Por: Manu Joseph
Site: Mint – Nova Délhi
Em qualquer cidade do mundo desenvolvido, os espaços à beira das estradas não têm buracos e as linhas divisórias das pistas de tráfego continuam até ao infinito. Os carros permanecem na sua mão mesmo em curvas apertadas, como se fossem comandados por satélite. Param alinhados nos semáforos e, quando o fazem, há tanto silêncio e calma que se chegam a confundir com carros estacionados. As calçadas são largas e feitas de pedras e revestimentos caros, como se os pedestres tivessem importância. Por que será que tudo isto desconcerta os indianos?
Também não se percebe a razão pela qual, ao fim de algum tempo de imersão neste mundo de riqueza, ordem e progresso, os indianos anseiam regressar a casa, um lugar onde apenas há ordem quando visto a um quilômetro de altitude. À medida que o avião desce em qualquer aeroporto da Índia, as linhas acentuadas das estradas tornam-se ambíguas; as linhas geométricas da civilização dissolvem-se em formas irregulares; os aglomerados de casas começam a assemelhar-se a infestações de insetos. Na estrada, o civismo é entendido como algo ingênuo, quase tolo. O ar está cheio de partículas poluentes e de ruídos. Por que é que a reentrada no caos civilizacional total traz conforto aos indianos? Por que os faz felizes? É uma felicidade condicional, que aceita as coisas como são, mas que não deixa de ser felicidade. Ao contrário do desespero que sentem na presença das economias avançadas. Os turistas, até mesmo os residentes, partilham deste sentimento.
Excesso de ordem prejudica?
Alguns dizem que os lugares ditos civilizados não têm “alma”, que as pessoas são demasiado formais e que a vida é, de alguma forma, solitária. Outros dizem que não se sentem em casa. Há quem seja mais explícito e aponte ao cerne das coisas. O que os perturba em relação ao mundo desenvolvido é também a razão que os leva a visitá-lo: a ordem, as preciosas regras, as linhas retas e os círculos perfeitos da vida, a dignidade da formalidade, a calma da sofisticação, a facilidade de tudo.
Será que os indianos desprezam assim tanto a ordem? Será que quando nós, seres humanos, dizemos que somos animais, o dizemos de uma forma poética, metafórica? Como podemos não gostar de ordem quando esta é obviamente um dos nossos objetivos mais importantes enquanto espécie? Ou será que a ordem é um requisito do DNA branco, uma invenção do cristianismo, ou será a neurose de uma minoria que colonizou uma maioria?
A minha suspeita em relação aos indianos mais refinados leva-me a crer que conceberam noções românticas acerca do seu amor pela desordem, para esconder o que realmente os atormenta no mundo desenvolvido: o colapso da hierarquia social de rua. Deixam de ser elites. De fato, muitos deles passam a ser a classe mais baixa nesses lugares estrangeiros. Contudo, até mesmo esta hipótese é posta em causa, senão destruída, pelo fato de que até os indianos pobres, quando deslocados e colocados em economias avançadas, se sentem desorientados perante tanta ordem. Ao mesmo tempo, os ocidentais, incluindo pessoas sensatas, parecem querer discernir um significado no caos indiano, exceto quando têm de conduzir um carro através do dito…
O encanto da desorganização
Pode haver alguma beleza na desordem, algo que apela à ideia inata de liberdade humana. Tem as suas misérias, mas salva os indianos do aborrecimento de serem iguais aos outros todos. Isso não tem apenas que ver com a forma como todo o mundo guia um carro na Índia.
No ano passado, o meu condutor de Uber parou o carro, tirou a garrafa de água debaixo do banco e foi defecar à beira da estrada. E lá fiquei eu no carro, no acostamento de uma via expressa com oito pistas que liga a capital do país ao seu principal subúrbio, à espera que um homem acabasse de cagar. Um homem que me tinha sido apresentado por um algoritmo complexo, financiado por muitos milhões de dinheiro pós-moderno. Perguntei-me, enquanto esperava que o homem acabasse o serviço, se aquele momento era cultura. Se o progresso econômico tende a matar tais momentos, não será isso a destruição de algo intrinsecamente indiano ou, pelo menos, de algo que é intrinsicamente um rasgo de pobreza? A pobreza não é só uma condição econômica. É também um traço muito marcado do comportamento humano. Poderia este momento ter acontecido na Europa? O evento teve duas partes distintas: o ato de o motorista parar no acostamento da via expressa e o ato de fazer aquele serviço no acostamento de uma via expressa. Talvez tenha havido um terceiro ato: o cliente deixou acontecer, esperando pacientemente no carro. Nenhum desses atos teria sido possível numa nação rica. O valor do momento não residiu no fato de ter sido um devaneio (não foi) mas no fato de poder acontecer.
A simetria é a única forma de ordem na natureza. O resto não é caos mas também não é ordem. Por isso, talvez as pessoas vejam na ordem absoluta algo antinatural, quem sabe até uma escravização à autoridade. É um ressentimento visível perante o novo regime financeiro que o Governo está tentando implantar. A resistência à mudança não vem apenas daqueles que detestam tudo o que Nahendra Modi – atual primeiro-ministro da Índia – tenta fazer mas também do indiano médio, que começa a sentir que o Governo está espremendo toda a informalidade da economia.
Na língua inglesa existe uma diferença fundamental entre liberdade (freedom), algo animal, e liberdade (liberty), que é uma invenção humana. Esta parte da ideia de que temos de abrir mão das nossas liberdades (freedom) e delegá-las a uma autoridade benigna, que nos dará em troca um número limitado de autonomias.
Onde estão as pessoas?
Frequentemente, a consequência da ordem urbana é a ótica da solidão. Quanto mais avançado for o Governo, mais eficiente será em esconder os seres humanos e os animais. É por isso que a primeira reação dos indianos em muitos belos subúrbios do mundo é perguntar onde estão as pessoas.
Isto não sucede apenas pelo fato de que muitos lugares terem menos pessoas do que aquilo a que os indianos estão habituados mas também porque o planejamento urbano e a ordem limitam a densidade visível de pessoas.
A desordem indiana, para além de nos mostrar pessoas, vacas e porcos, também transforma a nação num videogame gigante. Cada momento no espaço público é feito de navegação por entre eventos imprevisíveis, por vezes perigosos, mas usualmente só difíceis.
O triunfar sobre os muitos desafios diários, sobreviver à travessia do espaço público, ou testemunhar de muito perto outros a fazer o mesmo, talvez nos dê alguma transcendência onde não chegaríamos tão facilmente com uma vida mais eficiente, feita de frivolidades. É possível que os indianos se sintam atraídos pela desordem porque ela nos salva de uma vida solitária, tediosa e aborrecida. Talvez fosse mais ordenada e segura, mas seria sempre uma grande chatice.
(*) Sobre o autor: Antigo chefe de redação da revista indiana OPtN, o escritor e jornalista Manu Joseph foi durante muitos anos cronista do jornal The New York Times.
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