro nos outros.

Ontem mesmo eu ouvia um Boris Casoy estupidificado que conversava com um correspondente na Europa. “Outro atentado? Como é que eles conseguem essas armas?” E o jornalista esclarecia: “São kalashnikovs contrabandeadas dos ex-satélites soviéticos.”

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No meio do tiroteio, o ano de 2011 se encaminha pra cova. Se em 1911 falava-se de assuntos como comédia francesa, ópera cômica, hipismo e truques de vaudeville, além de ocorridos como a morte de Tolstoi, o roubo da Monalisa, o assassinato de um ministro russo por anarquistas, os feitos de Santos Dumont ou a beleza de Sarah Bernhadt, em 2011 as placas tectônicas parecem algo mais desordenadas: terremoto no Japão, Primavera Árabe, falecimento de um visionário da tecnologia, recessão econômica nos Estados Unidos, crise da dívida grega e, pro deleite dosapologistas da frivolidade, um casamento de princesa. (A monarquia, ainda que só no plano simbólico, deve durar mais cem anos fácil). “Neymar” deve ter sido o nome mais repetido no país. E uma grosseria dita por alguém na televisão gerou torrentes de comentários, muito mais do que seria razoável.

De resto, parece incrível que em 2011 continue a se imprimir revistas de variedades, mas foi exatamente isso o que aconteceu em Brasília, com o lançamento da meiaum, que faz jornalismo “sem apatia e com independência.” A edição de dezembro está fina, e quando os escafandristas virão (só Chico Buarque poderia botar a palavra “escafandristas” numa letra) tentarão de novo decifrar o eco de antigas palavras. Dessa vez, uma pedrada de Helio Doyle contra o telhado de vidro do primeiro ano de governo do petista Agnelo, que chegou ao GDF pra – adivinhem? – acabar com as oligarquias (do Roriz). Isso é trabalho de um século.

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Veremos então uma data ainda mais cabalística: 11/11/2111. O mote gerou em 2011 um filme (lamentável) de terror, um conto curioso à lá Stephen King na revista supracitada e um monte de papo furado. Dizem que um portal místico se abre quando há muitos “uns” enfileirados. Pra ver isso acontecer de novo, com um “1” a mais no calendário, vou ter que viver até os 130 anos. Acho que dá pra chegar.

“Que em 1912 o leitor veja realizadas todas as suas esperanças, são os votos do rabiscador destas linhas” lê-se numa página amarelada pelo tempo.

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