Sonhos lúcidos: Assumindo as rédeas no mundo onírico
Os sonhos lúcidos abrem as portas para o sonhador comandar a ação – e, com isso, possibilitar desde a solução de problemas de saúde até o aumento da confiança e o autodesenvolvimento.
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Por Júlio César Borges
Toda noite, bilhões de pessoas dormem – e sonham. Na maioria desses sonhos, somos apenas atores, sem consciência de que somos atores. É como se um diretor desconhecido nos escolhesse como protagonistas, depois de definir o cenário, o roteiro e o elenco. Algumas pessoas, porém, conseguem sair dessa inconsciência enquanto sonham e passam elas mesmas a comandar a ação. É o sonho lúcido – um fenômeno estudado pela ciência há menos de três décadas e demonstra potencial para revolucionar tratamentos de saúde física e mental, aumentar a criatividade e ajudar seus praticantes a crescer interiormente.
Embora tenham sido objeto de considerações de Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, os sonhos lúcidos só foram encarados de forma mais sistemática a partir de um nobre francês, o marquês Hervey de Saint-Denis, cujos estudos de 20 anos foram condensados no livro Sonhos e como Guiá-los, de 1867. O trabalho de Saint-Denis foi elogiado pelo próprio Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, que, na segunda edição de seu A Interpretação dos Sonhos, observou: “Existem algumas pessoas que permanecem quase conscientes durante a noite, quando estão dormindo e sonhando e que, portanto, parecem ter a faculdade de direcionar seus sonhos conscientemente. Se, por exemplo, um sonhador desse tipo estiver insatisfeito com o rumo tomado por um sonho, pode interrompê-lo sem acordar e recomeçá-lo em outra direção – como um dramaturgo popular sob pressão pode dar a sua peça um final mais feliz.”
Saint-Denis foi elogiado por Freud
Mesmo com o endosso de Freud, os sonhos lúcidos ainda eram vistos com reservas no fim do século 19 e início do século 20. O psiquiatra e pesquisador de sonhos holandês Frederik Willem van Eeden investiu contra esse ceticismo ao apresentar, em 1913, um detalhado trabalho sobre o tema à Sociedade de Pesquisa Psíquica (SPR, na sigla em inglês) britânica. Frederic Myers, professor de Cambridge e um dos fundadores da SPR, tivera três experiências de sonhos lúcidos e considerava que o tema devia ser estudado.
Criador da expressão “sonhos lúcidos” – os quais conhecia por experiência própria –, Van Eeden analisou 352 deles em seu relatório para a SPR. No trabalho, ele descrevia características próprias de seu objeto de estudo: “(Nos sonhos lúcidos) a reintegração de funções psíquicas mostra-se tão completa que o adormecido (...) alcança um estado de perfeita consciência, tornando-se capaz de direcionar sua atenção e de tentar diferentes atos de livre volição. Mesmo assim, o sono (...) continua imperturbável, profundo e refrescante.”
No relatório, o holandês descreveu uma experiência que fez em estado de sonho lúcido. Ele se viu de pé, diante de uma janela e perto de uma mesa sobre a qual havia diversos objetos. “Tinha perfeita consciência de estar dormindo e imaginei que experimento poderia fazer. Comecei tentando quebrar um vidro com uma pedra. Coloquei uma pequena lâmina de vidro sobre duas pedras e bati com outra pedra, mas ele não quebrou. Então, peguei na mesa um fino copo de vinho e dei-lhe um soco com a mão fechada (...), pensando ao mesmo tempo que aquilo era muito perigoso na vida em vigília. E o copo ficou intato. Mas quando olhei de novo, depois de algum tempo, estava quebrado.”
Esse lapso de tempo passou a Van Eeden a impressão de que estava em um “mundo de mentira”, diferente do real por pequenas discrepâncias. Ele então resolveu jogar os cacos pela janela, esperando o ruído que fariam ao chegar ao chão. Não só ouviu o barulho, como observou dois cães afastando-se dos cacos. “Pensei que esse mundo de faz-de-conta era mesmo uma boa imitação. Depois, vi uma garrafa com vinho clarete e fui prová-lo, pensando com clareza: ‘Bom, também podemos ter sensações voluntárias de paladar nesse mundo de sonhos – o sabor do vinho é perfeito.”
O corpo, nos sonhos lúcidos, não é o corpo físico
Van Eeden tinha noção clara de que seu corpo, nos sonhos lúcidos, não era o corpo físico. “(...) a sensação de ter um corpo – com olhos, mãos, uma boca que fala e assim por diante – torna-se perceptível; mesmo assim eu sei, ao mesmo tempo, que o corpo físico está dormindo e ocupa uma posição bem diferente.” Para ele, a sensação era de “passar de um corpo para outro e de haver uma diferente recordação dupla dos dois corpos”.
A maioria dos cientistas ainda não se dava por vencidos. Em sua maioria, eles viam o fenômeno como uma mera curiosidade – um “microdespertar” durante o sono. Essa visão só mudaria nos anos 80, quando Stephen LaBerge, um jovem pesquisador da Universidade Stanford, na Califórnia, demonstrou que era possível uma pessoa comunicar-se com observadores durante um sonho lúcido.
Segundo LaBerge, os sonhos lúcidos eram freqüentes em sua infância. Essas experiências rarearam com o tempo, mas não sumiram, e ele decidiu eleger os sonhos lúcidos como tema de sua tese de doutorado em psicofisiologia, em 1977.
Para isso, era fundamental aumentar o número de sonhos desse gênero. LaBerge escolheu inicialmente uma técnica da psicóloga Patricia Garfield, segundo a qual o sonhador diz a si próprio, antes de deitar, que quer ter um sonho lúcido. O método o levou a ter uma média mensal de cinco sonhos lúcidos e serviu como modelo inicial para ele desenvolver sua própria técnica, a Indução Mnemônica de Sonhos Lúcidos (na sigla em inglês, MILD). Com ela, LaBerge chegou a mais de 20 sonhos lúcidos por mês, com picos de quatro experiências do gênero por noite.
Na próxima vez, quero lembrar que estou sonhando
Por esse método, a pessoa, ao despertar de um sonho, memoriza seu conteúdo – uma forma de aprimorar a capacidade de se lembrar dos sonhos. Nos 10 a 15 minutos seguintes, ela pratica uma atividade que requeira lucidez. Perto de dormir novamente, afirma para si própria: “Na próxima vez que sonhar, quero lembrar que estou sonhando” – e se vê participando no sonho que teve pouco antes, consciente desse estado.
LaBerge conseguiu outro feito importante: avisar durante o sono, por meio de um sinal nítido, que um sonho lúcido está começando. Para isso, recorreu aos poucos músculos que podem ser acionados enquanto o sono está no estágio REM (de Rapid Eye Movement, “Movimento Rápido do Olho”, a fase do sono na qual ocorrem os sonhos). Cobaia da primeira experiência do gênero no Laboratório do Sono de Stanford, LaBerge escolheu como seu sinal dois movimentos verticais dos olhos e passou a gravar toda noite em um polissonógrafo (aparelho assemelhado a um detetor de mentiras) suas ondas cerebrais, movimentos oculares, do queixo e do pulso. Após uma série de tentativas, identificou numa gravação os sinais que planejara transmitir. A fim de diferenciar esses movimentos daqueles comuns ao sono REM, ele criou outro sinal, associado ao código morse: fechar a mão esquerda significava um ponto, e a direita, um traço. Um eletromiógrafo (aparelho que mede a atividade muscular) registrou o sinal planejado: as iniciais do nome de LaBerge.
As experiências em Stanford confirmaram algumas das informações do trabalho de Van Eeden. A maioria dos sonhos lúcidos, por exemplo, ocorre entre as cinco e as oito da manhã, o que coincide com os períodos REM mais longos; neles, as cores, a luz e as sensações revelam-se mais intensas do que as de um sonho normal. Outra característica comum é o conteúdo emocional, mais forte e frequentemente positivo.
Considera-se que entre 5% e 10% da população experimenta sonhos lúcidos. Ainda não se sabe o que essas pessoas têm em comum, mas alguns pesquisadores arriscam hipóteses. Jayne Gackerbach, psicóloga da Universidade de Iowa Setentrional, observou que sonhadoras lúcidas eram propensas a ser mais criativas e aventureiras quando em vigília. Os homens com esse tipo de experiência, segundo Jayne, mostravam-se mais ansiosos do que as mulheres, mas todos tendiam menos à depressão ou à neurose.
Segundo os psicólogos que estudam essa área, quem não tem sonhos lúcidos espontaneamente pode desenvolver essa faculdade, desde que tenha motivação e aprenda como lembrar-se bem de seus sonhos. Técnicas específicas, como as de Patricia Garfield e de LaBerge, ajudam nesse sentido. O pesquisador de Stanford criou óculos plásticos com sensores que acionam uma luz vermelha pulsante quando quem os usa entra no período REM do sono, a fim de alertar a pessoa para conscientizar-se de que está sonhando.
Tocar uma campainha no início do sonho
Os estudiosos dos sonhos lúcidos vislumbram no fenômeno importantes possibilidades terapêuticas. Uma delas é vencer os pesadelos recorrentes. A psicóloga Rosalind Cartwright, do Centro de Auxílio e Pesquisa dos Distúrbios do Sono do Hospital Rush-Presbyterian Saint Luke, de Chicago, instruiu pacientes com esses pesadelos a tocar uma campainha no início do sonho; eles então eram acordados para conversar com um psicólogo sobre o pesadelo e alterar esse conteúdo negativo. Na visita seguinte ao laboratório, cada paciente devia sinalizar no começo do pesadelo; desta vez, porém, o técnico do laboratório simplesmente tocava a campainha outra vez, lembrando ao paciente que deveria mudar de sonho.
A técnica livrou uma senhora de um pesadelo no qual ela se via puxada para baixo por enormes ondas. Ela aprendeu a mergulhar sob essas ondas oníricas, como fazia em vigília, e os sonhos ruins desapareceram.
Outra vertente promissora é a solução criativa de problemas vividos pelos sonhadores. Em seu livro Sonhos Lúcidos, LaBerge cita uma carta enviada por uma jogadora de hóquei cuja técnica de patinar voltara a melhorar depois de ela reviver a experiência em um sonho lúcido, no qual deslizava descontraidamente pelo rinque. Um caso similar foi relatado pelo famoso golfista Jack Nicklaus. Segundo ele, uma fase ruim de sua carreira foi superada após um sonho lúcido: bastou-lhe segurar o taco da forma como fazia no sonho para voltar a vencer.
LaBerge segue pesquisando em Stanford e criou uma organização, o Lucidity Institute, para aprofundar o assunto. “É necessário iniciar investigações intensivas sobre a natureza exata do estado de sonho lúcido e os fatores do cérebro, do corpo e da mente envolvidos em alcançá-lo e mantê-lo”, ressalta. Entre seus objetivos estão a criação de aparelhos que facilitem o processo de sonho lúcido, a comunicação com pessoas despertas através do sonho, a duração das experiências oníricas e o mapeamento piloto da mente por um eletroencefalograma. LaBerge é otimista quanto aos resultados das pesquisas – e, com seu sucesso, talvez ainda no início deste século os sonhos ganhem uma nova e enriquecedora dimensão para a maioria das pessoas.
Como ter sonhos lúcidos
As sugestões abaixo são do pesquisador Stephen LaBerge.
1) No início da manhã, quando acordar espontaneamente de um sonho, repasse seu conteúdo várias vezes até memorizá-lo.
2) Ainda deitado na cama e voltando a dormir, diga a si mesmo: “Na próxima vez que estiver dormindo, quero lembrar que percebo que estou sonhando.”
3) Veja-se de volta ao sonho recém-iniciado; apenas desta vez, visualize-se percebendo que você está de fato sonhando.
4) Repita os itens 2 e 3 até sentir que seu objetivo está firmemente gravado – ou você cairá no sono.
Lembrando os sonhos
Segundo Stephen LaBerge, lembrar-se dos sonhos é um item fundamental para ter sonhos lúcidos. Veja aqui algumas dicas para conseguir isso.
1 Durma bem. Se você está descansado, será mais fácil concentrar-se na sua meta.
2 Mantenha um diário de anotações ao lado da cama.
3 Quando acordar à noite e lembrar que você estava sonhando, ponha esse sonho no papel o mais rápido possível.
4 Não se mova da posição em que estava ao acordar nem pense nos problemas do dia-a-dia.
5 Se o seu sono é muito pesado, programe um despertador para acordá-lo durante um momento em que você estará provavelmente sonhando. Como os sonhos REM ocorrem a intervalos de 90 minutos, escolha períodos de múltiplos de 90 minutos (por exemplo, 4,5 horas, 6 ou 7 1/2.
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