Lixo na rua, uma bomba de efeito retardado

A embalagem do bombom que se descarta hoje pela janela do ônibus pode um dia contribuir para um grande deslizamento de terra



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Sentada na cadeira reservada a passageiros especiais – aquele assento que nos (bons) tempos politicamente incorretos era também conhecido como "banco do otário" - a senhora de uns sessenta e tantos anos degusta seu pacotinho de amendoim cozido. Nunca consegui me acostumar com esse hábito que parece fazer parte do gênese do passageiro de ônibus aqui em Salvador, o de sempre comer alguma coisa durante a viagem. Logo atrás, uma moça meio gordinha devora com avidez um saco de batatas do tipo chips...

Mas é a senhora com cara, penteado e roupas de evangélica quem prende a minha atenção. Entretida com seu pacotinho de amendoim cozido, ela acompanha a paisagem com olhar blasé, como se nada visse do que se passa para além da janela. Sem mais o que fazer, a não ser esperar chegar à Estação Iguatemi para desembarcar, me concentro na comedora de amendoins. Ela abre calmamente a vagem, joga os caroços na boca (não erra um!) e atira as cascas pela janela. O movimento se repete infinitamente, enquanto dura a porção.

Pouco antes de descartar as vagens inservíveis janela afora, a cidadã se desfaz da embalagem plástica, que é levada pelo vento. A essa altura, já estamos na região do Iguatemi, às margens do Rio Camurujipe. Certamente, é no leito do canal que o lixo produzido pela senhora de aspecto pacato irá um dia repousar. Isso, depois de perambular por aí, obstruir a rede de drenagem e produzir aqueles mil e um transtornos porque passamos em dias de chuva.

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Tenho que me conter para não perguntar àquela senhora em que bairro ela mora. O destino do ônibus é Paripe, o que me leva a supor que ela resida no subúrbio ferroviário. Queria muito saber se o lugar onde ela vive costuma alagar quando cai uma chuva mais forte. Ou se ela já presenciou deslizamentos de terra, tão frequentes ao longo da Falha de Salvador, acidente geológico que faz parte do relevo da Avenida Afrânio Peixoto (a Suburbana).

Queria ter a coragem de chamar a atenção dela e de lhe alertar quanto às consequências de seus atos aparentemente inofensivos. Gostaria de dizer que pessoas acima de qualquer suspeita (ela, por exemplo) são verdadeiros terroristas que constroem bombas de efeito retardado capazes de destruir toda uma comunidade. Não, não estou exagerando. Veja o que diz o professor Gustavo Mello, economista com MBA em gerenciamento de riscos pela Coppe-UFRJ e palestrante da Escola Nacional de Seguros (Funenseg).

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Especialista faz alerta

Em janeiro deste ano, em meio à comoção causada pela catástrofe associada à chuva no Rio de Janeiro, Mello foi consultado sobre as causas dos deslizamentos de terra e desabamentos que se repetem a cada verão no Rio. Com a autoridade de quem estuda o assunto, ele disse que essas tragédias são motivadas por um somatório de circunstâncias: "Misto de fenômeno climático (até com influência do aquecimento global) extraordinário, ocupação desordenada e falta de planejamento urbano, lixo em encostas e rios, falta de limpeza de galerias e bueiros, desmatamento etc.".

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Ou seja, não que as cascas do amendoim e o saquinho de plástico atirados anteontem à rua pela senhora de olhar indiferente sejam a única causa do caos que transtornou Salvador na chuvosa manhã de ontem. Mas, multiplique as vezes em que esse ato é repetido pela mesma passageira e por boa parte dos mais de um milhão de usuários de ônibus que se deslocam pela cidade diariamente...

Bom, fiquei apenas imersa em reflexões e nada falei com a mal informada passageira. Ainda não foi desta vez que dei o primeiro passo para salvar o planeta. Também não haveria tempo. Meu ponto de desembarque chegou e tenho que descer. Chego à Estação Iguatemi, onde preciso me esgueirar entre papéis de bala, cascas de amendoim, folhetos de propagandas e uma infinidade de detritos inomináveis. Olho ao redor em busca de cestas de lixo e localizo um solitário e improvisado cesto, onde se lê um dramático apelo: "POR FAVOR NÃO JOGUE LIXO NO CHÃO. ME AJUDE". E a vida segue igual...

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