Reforma política precisa incluir recorte de gênero

“Mais de trezentos anos se passaram desde o assassinato de Olympe de Gouges, e nós mulheres continuamos sendo ‘guilhotinadas’ simbolicamente quando nos atrevemos a participar da arena política”



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A Revolução Francesa de 1789 foi um marco para a construção da sociedade contemporânea, ao abolir formalmente as estruturas do feudalismo na Europa. Ao lado dos líderes mais conhecidos daquele processo, como Robespierre, Marat e Danton, houve uma mulher. Olympe de Gouges foi o pseudônimo de uma escritora e dramaturga que participou intensamente do processo revolucionário. Ela foi decapitada pelos homens, jacobinos e girondinos, depois de lançar sua Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. Ela e seu grupo reivindicavam a igualdade de gênero no casamento e na participação política.

Mais de trezentos anos se passaram desde o assassinato de Olympe de Gouges, e nós mulheres continuamos sendo "guilhotinadas" simbolicamente quando nos atrevemos a participar da arena política.

Apesar de perfazermos pouco mais da metade da população do país, a proporção de mulheres participando dos espaços de poder permanece incrivelmente baixa. Na Câmara, por exemplo, o número de mulheres recuou da última legislatura para a atual. Somos hoje 45 mulheres, cerca de 8,7%, num universo de 513 deputados federais.

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No ano passado, a organização suíça União Interparlamentar divulgou um estudo onde o Brasil aparece em 104º lugar em participação parlamentar feminina, num ranking de 192 países. Mais do que investigar as causas dessa distorção, é preciso que o parlamento, neste momento no qual se discute a reforma política, tome uma posição contra a exclusão das mulheres da cena política nacional. A desigualdade de gênero na política brasileira é tão aberrante que estamos atrás de países teocráticos, como o Afeganistão, e de maioria muçulmana, como a Turquia.

Além de uma questão elementar de justiça e de respeito às mulheres, a sub-representação feminina no poder público e no Legislativo, especificamente, acarreta graves problemas à sua legitimidade política e à sua capacidade de avaliação e formulação sobre as questões de interesse da sociedade brasileira.

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É vital que possamos promover políticas públicas com recorte de gênero, que atendam às reivindicações das mulheres brasileiras. E especificamente na questão da exclusão das mulheres dos espaços de poder, tais políticas podem e devem ser reforçadas e efetivadas por meio de ações afirmativas.

Vejamos o caso da Argentina. Atualmente, cerca de 40% das cadeiras do Congresso daquele país são ocupadas por mulheres, um resultado muito expressivo. Na experiência argentina, houve a adoção, já em 1991, da lista fechada com a obrigatoriedade da ocupação de pelo menos 30% das vagas por mulheres. Como demonstram os percentuais, a ação afirmativa cumpriu seus objetivos: a proporção de mulheres no parlamento já ultrapassa os limites definidos pela lei. Mas isso só foi possível depois que a lei inicial foi alterada por uma emenda que instituiu a obrigatoriedade da alternância de gênero e as sanções correlatas. Antes da emenda, a lei parecia fadada ao fracasso, pois as mulheres eram sempre relegadas ao final da lista.

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Isso demonstra a importância e a capacidade que as ações afirmativas possuem de transformar, de modo estrutural, a realidade social. Tomando por exemplo a implementação das cotas raciais nas universidades públicas, vemos como as ações afirmativas têm a possibilidade de renovar o debate e sensibilizar os espaços para a problemática. Esse processo está acontecendo nas universidades públicas. E pode e deve acontecer também no Congresso.

A paridade de gênero no anteprojeto da Câmara

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Temos de saudar como um avanço o anteprojeto de reforma política da Câmara, apresentado em agosto pelo relator Henrique Fontana (PT), sobretudo por estabelecer o financiamento público exclusivo de campanha e instituir a lista partidária pré-ordenada (a lista fechada), dentro do chamado sistema misto. Nesse sistema, a lista fechada se limita a definir a ocupação de metade das vagas conquistadas pelo partido nos cargos proporcionais (vereadores e deputados), ficando a outra metade por conta da lista pós-ordenada, que já existe hoje. O financiamento público e as listas partidárias fechadas são medidas que contribuem sobremaneira para o aperfeiçoamento da democracia como representação de projetos políticos, e não de interesses pessoais ou econômicos.

No que se refere ao recorte de gênero, no entanto, a proposta a ser definida pela Câmara pode e deve avançar muito. No anteprojeto, a presença das cotas para mulheres se daria da seguinte forma: dentro dos 50% reservados para a lista partidária, teríamos a cota para mulheres fixada em 2 para 1, isto é, uma mulher para cada dois homens, sem preferência para as mulheres na hora do preenchimento dos cargos.

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Baseados na simples aritmética, os defensores da proposta argumentam que dela resultaria um percentual de aproximadamente 16% de mulheres na ocupação dos cargos legislativos. Aparentemente, trata-se de um avanço considerável em face dos cerca de 8% existentes atualmente. Os defensores do anteprojeto vão além, e somam esses 16% aos 8,7% existentes atualmente, antevendo a ocupação de cerca de 24% das cadeiras no Congresso pelas mulheres.

Entretanto, a política não se deixa reduzir à simples aritmética. Em primeiro lugar, é preciso considerar que, para que a cota seja cumprida completamente, é preciso que cada partido eleja pelo menos cinco parlamentares (ou um número múltiplo de cinco) em cada estado. Isso não é a regra. Na verdade, é a exceção.

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Além disso, dada a tradicional exclusão das mulheres da arena política e a consequente dificuldade de formação de lideranças femininas, provavelmente as ocupantes das primeiras posições da lista fechada serão aquelas que já exercem ou já exerceram mandato parlamentar, esvaziando-se as candidaturas femininas com capacidade real de vitória na lista pós-ordenada.

Portanto, ao invés da soma dos supostos 16% da cota nas listas fechadas com os 8% já existentes, o resultado mais provável é a divisão dos 8% já existentes entre as listas pós e pré-ordenadas, com dificuldades adicionais para as que participarem da lista pré-ordenada. É possível que a proposta, tal como está, venha a diminuir o número de mulheres no Congresso, ao invés de ampliar.

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Nós propomos cotas que estabeleçam a relação de paridade na lista fechada, com preferência para a mulher em cada dupla. Assim, em caso de eleição de um número ímpar de parlamentares, as mulheres sairiam favorecidas, e não prejudicadas. Somente assim a reforma política poderá criar um saldo positivo, do ponto de vista da igualdade de gênero.

O PT aponta o caminho no IV Congresso

O Congresso Nacional deveria observar o exemplo dado pelo Partido dos Trabalhadores, na etapa extraordinária de seu IV Congresso, realizada no início do mês. Na reforma do estatuto partidário, nós mulheres petistas conquistamos a paridade nas instâncias de direção do PT. As instâncias também terão cotas étnico-raciais, para negros e índios, e para a juventude.

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