Quem é o secretário do governo Bolsonaro que tem ganhado poder ao pregar o uso da Proxalutamida contra a Covid-19
Trata-se de Hélio Angotti. Funcionários antigos e atuais do Ministério da Saúde dizem que a autoridade de segundo escalão tem silenciosamente acumulado poder ao incentivar o que eles dizem ser uma ciência questionável para reforçar as convicções de Bolsonaro
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Por Gabriel Stargardter
RIO DE JANEIRO (Reuters) - O presidente Jair Bolsonaro, falando no mês passado em um vídeo nas redes sociais, defendeu o mais recente de uma série de remédios não convencionais que, segundo ele, podem aliviar a pandemia de Covid-19 no país.Bolsonaro --um cético em relação às vacinas e defensor de tratamentos desacreditados contra a Covid-19 como a hidroxicloroquina-- disse na ocasião que este novo remédio, a Proxalutamida, ficaria em breve "disponível para todo o Brasil". Ele convidou uma autoridade pouco conhecida do Ministério da Saúde, o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos, Hélio Angotti, para falar mais sobre a promessa. Angotti, um oftalmologista sem experiência epidemiológica, citou um estudo nacional sobre a Proxalutamida que mostra uma queda de 92% no risco de mortalidade entre pacientes hospitalizados com Covid-19. Foi uma afirmação categórica para um momento em que há uma batalha ao redor do mundo para encontrar tratamentos efetivos contra o coronavírus. Ele disse que tentaria "entregá-la à população brasileira o mais rápido possível". No entanto, o estudo, cujo co-autor é um consultor contratado por Angotti, não foi revisado por outros cientistas e sequer foi publicado, além de uma apresentação superficial dos resultados divulgada pelos autores em uma entrevista coletiva em março. O remédio não tem aprovação regulatória e não está disponível para venda. Alexandre Cavalcanti, diretor do Instituto de Pesquisa Hcor, em São Paulo, expressou dúvidas em relação ao estudo e disse que a suposta efetividade citada por Angotti é inacreditavelmete alta e muito superior à de outros tratamentos contra a doença. "Eu não acredito", disse Cavalcanti, que foi co-autor de um grande estudo, publicado ano passado no New England Journal of Medicine, que descobriu que a hidroxicloroquina é essencialmente inútil no combate à Covid-19. Para efeito de comparação, Cavalcanti citou um esteroide geralmente usado, a Dexametasona, que, segundo um teste clínico, reduz mortes em até um terço em pacientes com casos graves de Covid-19. A empresa de biotecnologia chinesa que fabrica a Proxalutamida, a Kintor Pharmaceutical Limited, viu suas ações dispararem ao divulgar o estudo brasileiro e relatar outros progressos. A aparição de Angotti ao lado de Bolsonaro foi o mais recente sinal de sua crescente influência em meio a uma pandemia que matou cerca de 430.000 brasileiros.
Funcionários antigos e atuais do Ministério da Saúde dizem que a autoridade de segundo escalão tem silenciosamente acumulado poder ao incentivar o que eles dizem ser uma ciência questionável para reforçar as convicções de Bolsonaro: que máscaras são inúteis, lockdowns são perigosos, vacinas não são uma bala de prata e outras curas milagrosas estão disponíveis ou estarão em breve. Angotti se recusou a enviar comentários para esta reportagem. O gabinete de Bolsonaro e o Ministério da Saúde não responderam aos pedidos por comentários. Carlos Wambier, um dos co-autores do estudo brasileiro sobre a Proxalutamida, reconheceu a falta de revisão dos pares, mas disse que "os resultados são realmente muito animadores". Disse ainda que os críticos estão "mais preocupados com a política do que com os resultados científicos". "Caso o artigo seja publicado acredito que qualquer governo do mundo dará atenção devida aos resultados", afirmou Wambier, um professor de dermatologia na Universidade de Brown especializado em procedimentos estéticos, como aplicações de Botox e remoção de tatuagens. A Reuters analisou documentos internos do Ministério e entrevistou mais de duas dúzias de autoridades atuais e ex-autoridades, cientistas e políticos para mapear a ascensão de Angotti dentro do governo Bolsonaro.
Ano passado, Angotti assumiu a chefia da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE) do ministério. Entre outras tarefas, a SCTIE decide quais remédios --exceto vacinas-- serão comprados pelo amplo sistema público de saúde do Brasil.
As fontes afirmam que o foco do seu departamento em remédios sem eficácia comprovada contra a Covid, como a hidroxicloroquina, junto com a sua oposição a máscaras e lockdowns contribuíram para a disseminação explosiva da variante P1, que surgiu ano passado em Manaus, capital do Amazonas, e tornou o Brasil um dos piores focos da pandemia no mundo. Promotores federais no Amazonas acusaram Angotti de improbidade administrativa, em um processo civil que pode resultar em multas ou perda do cargo, por ter incentivado funcionários da saúde a prescrever hidroxicloroquina. Angotti se recusou a comentar essa acusação. Angotti também é alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a resposta de Bolsonaro à pandemia. Os senadores estão interrogando autoridades do governo em audiências públicas há cerca de duas semanas, e três senadores pediram formalmente que Angotti testemunhe diante da comissão, que ainda não avaliou esses pedidos. A comissão publicará um relatório com suas descobertas, mas não tem poder para punir autoridades governamentais. A ascensão de Angotti revela o papel central que tratamentos sem eficácia comprovada continuam a ter no Brasil. Também exemplifica a composição pouco convencional do governo Bolsonaro: uma coalizão de militares, liberais econômicos e conservadores em temas sociais. "Hélio é a representação dessa agenda anti-científica e ideológica que ocupou o ministério e vai ganhando mais força", afirmou Adriano Massuda, que chefiou a SCTIE em 2015. "A ala ideológica do governo Bolsonaro continua dando as cartas no Ministério da Saúde, e agora com mais força." As tentativas de Angotti de apoiar a estratégia de Bolsonaro para a pandemia acontecem no momento em que o governo --agora em seu quarto ministro da Saúde desde o começo da pandemia-- tem sido amplamente criticado pela vacinação lenta dos brasileiros.
Enquanto outros países correram para fechar acordos com empresas farmacêuticas por vacinas, o governo Bolsonaro demorou para garantir imunizantes para os 210 milhões de brasileiros. Cerca de 15% da população do país recebeu pelo menos uma dose, em comparação com 35% no vizinho Uruguai, 46% nos Estados Unidos e entre 20% e 35% em muitos países europeus, segundo o Our World in Data, uma organização de pesquisa e serviço público sem fins lucrativos.
TRÊS CONSULTORES E UM MEMORANDOAngotti dava aulas em uma universidade na Região Sudeste antes de chegar ao Ministério da Saúde em 2019, quando Bolsonaro assumiu o poder. Ele foi diretor do Departamento de Gestão da Educação na Saúde (DEGES) da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde (SGTES) antes de ser promovido em junho do ano passado.
Como Bolsonaro, Angotti é um seguidor declarado de Olavo de Carvalho, que promove falsas teorias da conspiração, incluindo acusações de que a Pepsi usa células de fetos abortados como adoçante. Bolsonaro, que tomou hidroxicloroquina quando contraiu o coronavírus em julho do ano passado, questionou a segurança e a eficácia das vacinas e se recusou a toma-las. Angotti se recusou a dizer à Reuters se ele considera as vacinas eficazes. Em novembro do ano passado, Angotti havia contratado três consultores para encontrar provas que apoiassem as afirmações médicas de Bolsonaro, segundo um memorando redigido por ele em 19 de novembro. O memorando, analisado pela Reuters, ainda não havia sido publicado pela imprensa. Entre os consultores, estava Ricardo Zimerman, um infectologista com cerca de 60.000 seguidores no Instagram, onde ele publica com regularidade notícias sobre tratamentos experimentais para a Covid-19 e fotos dele próprio fazendo musculação. Completavam o trio Bruno de Souza, professor de Administração na Universidade Federal de Pernambuco, com um doutorado em psicologia; e Rute Costa, uma pesquisadora médica. Os consultores não responderam aos pedidos por comentário. O memorando de 19 de novembro escrito por Angotti instruiu os consultores a "listar e criticar os protocolos e os artigos relativos às diferentes propostas de imunização". Os consultores também deveriam atualizar o protocolo do ministério para tratar Covid-19 com um coquetel antimalárico que incluía a hidroxicloroquina e outras drogas. Angotti lhes disse para acrescentar "as terapias mais novas propostas", mostrando como elas poderiam "salvar muitas vidas". O memorando também orientou os consultores a produzir uma "aferição abrangente dos impactos sociais e econômicos, diretos e indiretos, do isolamento social". Em março, os consultores foram co-autores de um estudo que foi além de analisar os impactos do isolamento social e concluiu que os lockdowns "estavam associados" ao surgimento da variante P1 em Manaus, afirmando que o vírus havia sofrido mutações em residências confinadas. No começo de dezembro, os consultores chocaram alguns funcionários do Centro de Operações contra o coronavírus do Ministério da Saúde com uma apresentação sobre por que as máscaras não funcionam para conter a disseminação do vírus, segundo duas pessoas que estavam presentes. Outros ficaram menos surpresos: quando Bolsonaro visitou o local em outubro, os funcionários foram orientados a não usar máscaras, segundo uma pessoa que estava presente.
HIDROXICLOROQUINA AO RESGATEEnquanto a equipe de Angotti corria atrás de tratamentos, a variante P1 explodia em Manaus, responsável por três quartos dos casos da cidade ao fim do mês de janeiro, segundo estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituto de biomedicina financiado pelo governo federal. Os hospitais da cidade rapidamente ficaram sem oxigênio. Em pouco tempo, a variante se espalhou pelo Brasil. O Ministério da Saúde enviou pelo menos 120.000 comprimidos de hidroxicloroquina ao Amazonas e 12 médicos à cidade de Manaus para encorajar os funcionários da saúde a usarem o antimalárico. Zimerman, De Souza e Costa fizeram parte desse grupo, segundo uma declaração de 23 de fevereiro enviada por um dos colegas de Angotti a promotores federais no Amazonas, respondendo a questionamentos sobre a maneira como o ministério lidou com a crise em Manaus. A SCTIE, comandada por Angotti, financiou as viagens, afirma a declaração. O ministério também colocou em ação um aplicativo de celular que teve vida curta para ajudar os médicos a diagnosticarem Covid-19 com um questionário de sintomas --e que depois os instruía a prescrever antimaláricos, como a hidroxicloroquina. O aplicativo foi baseado em uma ferramenta de diagnóstico que os consultores de Angotti ajudaram a desenvolver. Menos de duas semanas após o lançamento do aplicativo, o Conselho Federal de Medicina (CFM), que licencia e regulamenta profissionais médicos, pediu que o Ministério da Saúde desativasse o aplicativo porque ele alegava "validação científica a remédios sem reconhecimento internacional". O CFM disse que o aplicativo havia sido disponibilizado a pessoas que não eram médicas e encorajava a auto-medicação. O ministério desativou o aplicativo. O foco na hidroxicloroquina durante a crise em Manaus foi emblemático da resposta falha do governo Bolsonaro à pandemia, disse Felipe Naveca, um dos primeiros cientistas a estudar a variante P1 e vice-diretor de pesquisas da Fiocruz Amazônia, braço do instituto de biomedicina em Manaus. "Não se levou a sério o tamanho do problema", disse. "E aí se pensou em uma solução milagrosa que não existe." Em meio ao caos em Manaus, um dos consultores de Angotti, Zimerman, se juntou a outros pesquisadores para lançar o estudo da Proxalutamida, o remédio que Bolsonaro e Angotti posteriormente elogiariam no vídeo publicado nas redes sociais. Em 10 de março, apenas semanas após começarem o estudo, os autores convocaram uma entrevista coletiva em Manaus para anunciar os seus resultados. "Como pesquisador, posso afirmar para vocês, eu ainda não vi nada parecido, e eu pesquiso bastante", disse Alexandre Cadegiani, um dos co-autores do estudo. "Não estamos brincando." Cadegiani recusou-se a comentar as críticas ao estudo. Cavalcanti, do Instituto de Pesquisa Hcor, afirmou que a apresentação das descobertas do estudo ainda não publicado não atendem aos padrões de pesquisas desse tipo. "Aquele estudo é muito amador", disse. "Na forma como foi divulgado, como os dados foram apresentados, aqueles caras são amadores."
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