Reuters: Retórica de Bolsonaro contra favoritos em eleição argentina arrisca equilíbrio regional
A retórica de Jair Bolsonaro - e também de vários outros membros do governo -, que quebrou a tradição da posição brasileira de não interferir nas políticas internas dos vizinhos e chegou a chamar a chapa de “bandidos de vermelho” e ameaçou tentar suspender a Argentina do Mercosul, desperta preocupação, segundo analistas ouvidos pela Reuters
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BRASÍLIA (Reuters) - Diante de uma eleição que pode trazer de volta a esquerda ao poder na Argentina, as críticas agressivas do presidente Jair Bolsonaro à chapa Fernández-Kirchner apontam para um futuro de relações difíceis que podem afetar o comércio com o país vizinho e até mesmo o equilíbrio político regional.
A retórica do presidente - e também de vários outros membros do governo -, que quebrou a tradição da posição brasileira de não comentar as questões políticas internas dos vizinhos e chegou a chamar a chapa de “bandidos de vermelho” e ameaçou tentar suspender a Argentina do Mercosul, desperta preocupação, segundo analistas ouvidos pela Reuters.
“As declarações têm sido agressivas desde o início. O Brasil em geral não intervém nas eleições dos vizinhos. Bolsonaro quebrou essa tradição. Isso pode sim criar um risco para a relação futura”, disse à Reuters o consultor Welber Barral, da BMJ Consultoria, ex-secretário de comércio exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. “Dá para antever que a relação não vai ser tão próxima quanto foi em outros governos.”
Apesar da crise, a Argentina ainda é o quarto maior parceiro comercial do Brasil, de acordo com dados deste ano do Ministério da Economia. Em 2018, fechou o ano como terceiro, com um saldo positivo para o Brasil na corrente de comércio de 3,9 bilhões de dólares. Em manufaturados, a Argentina ainda é nosso principal importador.
Uma quebra nas relações poderia afetar um comércio que é importante para os dois lados.
“Creio que são puras considerações ideológicas que estão motivando essas declarações, e sem o presidente saber de fato o que vai acontecer. Os sinais que vem da Argentina são, na verdade, de que do ponto de vista econômico Fernández não deve fazer nenhuma maluquice”, disse à Reuters uma fonte ligada à diplomacia e que acompanha de perto o tema. “Essa atitude ideológica vai criar problemas.”
Barral lembra que, depois de responder uma primeira vez aos ataques de Bolsonaro, Alberto Fernández passou a ignorar as falas do presidente brasileiro.
“É um sinal positivo do próprio pragmatismo do Fernández. A Argentina sabe que também precisa do Brasil para voltar a crescer. Então eu estou apostando que Fernández vai ser bem mais racional que Bolsonaro”, defendeu Barral.
No entanto, mesmo que haja esse pragmatismo do lado de lá, a recíproca pode não ser verdadeira. Não apenas pelas declarações hostis de Bolsonaro, mas por outros membros do governo. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, já afirmou que a eleição da chapa de esquerda é um “retrocesso” e seria um risco para o Mercosul.
“Brasil e Argentina já tiveram crises efetivas, problemas sérios. Em todas as vezes foi a chancelaria que baixou a bola, reduziu as tensões. Agora as tensões estão aumentando do lado brasileiro e eu não vi nenhuma reação do Itamaraty, ao contrário”, disse a fonte.
Conturbada, a relação entre Brasil e Argentina sempre se baseou em uma combinação de desconfiança e dependência mútuas, tanto na questão econômica quanto política. Nas últimas décadas, beneficiou-se da boa relação entre os presidentes, uma vantagem que deve desaparecer se confirmada a eleição de Fernández.
O candidato peronista, com sua vice Cristina Kirchner, aparece com mais de 50% das intenções de voto para as eleições neste domingo, depois de já ter ganho as prévias argentinas, em agosto, por uma larga margem. A ex-presidente Cristina Kirchner foi próxima de governos petistas no Brasil, o que também foi alvo de críticas de Bolsonaro.
MERCOSUL
Recentemente, durante viagem ao Japão, ao ser questionado sobre a intenção brasileira de negociar a redução da Tarifa Externa Comum do Mercosul, Bolsonaro afirmou esperar de um novo governo que mantenha a política econômica do atual governo de Maurício Macri e que se isso não acontecer, o Mercosul estaria em risco.
Bolsonaro chegou a dizer que o Brasil poderia agir para suspender a Argentina do Mercosul, caso o país dificultasse as negociações - o que, aliás, não tem previsão no tratado do Mercosul. A única possibilidade de suspensão de um país é a quebra da cláusula democrática do bloco, como aconteceu com Paraguai e Venezuela.
Durante todo o período eleitoral argentino, o presidente brasileiro tem dado declarações contrárias à chapa, que aparece nas últimas pesquisas eleitorais com grandes possibilidades de vencer as eleições já neste domingo. Em agosto, depois das primárias que mostraram uma larga vantagem de Fernández, o presidente afirmou que a Argentina “tomava o rumo da Venezuela” e que “bandidos de esquerda” estariam voltando ao poder.
Depois do resultado das prévias, partes do governo chegaram a falar em retirar o Brasil do Mercosul, no caso de uma vitória da chapa de esquerda. A consideração não foi descartada, apesar das dificuldades econômicas, logísticas e políticas de uma atitude como esse.
Uma fonte governista disse à Reuters que a maior preocupação é o novo governo Argentino empatar negociações para a redução da TEC ou de novos acordos comerciais, e que o Brasil pretende ser mais duro na sua atuação no Mercosul.
Os governos brasileiros até hoje, segundo essa fonte, sempre pegaram leve com os Argentinos em nome de uma relação política e econômica estável, mas o atual governo não pretende mais se prender por isso.
Se a saída do bloco pode trazer mais prejuízos do que benefícios, uma proposta brasileira anterior - que chegou a ser discutida ainda no governo Temer - pode voltar à tona: desistir da união aduaneira para transformar o Mercosul em um bloco de livre-comércio.
Dessa forma, os países-membros teriam preferências comerciais para os demais, mas acabaria a tarifa externa comum e tratados de livre-comércio com terceiros poderiam ser feitos independentemente.
“Para qualquer dessas alternativas terá que haver uma negociação. Uma redução na TEC por exemplo pode ter que passar por uma lista separada para a Argentina. Para tudo isso tem que pelo menos conversar”, disse Barral.
SEM LIDERANÇA
O doutor em Relações Internacionais e professor da Fundação Getúlio Vargas Matias Spektor levanta uma outra consequência ainda mais ampla da quebra nas relações entre Brasil e Argentina: a falta de uma coordenação geopolítica que possa ajudar na estabilidade da região.
“Nós estamos entrando em um período muito perigoso para a América do Sul. Tem havido movimentos em vários países da região de muita ruptura. Em todas essas situações no passado a solução passou pela cooperação entre os principais países da região, que são Brasil e Argentina. O eixo geopolítico Brasília-Buenos Aires está na fonte da solução das maiores crises regionais desde o retorno da democracia”, afirmou.
Spektor lembrou, por exemplo, das tentativas de golpe no Paraguai em 1996 e 1998, o autogolpe de Alberto Fujimori no Peru, em 1992, e a crise institucional na Bolívia, em 2008, quando a região de Santa Cruz, controlada pela oposição, se rebelou contra o governo de Evo Morales.
“Em todas essas situações o entendimento entre Brasil e Argentina serviu como esteio para a estabilidade regional. Não ter isso agora abre uma área de incerteza enorme e de muita preocupação. Inclusive porque não é só que Brasil e Argentina estão em uma situação que uma cooperação nesse grau parece muito implausível, mas o fato de que há uma ausência de outras lideranças”, explicou.
Por algum tempo, o presidente do Chile, Sebastian Piñera, tentou ocupar esse vácuo, recriando o ProSul, bloco que tentava substituir a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) em uma versão sem a Venezuela, representou a região na reunião do G8. No entanto, Piñera foi atropelado pela sua crise interna e agora luta para tentar salvar seu governo.
“Não há mais capitão com capacidade de navegação. Esse é o efeito mais dramático dessa fricção crescente provocada pelo Brasil”, avaliou.
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