Suspeição de Moro: Como transformar um caso fácil em um caso trágico

"Pela primeira vez, por razões político-ideológicas, um juiz atuou em processos para os quais não era competente, manteve preso um réu por mais de 500 dias, afastou-o da corrida presidencial limpando a cancha para seu adversário vencer e, ainda por cima, foi ser ministro do novo governo", escrevem Lenio Luiz Streck, ​​​​​Marco Aurélio de Carvalho e Fabiano Silva dos Santos do grupo Prerrogativas

Sérgio Moro, condenado pelo STF, e o ex-presidente Lula
Sérgio Moro, condenado pelo STF, e o ex-presidente Lula (Foto: Divulgação)


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Por ​​​​​Lenio Luiz Streck, ​​​​​Marco Aurélio de Carvalho, e Fabiano Silva dos Santos, integrantes do Grupo Prerrogativas -  É pacífico na área jurídica que existem casos fáceis (easy cases), casos difíceis (hard cases) e, com o tempo, foi acrescentada uma nova categoria: a dos casos trágicos (tragic cases).

E o que são esses “tragic cases”? É quando um “caso fácil” é politizado. Quando ele tem nome, sobrenome e CPF na capa. Pegue-se um caso bem simples, em que as provas estão escancaradas e ponha-se uma boa pitada de mídia narrativista, uma boa dose de uso estratégico do direito e, pronto: teremos a tempestade perfeita para a formação de um “caso trágico”. A fórmula não falha.

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Claro que o caso de Moro – e é a sua suspeição, esculpida em carrara que aqui nos referimos – é algo que se pode e deve corrigir pela Suprema Corte. Para tanto, basta que se siga a boa doutrina processual penal (e não a do processo civil), e que se assente que a suspeição é uma condição pessoal, intransferível. Sendo bem simples, a suspeição é como peste: onde o juiz suspeito meteu a mão ou onde respirou, contaminou. Ela é mais grave que tudo, porque mexe com o “sagrado do direito”: a imparcialidade.

Todavia, nem sempre as coisas fáceis são assim entendidas. O que no direito pode ser fácil, na política pode “complicar”. E aí se esquece que é o direito que deve conter a política e não é a política que vale mais do que o direito.

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Explicaremos: desde o início a defesa de Lula sustentou que o juízo de Curitiba era incompetente para julgar os casos que envolviam o ex-presidente.  Ocorre que Moro, porque sempre foi parcial e suspeito, manipulou a competência, criando uma pan-competência. Perseguiu a jurisdição sem qualquer tipo de pudor ou constrangimento. Algo como: “usou gasolina Petrobras, traz pra mim o processo” (aliás, essa brincadeira é de autoria da Força Tarefa do MP). Moro manipulou o caso Janene (isso está na página 228 do livro da Juíza Fabiana), caso esse, aliás, equivocadamente esgrimido pelo Min. Marco Aurélio no julgamento do dia 15. Veja-se que a correta visão de fatos ajuda a entender o direito. Se começa mal, termina mal.  

O caso é tão simples que o Min. Fachin decidiu pela incompetência de forma monocrática, conforme autoriza o RISTF. E decisão monocrática é só para easy cases. Malgrado a afetação fruto de juízo arbitrário para além de discricionário, tem-se que essa escancarada incompetência alcançou o expressivo resultado de oito votos contra três.

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Isto é, descontados os votos que confundiram processo civil com processo penal – especialmente o de Nunes Marques que mais se baseou na denúncia original do MP do que no HC propriamente dito - sobra o voto um tanto diferente do Min. Marco Aurélio, que, depois de proferir decisões garantistas durante muitos anos, agora, no crepúsculo de sua estada no STF, nega o uso de habeas corpus com fundamento de que a questão da incompetência já teria sido julgada, fazendo um verdadeiro turning point nas suas posições anteriores.

Um registro importantíssimo. A afetação da suspeição havia sido proposta pelo Min. Gilmar em 2018, mas foi negada por 3x2. Fato relevantíssimo. Portanto, ao ser negada, firmou-se o juízo natural: a segunda turma. Observe-se: o Ministro Fachin, que era o relator, foi contra a afetação naquele momento. Afetação que ele mesmo poderia, ao seu discricio-arbitrio, ter feito, até mesmo à revelia da Turma. Por que só o fez quando de agora, que o resultado foi desfavorável a sua tese?

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Mais uma razão – ou a principal – de se poder dizer que a suspeição é causa finita. Resta agora estender seus efeitos. O caso do triplex é o paciente zero da pandemia de parcialidade; basta seguir o rastro do vírus.

Permitimo-nos repetir. O caso é tão simples que nem é necessário discutir a teoria do juiz aparente. Moro foi incompetente – e assim permaneceu durante anos – exatamente porque era suspeito. Não há como aproveitar provas produzidas sob a presidência de um juiz que reúna as duas mais graves máculas processuais num só corpo: a incompetência e a suspeição.

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Também é/foi intrigante se falar em (in)competência relativa em razão do lugar. Dizer que a incompetência, por ser nulidade relativa, teria que provar o prejuízo é como uma ordália invertida. Qualquer pessoa condenada por juízo incompetente tem prejuízo “ontológico”. Afinal, é ou não verdadeiro que ser julgado pelo juízo natural e por um juiz imparcial são as coisas mais importantes do Direito? Como querer dizer que existe meia nulidade?

Estando, pois,  a suspeição já julgada no juízo natural, não tem sentido o STF ter que dizer que “sim, houve suspeição, porém ela fica ‘prejudicada’ pela incompetência do juízo”. Suspeição de juiz e incompetência de juízo são coisas diferentes. Uma pode decorrer de outra. Mas não se pode querer sustentar que a incompetência precede ou prejudica o vício da suspeição. Não se pode misturar ovos com caixa de ovos, alertava Bobbio.

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Veja-se: se a suspeição já foi declarada, para que ela desaparecesse teria que ser rejulgada. Acaso o STF determinasse a sua prejudicialidade, teríamos a mais arrebatada ficção jurídica já feita: um juiz suspeito que grampeou advogados do réu (para citar apenas esse ato) é declarado suspeito-parcial pelo juízo natural, mas seus atos valem porque sua suspeição foi considerada prejudicada. Ela existe, mas não existe.

No mais, esta hipótese daria ao Plenário do Supremo  poderes de instância recursal das decisões das turmas. Nada mais exótico, para dizer o menos.

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Na verdade, o que fica para a história do direito e será material para os arqueólogos e suas escovas é bem mais simples: pela primeira vez, por razões político-ideológicas, um juiz atuou em processos para os quais não era competente, manteve preso um réu por mais de 500 dias, afastou-o da corrida presidencial limpando a cancha para seu adversário vencer e, ainda por cima, foi ser ministro do novo governo. E a história registrará que assim o fez porque conseguiu um feito único: ser, ao mesmo tempo, incompetente e suspeito. Não é para qualquer um.

​​​​​Lenio Luiz Streck é jurista e professor.

​​​​​Marco Aurélio de Carvalho é advogado.

Fabiano Silva dos Santos é advogado e professor

* integrantes do Grupo Prerrogativas.

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