Tudo mudou em Bagdá. Quando minha mãe usava minissaia

Hoje, em Bagdá, só se veem mulheres vestidas de negro. Mas até ao fim dos anos 70, as iraquianas vestiam roupa leve, colorida e não se tapavam dos pés à cabeça.

Hoje, em Bagdá, só se veem mulheres vestidas de negro. Mas até ao fim dos anos 70, as iraquianas vestiam roupa leve, colorida e não se tapavam dos pés à cabeça.
Hoje, em Bagdá, só se veem mulheres vestidas de negro. Mas até ao fim dos anos 70, as iraquianas vestiam roupa leve, colorida e não se tapavam dos pés à cabeça. (Foto: Luis Pellegrini)


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Mulheres iraquianas xiitas se reúnem para rezar usando roupas escuras em modelo de inspiração iraniana. 

 

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Por: Manal al-Cheikh

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Fonte: Site Al-Modon, Beirute

 

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Em meados dos anos 80, quando minha irmã mais velha se casou, nossa mãe comprou-lhe um vestido para a cerimônia. As mangas cobriam-lhe completamente os braços, juntamente com um xale que lhe tapava as costas. Evidentemente, o vestido não tinha decote.

Ao escolher este vestido, minha mãe resolveu nos contar como tinha sido o seu vestido de casamento. Na altura, nos anos 60, o tecido era de cetim branco com tafetá. O vestido deixava as costas a descoberto, tinha decote e mostrava meia perna. Mais tarde, ofereceu o vestido a uma parente e nunca mais soube o que aconteceu com ele.

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Ao entrar na puberdade, as meninas iraquianas são agora obrigadas  cobrir as cabeças e todo o corpo. 

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Um guarda-roupa secreto

Ao ouvi-la falar sobre a roupa daqueles tempos, tive vontade de saber mais e pus-me a vasculhar as coisas velhas, cuidadosamente guardadas dentro de malas empilhadas na nossa antiga casa. Aproveitava quando mamãe estava ausente ou quando fazia a sua siesta para descer ao porão e abrir as malas.

Retirava as roupas, colocando- as no chão pela ordem, para depois poder arrumar a mala e deixar tudo como estava antes.

Um dia, dei com o que restava do seu enxoval. Nem podia crer nos meus olhos, ao ver aquelas peças de uma extrema beleza. Todas as roupas se assemelhavam ao que se usava no Ocidente. Havia sapatos com afiados saltos agulha; rendas e sofisticados sutiãs para favorecer os seios, tal como corpetes para definir a cintura.

Numa outra mala, dei com roupas magníficas da década seguinte: minissaias, blusas colantes, collants transparentes, sem esquecer um grande número de roupa para sair à noite, bordada a mão. Minha mãe usou tudo isto até meados dos anos 80.

 

Para andar na rua, esta menina da capital iraquiana é obrigada a se cobrir inteiramente com um véu.

 

Memórias de uma juventude livre

Então, fui à procura do álbum de fotografias da sua juventude, que ela cuidadosamente escondera de nós. Ai descobri minha mãe, uma mulher em toda a sua elegância. Numa das fotos, estava sentada com o meu pai numa esplanada, com vista panorâmica para o rio Eufrates.

Uma outra foto mostra-a de cigarro na mão, na companhia da família, diante de uma mesa cheia de copos com bebidas alcoólicas. Aproveitei também as visitas que fazíamos às nossas tias para ver as suas fotos antigas. Aí também apareciam mulheres instaladas em cafés, ou sentadas descontraídas à beira de piscinas.

Bombardeei então minha mãe com perguntas, para saber porque tinha passado a usar véu, renunciando à elegância de outros tempos. A resposta era sempre a mesma: “Agora, já não tenho idade para isso..." Obviamente, essa não era a verdadeira razão. Se tantas mulheres começaram a usar véu desde o inicio dos anos 80, isso deve-se a razões históricas.

 

As poucas mulheres católicas que permanecem no Iraque são pressionadas para usar o véu não apenas dentro mas também fora das igrejas.

 

A moda como elemento de poder

Em todas as guerras que devastaram o Iraque, o poder temeu que as forças de oposição procurassem beneficiar das dificuldades da guerra, levando a população a rebelar-se. Os iraquianos estavam mergulhados na perplexidade perante a revolução islâmica no Irã (1979) e temiam que o mesmo cenário se desse em Bagdá. Ao alterar o seu guarda-roupa, as iraquianas quiseram garantir que não irritavam os islâmicos mais radicais que começavam a ascender ao poder.

No Iraque, certas forças da oposição jogavam abertamente a cartada da religião islâmica para se diferenciarem do regime. As questões relacionadas com a moral ocupavam um lugar importante no seu discurso. Apesar das prisões em massa que Saddam Hussein ordenava regularmente para calar essas vozes que não paravam de denunciar as ideias “laicas" do Partido Baas, este acabou por estabelecer um compromisso com a oposição, em detrimento da linha ideológica do partido que, em princípio, preconizava a liberdade da mulher e a igualdade entre sexos.

 

Apenas as elites iraquianas ainda conseguem fugir às imposições islâmicas quanto ao vestuário. Na foto, um desfile de moda em Bagdá, realizado em 2015 no Royal Tulip Hotel.

 

Assim se deu início a uma campanha de "re-islamização" que avançou a pequenos passos. No inicio dos anos 80, a separação entre meninos e meninas na escola primária foi a medida mais marcante que reforçou o conservadorismo religioso.

Em seguida, os fundamentalistas foram os primeiros a louvar a decisão do regime de proibir o consumo de álcool em público.

Após a Guerra do Golfo pela libertação do Kuwait, em 1991, o estado das liberdades pessoais se agravou ainda mais. O embargo econômico, que viria a durar mais de dez anos, levou à partida das elites intelectuais. Muitos abandonaram o país. Foi nessa altura que os mercadores da religião de certos países ricos do Golfo Pérsico inundaram generosamente o país com a propaganda das correntes fundamentalistas.

Acabaram-se as minissaias e os maiôs de banho à beira da piscina. Paralelamente, o véu e o niqab entravam na universidade. Isto também é explicado pelas dificuldades econômicas de numerosas famílias, porque a roupa considerada "decente" (um simples tecido em forma de túnica] era mais barata do que as outra roupas, quase sempre de inspiração ocidental.

 

No centro de Bagdá, essa mulher foi às compras vestida de preto e com a cabeça coberta pelo véu.

 

Cristãos ditavam as novas tendências

Esta situação sinistra também se agravou com a emigração dos cristãos, que deixaram o país aos milhares, num exílio de massa que atingiu o seu paroxismo nos anos 90. Eram os cristãos que adotavam as novas modas e os elementos de modernidade, para assim se ambientarem. Nós, muçulmanos, seguíamos o exemplo, fascinados pelo fato de os cristãos conseguirem se adaptar tão rapidamente às novas modas. Na verdade, a maior parte das participantes nos concursos de beleza, que fizeram enorme sucesso no Iraque entre os anos 40 até aos anos 70, eram moças cristãs ou judias.

A partida dos cristãos, voluntária ou não, teve um impacto negativo nas liberdades de toda a população do país. Isso contribuiu para criar nos muçulmanos de todas as orientações uma única referência social que permitiu a imposição do hijab à iraniana (entre as muçulmanas xiitas] e o níqab à saudita (entre as muçulmanas sunitas).

Foi assim que, com as guerras e as crises que se sucederam no Iraque, a minissaia desapareceu da paisagem. Foi substituída, por um lado, pelo abaya (tipo de vestido largo, geralmente preto, que cobre o corpo, os braços e os pés, ou até mesmo a cabeça da mulher) importado do Golfo (Pérsico) e pelo manto (tipo de túnica comprida usada sobre as calças). Foi assim que o negro apagou todas as cores vivas que, outrora, valorizavam os corpos femininos e respiravam vida.

 

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