Por: Luis Pellegrini
Fonte: www.luispellegrini.com.br
Sempre gostei de galinhas, desde menino. Por sinal, no começo da adolescência, mantive durante dois anos uma pequena granja Em São Carlos, no interior de São Paulo, onde nasci. Até hoje, quando na minha vida o cinto aperta, a cobra começa a fumar ou a porca torce o rabo, tenho um sonho recorrente que sempre chega como um alívio. No sonho, acordo ao alvorecer com o canto de uma galinha que acabou de botar um ovo. Vou ao fundo do quintal, pego o ovo e o levo para a cozinha, para inclui-lo no meu café da manhã. Quando o quebro, a gema é grande e muito vermelha, de uma cor completamente diferente da dos ovos de supermercado dos nossos dias. A alegria que sinto ao ver essa gema é enorme, misturada à nostalgia de um tempo que já se foi. Ainda vou levar esse sonho para algum terapeuta interpretar…
As galinhas que salvaram a civilização ocidental surgiram, segundo a lenda, à beira de uma estrada na Grécia na primeira década do século 5 aC. O general ateniense Temístocles, em seu caminho para enfrentar as forças persas invasoras, parou para assistir a uma rinha na qual dois galos combatiam ferozmente. O militar convocou suas tropas e disse: “Esses dois não lutam por seus deuses, pelos monumentos de seus antepassados, pela glória, para a liberdade e a segurança de seus filhos. Lutam apenas porque um não cederá seu lugar ao outro”.
O conto não descreve o que aconteceu com o galo perdedor (que provavelmente terminou seus dias numa panela), mas a história registra que os gregos, assim encorajados, passaram a repelir os invasores, preservando a civilização que hoje homenageia aquelas mesmas criaturas – torcendo os seus pescoços, depenando-as, fritando-as, assando-as ou cozinhando-as no molho pardo. Desde então a galinha – e suas ramificações, o ovo, o galo, o frango, o galeto – tornou-se a rainha onipresente das nossas cozinhas.
Galinhas eram, e ainda são, um animal sagrado em várias culturas. A prodigiosa galinha era um símbolo mundial de nutrição e fertilidade. Ovos eram pendurados em templos egípcios para garantir uma abundante inundação do rio Nilo. O galo libidinoso, sempre arrastando a asa para alguma bela, era um significante universal da virilidade. Era também, na antiga fé persa do zoroastrismo, um espírito benigno que cantou ao amanhecer para anunciar um ponto de viragem na luta cósmica entre a escuridão e a luz.
Para os romanos, uma das virtudes da galinha era a da adivinhação, especialmente durante as guerras. Galinhas acompanharam os exércitos romanos, e seu comportamento foi cuidadosamente observado antes da batalha: Um bom apetite significava que a vitória era provável. De acordo com os escritos de Cícero, quando um contingente dessas aves se recusou a comer antes de uma batalha marítima em 249 aC, um cônsul irado as atirou ao mar. A história registra que ele foi derrotado.
Uma grande tradição religiosa, a judaica – aquela que deu origem à sopa de galinha com bolas de matzo, e também ao jantar de frango no domingo – até hoje mantém o tradicional rito do kaparoth, uma cerimônia tradicional de purificação, na qual um rabino segura uma galinha (preta para os homens, branca para as mulheres) pelas pernas, e a faz rodar diversas vezes ao redor da cabeça e do corpo de um fiel, enquanto pronuncia cânticos litúrgicos e orações. A total semelhança com o que acontece nos nossos terreiros de candomblé não é mera coincidência…
O sucesso da galinha, do galo e do frango teve outras conotações religiosas. Em Levítico 5: 7, quando se fala da eximição de alguma culpa, a oferta em sacrifício de duas rolas ou pombos é aceitável se o pecador em questão for incapaz de pagar um cordeiro. Mas em nenhum caso o Senhor pede uma galinha. Mateus 23:37 contém uma passagem na qual Jesus compara seu cuidado com o povo de Jerusalém a uma galinha cuidando de sua ninhada. Essa imagem, se tivesse sido capturada, poderia ter mudado completamente o curso da iconografia cristã, que foi dominada em vez disso por representações do Bom Pastor com seu rebanho de ovelhas.
Nossas queridas e generosas galinhas, apesar de modestas, não escaparam à regra. Recente estudo publicado na revista Molecular Biology and Evolution colocou em relevo as práticas religiosas vigentes na Idade Média na Europa e a seleção praticada sobre as galinhas para favorecer a sua criação, adaptando-se ao mesmo tempo à doutrina.
Descendente direta dos dinossauros, como todas as aves, a galinha é um pássaro silvestre originário do sudeste asiático. Os seres humanos começaram a criá-las num contexto doméstico há cerca de 6 mil anos. Desde então, sobre o Gallus gallus domesticus (o atual frango doméstico) foi praticada uma constante seleção para privilegiar as características mais úteis ao homem.
Analisando o Dna de ossos fósseis de galináceos, os cientistas conseguiram observar os resultados desse longo e paciente trabalho de seleção, até chegar à obtenção de animais capazes de por ovos o ano todo (em vez de apenas durante a estação reprodutiva, que ocorria geralmente no começo da primavera). Tal característica, à luz da genética, se traduz em galinhas portadoras do gene TSHR. Outras características selecionadas pelos criadores no decorrer da Idade Média, e que os estudos reconduzem ao mesmo gene, são a capacidade de botar ovos quando ainda são muito jovens e a redução do medo em relação aos seres humanos e os próprios similares. Essas são pré-condições indispensáveis ao desenvolvimento e ao sucesso da criação intensiva e em larga escala.
Nos dias consagrados, comia-se galinhas
Na Idade Média, o consumo de galináceos como alimento adquiriu enorme importância graças aos dias (sextas-feiras) e períodos durante os quais era proibido aos fieis cristãos o consumo de carne vermelha bem como a de qualquer animal de quatro patas. Mas as galinhas, com apenas dois pés, estavam fora da proibição. Essas aves eram então abatidas e consumidas em grande número. Criar galinhas tornou-se um bom negócio, e isso, além de facilitar a sua rápida difusão, levou os criadores a trabalharem intensamente na seleção genética do animal. Hoje, aquela específica variante genética está presente em praticamente todas as raças comerciais. 99% das galinhas possuem o gene TSHR.
Foi durante o século 9 da nossa Era, na Europa, que os aglomerados urbanos e as cidades, ainda pequenas, começaram a se expandir, com frequência incorporando vastas áreas até então dedicadas à agricultura e à criação de animais. Com suas galinhas constrangidas a viver em espaços cada vez menores, os criadores, desejosos de manter os seus animais, incrementaram ainda mais os processos de seleção.
O fato é que, como explicam os pesquisadores, ao redor do ano 800 d.C., em plena Idade Média, a galinha tornou-se o animal mais importante em termos de finalidade gastronômica. Para começar, ela põe ovos: maravilha natural de mil e uma utilidades. Mas não apenas: as plumas dessas aves parecem feitas sob medida para encherem travesseiros e almofadas; sua gordura foi muito usada para a fabricação de pomadas e unguentos, e também para ser queimada em lamparinas para a iluminação; seus dejetos, depois de curtidos durante algumas semanas, viram um fertilizante perfeito para as hortas caseiras. As galinhas são como as vacas, símbolo maior da mãe: delas tudo se aproveita e elas se dão inteiras, sem nada pedir em troca. Como as vacas na Índia, as galinhas são sagradas. Deveríamos ter essa convicção sempre presente, toda vez que degustamos um frango assado, ou um omelete aux fines herbes.
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