A UDN de porre
Jânio Quadros e o peso da igreja Matriz de Santarém nas eleições presidenciais
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Vi Jânio Quadros uma única vez. Candidato à presidência da República, ele fez comício-relâmpago na escadaria da igreja Matriz de Santarém, no Baixo-Amazonas, interior do Pará. No gogó, sem microfone nem nada. Moleque, no meio da multidão, ouvi o discurso quase na cintura dele, abismado com a loquacidade daquela figura de terno azul-marinho e sem gravata no calor tropical.
Jânio foi caitituar votos lá na caixa prego – nas bandas em que golpistas facinorosos liderados por oficiais da Aeronáutica iniciaram movimento em 11 de fevereiro de 1956 para derrubar JK, que tinha acabado de assumir:
“Eu ainda nem tive tempo de errar”, reclamou lá no Palácio do Catete.
Amazônia ocupa metade do Brasil. À época, sua representatividade eleitoral era menor ainda. Também não era bolinho chegar ali. Mas nada impediu que o candidato de um tal PTN (Partido Trabalhista Nacional), adotado pela UDN para enfim ganhar uma, fosse dar seu recado nas principais cidades do Amazonas.
Fez o mesmo na outra metade do país. Imagine quanta estrada, poeira, abraços, beijos, buchadas de bode, pastel de feira, sanduíches de mortadela, rodadas de chimarrão, conversa no pé do ouvido, discursos e quanta canseira o consumiram até a esmagadora vitória em 3 de outubro de 1960. Pra tudo se acabar em 25 de agosto de 1961, sete meses depois da posse, Dia do Soldado, Dia da Bebedeira, a “força terrível” que levou Jânio à renúncia. Ele era mesmo a “UDN de porre”.
Cinquenta anos depois, o ator Paulo César Pereio, meu amigo, que mora em São Paulo, prepara-se para alguns dias em Porto Alegre. O ator, gaúcho do Alegrete, que sempre fez política sem a camisa-de-força dos partidos, agora pré-candidato a vereador pelo PSB paulistano nas eleições municipais de 2012, vai participar de “Legalidade, o Musical”, espetáculo que faz parte das comemorações do movimento de resistência democrática pela legalidade, liderado cinco décadas atrás pelo governador Leonel Brizola para dar posse ao vice, Jango, que estava na China chefiando delegação diplomática quando Jânio entregou a rapadura.
O movimento, apoiado pelo povo e pelo III Exército, se propagava na Rede da Legalidade, uma cadeia de rádios que levava a voz de Brizola e outros líderes a todos os pontos do país – quando os golpistas barravam a transmissão, os técnicos do movimento mudavam a freqüência e furavam a barreira. A Cadeia da Legalidade tinha o Hino da Legalidade, composto por Lara Lemos, poeta, Madelaine Rufier, professora de música, e Pereio.
É bom que a Cadeia da Legalidade, que garantiu a posse de Jango, cujo governo durou 1.275 dias, renda agora uma bela festa. Comemora-se um dos melhores espetáculos da Terra: o povo nas ruas por uma causa eletrizante.
Mas não posso fugir à lembrança de que Brizola perdeu o lugar no segundo turno em 1989 justamente por -- que ironia! -- não seguir a receita de Jânio e do próprio Getúlio.
Vamos circular.
Na eleição de 1950, Getúlio deixou o “exílio” na fazenda em Itu, no Rio Grande do Sul, direto para as convenções do PSD e do PTB, no Rio. Depois percorreu as capitais e as cidades mais importantes num Curtiss Command. Nos comícios, lia seus discursos.
Jânio, que morria de medo de avião, na verdade participou de duas campanhas presidenciais. A dele e a de Juarez Távora – a UDN parecia puta rampeira: adorava uma farda. Juarez, cearense, entreguista, reacionário e antipático, ex-aliado de Vargas, participaria depois das conspirações que o depuseram em 1945 e o levaram ao suicídio em 1954. Ele foi derrotado por JK na eleição de 1955 por estreita margem, o que deu ensejo a outra tentativa de golpe gorilo-udenista ou udeno-gorilista. Mas um cearense, o marechal Castelo Branco, que não tinha o mínimo de beleza para exercer as virtudes do espírito, no dizer de Millôr, só chegaria à presidência pela força das armas, em 1964.
Sem qualquer carisma, Juarez Távora era uma mala sem alça. Precisava ser carregada nos comícios Brasil afora por Jânio e Carlos Lacerda, o gênio do mal, brilhantes oradores já plantando seus nomes para a presidência.
Em 1989, Brizola marcou touca. Quem o acompanhou de perto conta que passou metade da campanha trancado em seu apartamento na avenida Atlântica, cercado de puxa-sacos, já dividindo um futuro governo.
Deixou mais de 30 mil pessoas o esperando em Vitória da Conquista para o maior comício da história daquela cidade baiana, terra de Glauber Rocha. Cidade rica, elitista, politizada. Mandou seu vice, Fernando Lyra, recebido com estrondosa vaia.
Repetiu a dose em Uberlândia, uma das cidades mais ricas do país, à frente de algumas capitais em renda per capita e em IDH. Era apoiado ali pelo deputado federal Chico Humberto, mas apanhou bonito. Visitou São Paulo meia dúzia de vezes.
Só pra dar um ideia: Collor tinha uma campanha bem organizada, jatinhos, helicópteros, grana; Ulysses, a máquina do PMDB; Lula, a militância petista e a emoção na TV -- só não tinha tutu, pegava voo comercial.
Enquanto Collor visitava 10, 12 cidades por dia, em dois, três Estados, Brizola saía do Rio e voltava para dormir em casa. Viajava dois ou três dias por semana. Achava que o segundo turno estava no papo, que a fatura estava garantida. No Learjet em que viajava, determinava quem sentava onde: “O Roberto D’Ávila senta aqui no sofá comigo”. O avião às vezes decolava com várias das oito poltronas vazias. Resultado: Collor, 22,6 milhões de votos; Lula, 11,6 milhões; e Brizola, 11,1 milhões.
Eu, que torcia apaixonadamente por Brizola, pergunto: “Custava fazer um discurso na escadaria da igreja Matriz de Santarém, custava?”
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