Um ser Disney
Huck sabe que, para a burguesia culpada, o melhor caminho é purgar-se pelo atalho de doar alguns cascalhos
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Corria um 14 de outubro de 1670. Diante da corte do rei francês Luís XIV, no castelo de Chambord, estreia a peça “Le bourgeois gentil homme”, traduzida por aqui como “O burguês fidalgo”. Nela, Molière nivela os destinos de personagens metidos a alpinismo social, a pequenos vícios e vilanias da burguesia --e a demais subprodutos de uma classe que, por mais esforçada que fosse, não passava de um subproduto, uma meia-confecção. Molière pensou muito no título. Afinal era um oximoro: porque na França daquela época, veja você, a tradução de “gentil homme” (cavalheiro) dava a ideia de pessoa nascida nobre. Dai, portanto, não poderia ser, tecnicamente, cavalheiro e burguês ao mesmo tempo.
E olhe o seguinte: o cidadão de inteligência apoucada a protagonizar a historia, um burguês chamado Jourdain, está quase na meia idade (seu pai enriqueceu como comerciante). A meta de Jourdain é clara: ser um cavalheiro aristocrata. Jourdain leva de cambulhão a determinação de sorver de todas as artes cavalheirescas possíveis, que serviam de selo e lacre à burguesia mental: dança, música, filosofia, esgrima – e sempre afetando um bom-mocismo substantivo, ainda que sujeito a variações adjetivas.
Temos o nosso Jourdain. Nosso Jourdain é um ser inflável, um ursinho carinhoso. Cheira a bonomia e bons perfumes. Luciano Huck é o nosso “gentil homme” pós-moderno. Como diria Machado de Assis: é incapaz de odiar, talvez seja incapaz de amar. Huck é um ser Disney, é aquilo que nas escolas primárias se chama de inho. Seu mundo parece não ter fricções. Tudo é róseo, tudo está em calma suspensão. Afinal Huck subiu de colunista de festas da sub-burguesia paulistana, no Jornal da Tarde, nos anos 90, para o mais reluzente Global e o mais seguido no Twitter brazuca. Huck, como um ser Disney inflável, quer mais alturas. Afinal, se um operário que era o terror dos patrões chegou lá, afinal se uma nerd de metranca, que era o terror dos banqueiros, chegou lá, porque um bonzinho inho inho inho não poderá
Luciano Huck tem o pensamento claramente estratificado: é capaz de passar de altas para baixas octanagens, rapidim: como, por exemplo, quando queria a pena de morte para quem roubou o seu Rolex --e daí pular pro outro lado e até mesmo subir o morro, dando casas pré-fabricadas para o Jorjão Borracheiro, para lavar-se da culpa que tem boa parte das elites autóctones. No fundo, Huck é um Oliveira Vianna. Goza porque vê o Brasil embranquecer-se.
Em seu “Massa e Poder”, prêmio Nobel de 1962, Elias Canetti escreveu preciosas linhas sobre a fama. “Tal nome leva uma vida ávida e própria, uma vida paralela, que pouca relação guarda com aquilo que um homem é de fato. Essa massa de que desfrutam os sedentos pela fama compõem-se de sombras, criaturas que bem sequer precisam estar vivas, bastando apenas que sejam capazes de uma única coisa: pronunciar um determinado nome”.
Canetti prossegue indicando que, para o possuidor da fama, “o que essas sombras habitualmente fazem – seu tamanho, sua aparência, sua alimentação ou sua obra, é tão indiferente quanto o ar. Enquanto se preocupa com os proprietários das bocas pronunciadoras de seu nome, enquanto as corteja, suborna, estimula ou chicoteia, ele ainda não é famoso. Está apenas treinando os quadros de seu futuro exército de sombras. A fama propriamente dita, ele somente adquire quando se pode permitir dispensá-los todos sem com isso perder coisa alguma. O famoso coleciona coros. Quer apenas ouvi-los pronunciar seu nome. Tanto faz se se trata de coros de vivos, de mortos ou dos que ainda nem nasceram, contanto que sejam grandes de treinados na repetição de seu nome”.
Huck sabe que, para a burguesia culpada, o melhor caminho é purgar-se pelo atalho de doar alguns cascalhos. E vejam que nem na purgação ele foi original: suas doações aos pobres são pó de traque se comparadas a quem ele copia, o gringo Ty Pennington e seu “Extreme Makeover - Home Edition”. Huck quer que as sombras a quem ele unge com migalhas pronunciem seu nome, cada vez mais: como a cabala que ele aprendeu na escola.
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