Somos todos viciados. Querendo escapar de alguma coisa
Falar em vício remete imediatamente à dependência de drogas como a cocaína, a heroína ou o álcool. O médico e escritor Andrew Weil, porém, considera que o conceito deve ser encarado de forma muito mais ampla do que simplesmente como um hábito prejudicial: segundo ele, o vício, em suas variadas manifestações – positivas ou negativas – é uma característica comum a toda a humanidade.
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Por Eduardo Araia
O teste é simples: examine com atenção os perfis das três pessoas mostrados a seguir e responda, no fim, a uma questão. Preparado?
A primeira é Maria Luísa, jovem universitária de classe média alta. Com 19 anos, ela fuma desde os 15. O cigarro, confessa, traz-lhe uma calma importante em momentos em que se sente tensa ou pressionada.
A segunda é João Pedro, executivo de um grande banco na faixa dos 50 anos. Promovido a um cargo de direção há dois anos, ele e sua equipe vêm arrebatando diversos prêmios de eficiência – resultado, afirma com orgulho, de muita motivação e jornadas de trabalho que não raro atingem 14 horas diárias, inclusive em eventuais fins de semana.
A terceira é Tânia, que, apesar de ainda estar com menos de 30 anos, desponta como uma grande promessa na engenharia genética brasileira. Seus colegas falam com admiração que ela é um autêntico banco de dados de sua área de atuação e não existe obstáculo – inclusive financeiro – que iniba sua inventividade no desenvolvimento de novas pesquisas.
Mostrados os três perfis, a questão é: quais dessas pessoas podem ser consideradas viciadas?
A maioria das pessoas não hesitaria em apontar a tabagista Maria Luísa como integrante desse time. Um grupo menor indicaria também o workaholic João Pedro. Mas a resposta certa, de acordo com o médico e escritor norte-americano Andrew Weil, é: todas as três. Tânia, para ele, também tem um vício – o do conhecimento. E Weil vai além: para ele, todos nós, sem exceção, somos viciados.
Em geral, nos habituamos a considerar o conceito de vício como algo francamente negativo – por exemplo, a dependência de drogas ilegais como a cocaína ou a heroína, com seus efeitos devastadores sobre o físico e o psíquico do consumidor. Weil, no entanto, defende que ele é muito mais amplo do que isso. “Ainda existe uma tendência de nos concentrarmos em algumas formas de vícios como aquelas que são sérias e ignorar as outras, porque elas são socialmente aceitáveis ou não se encaixam em nosso modelo conceitual de o que é o vício.”
O tabaco é um excelente exemplo dessa distorção. A comprovação de que ele provoca dependência psíquica e física é relativamente recente, o que ainda nos permite ver muitos comportamentos contraditórios da sociedade a seu respeito – em nosso país, por exemplo, a venda de cigarros é permitida, desde que a embalagem contenha anúncios alertando os consumidores sobre os problemas ligados ao fumo. (Há um risco concreto para a saúde dos cidadãos, mas também uma fortuna em impostos a serem recolhidos dos maços vendidos.) No passado, então, a perspectiva em relação ao tema era totalmente diferente. Nas décadas de 1920 e 1930, descreve Weil, as pessoas eram encorajadas a fumar porque esse hábito supostamente favoreceria a concentração. Em edições da revista Life da década de 1950 podiam-se encontrar anúncios de médicos vendendo cigarros – “Eu recomendo estes aos meus pacientes porque aliviam a garganta”, proclamava um deles.
Um hábito psicológico, portanto desimportante
Na Faculdade de Medicina de Harvard, entre 1964 e 1968, o então aluno Weil não ouviu em nenhuma aula que o fumo fosse capaz de viciar. “Ensinaram-me que era um problema de saúde que poderia levar ao surgimento de enfizema e câncer no pulmão, mas não houve nenhuma palavra sobre ficar viciado. Era um hábito psicológico, portanto desimportante – e então, não era discutido.” O autobloqueio nesse sentido era tão grande, relata o médico, que demorou décadas para se pesquisar o que havia nos cigarros que exercia tamanho controle sobre o comportamento dos fumantes.
As definições costumeiras de o que é vício refletem as limitações ligadas a esse conceito. O Aurélio, por exemplo, restringe-se à visão negativa ao falar em “costume prejudicial”, “defeito grave que torna uma pessoa inadequada para certos fins ou funções”. O comportamento autodestrutivo originado pelo desejo de escapar da dor ou do sofrimento é mencionado por Ronald Miller em As Above, So Below (Tarcher). Numa conferência da qual participou, Weil ouviu de um colega uma tentativa mais abrangente: “No mais amplo sentido, o vício pode ser definido como uma atitude que vê diversos aspectos do mundo material como fontes exclusivas de satisfação. O vício, entendido dessa forma, representa uma característica proeminente de toda a civilização ocidental, a qual perdeu a conexão com seus recursos interiores.”
Nada disso satisfaz o médico norte-americano. “Em primeiro lugar”, observa, “se é a atitude que nos faz sentir ótimos com vários aspectos do mundo material, como se explica o vício do sexo? É um vício material? Pode envolver órgãos físicos e outras pessoas, mas estamos falando de fato sobre o vício de uma experiência interior.” Weil amplia a análise com um exemplo ainda menos cogitado em nossa cultura: o vício de pensar. “Na psicologia budista, o vício do pensamento é visto como um sério impedimento para a iluminação. Portanto, você poderia olhar para as universidades como monumentos ao vício do pensamento, onde é recompensado pela beleza ou complexidade ou inovação dos pensamentos que produz.”
O médico considera que a essência de uma definição de vício está no desejo ardente por uma experiência ou objeto que faça a pessoa sentir-se bem. Seja o álcool, o café, o sexo, o trabalho, a religião, a alimentação ou as drogas recreativas – para ficar em poucos exemplos –, o processo é sempre o mesmo. Por isso, Weil começou a interessar-se exatamente por esse desejo irresistível, sua origem e solução. E suas conclusões são instigantes.
Uma paciente de Weil forneceu-lhe pistas valiosas nesse sentido. Quando o procurou, ela aplicava na veia de cinco a seis gramas de cocaína por dia – uma dosagem altíssima. Segundo a mulher, os primeiros minutos depois da primeira injeção do dia lhe davam uma irresistível sensação de prazer e dinamismo, mas as cinco ou seis horas seguintes eram marcadas por palpitações, tremores violentos, insônia e paranoia. Ou seja: a porcentagem de tempo ocupada pelo prazer era muitíssimo menor do que a tomada pelo sofrimento. Assim, pensou Weil, havia algo por trás desse prazer que impelia a mulher a prosseguir no vício. Depois de resumir sua rotina de viciada e lamentar essa dependência da droga, ela lhe disse uma frase muito significativa: “Eu quero não querer isso.”
A vida é algo incompleto e não consumado
Como se pode concretizar esse “querer não querer”, pergunta Weil? Segundo ele, as filosofias espirituais do Oriente podem ajudar nesse sentido. A primeira Nobre Verdade do budismo, por exemplo, diz que a vida é algo incompleto e não consumado – há uma sensação de que deveria ser mais e não é, de que algo está sempre faltando. A segunda Nobre Verdade explica que essa não completitude tem sua causa no desejo. Buda, porém, não fala de onde vem esse desejo.
Outra pista está no conceito de determinadas vertentes místicas de que a consciência precede a matéria. Nessa linha de raciocínio, observa Weil, foi a consciência que começou a moldar a energia e a matéria em formas cada vez mais complexas, aparentemente com a finalidade de conhecer-se melhor. No momento, a consciência humana é a forma mais complexa já elaborada em nosso planeta. Mas por que, pergunta Weil, nossa consciência não se aquieta num equilíbrio individual momentâneo e, em vez disso, continua em busca de um autoconhecimento cada vez maior?
A resposta, sugere o médico, está no fato de que somos parte de um universo que quer conhecer a si mesmo – e, como todos estamos interligados, também participamos desse jogo do cachorro perseguindo a própria cauda. Esse desejo, portanto, é parte de nossa condição humana – está na essência de nosso ser e não pode ser rejeitado.
Dadas essas condições, o que se pode fazer a respeito do comportamento de viciado? Weil vê apenas duas alternativas. A primeira é tentar amoldá-lo a fim de que suas formas de expressão sejam menos danosas para a integridade física e psíquica da pessoa. “É melhor ser viciado a um programa de 12 passos (como o dos Alcoólicos Anônimos – ver box) do que ser viciado em álcool; é melhor ser viciado em exercícios físicos do que ser viciado em tabaco”, exemplifica o médico. Tais juízos de valor são endossados por ele – que, aliás, considera essa a única opção que a maioria de nós pode fazer.
A outra alternativa é bem mais complexa: ir até a raiz do vício. Weil lembra que as religiões orientais acreditam que isso seja possível recorrendo-se a introspecção intensa, meditação e prática, mas não é tão otimista quanto à sua eficácia: “Penso que você pode percorrer um longo caminho para isso, mas se a origem desse desejo insaciável está realmente ligada à origem do universo, então não tenho tanta certeza de que ele possa ser extirpado. (...) Faça o melhor que puder – busque esse desejo, tente compreendê-lo. O maior erro que podemos fazer é rejeitá-lo.”
Weil acredita que o vício não é curável até que a expansão do universo seja revertida e comecemos a retornar ao ponto de origem primordial. “Mas isso não deveria ser uma fonte de desesperança”, ameniza ele. “É uma parte do que somos. O que precisamos é aceitar esse aspecto de nossa condição humana e trabalhar com ele de forma que ele não seja destrutivo para nós e para outras pessoas.” O médico também vê um lado positivo nessa situação: “Como ele (o vício) nos liga a todos os outros seres humanos, é uma fonte de grande compaixão e empatia. É uma motivação para trabalhar com outros a fim de tentar interromper os tipos de comportamento destrutivo que acontecem hoje. Creio que não há nada mais importante do que isso.”
Os Doze Passos
Os Doze Passos adotados pelos Alcoólicos Anônimos como diretrizes de sua conduta rumo à recuperação do vício são considerados modelares, em sua simplicidade e universalidade. Outros grupos têm mostrado que esse programa pode ser usado, com ligeiras adaptações, para qualquer outro tipo de vício nocivo. Conheça esses passos a seguir:
1) Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.
2) Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos a sanidade.
3) Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos.
4) Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.
5) Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.
6) Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.
7) Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.
8) Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.
9) Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.
10) Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.
11) Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade.
12) Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.
O vício em relacionamentos
Andrew Weil ressalta que há muitos vícios “ocultos”, aos quais nosso sistema de crenças não atribui importância. Um exemplo disso é o vício em relacionamentos: muitas pessoas tornam-se viciadas em relações amorosas mal resolvidas, que misturam momentos de prazer com outros de desespero, e confundem essa forma de excitação com o amor verdadeiro. Um teste sugerido pela escritora Jody Hayes no livro Smart Love ajuda a identificar se o leitor está viciado em relacionamentos doentios. As afirmações a seguir devem receber um verdadeiro ou falso:
1) Você frequentemente se sente atraído por alguém e age a partir desse sentimento mesmo quando suspeita que a pessoa ou a relação pode não ser boa para você.
2) Quando você não está se relacionando, sente-se deprimido. Encontrar um novo parceiro amoroso habitualmente cura seus sentimentos de depressão e aumenta sua autoestima.
3) Quando você pensa em romper com um parceiro, preocupa-se sobre o que acontecerá com a pessoa sem a sua companhia.
4) Para evitar ficar sozinho logo após um rompimento, você começa imediatamente a procurar um novo parceiro.
5) Embora demonstre inteligência e independência em outras áreas da vida, você tem receio da independência num relacionamento amoroso.
6) Para ser feliz, você precisa ter um parceiro amoroso em sua vida.
7) Mesmo quando um relacionamento não está bom, você tem dificuldade para terminá-lo.
8) Você frequentemente se envolve com pessoas que de alguma forma não estão disponíveis – são casadas, moram muito longe, já estão envolvidas com outro parceiro ou mostram-se emocionalmente distantes.
9) Se uma pessoa boa e disponível demonstra interesse, você provavelmente a considerará chata e acabará rejeitando-a.
10) Você frequentemente tenta “reformar” seu parceiro amoroso para que ele se comporte da forma como considera ideal.
11) Para você é difícil dizer não a alguém com quem está envolvido se ele/ela quer dinheiro, tempo, sexo ou algo mais.
12) Você realmente não acredita que merece um bom relacionamento.
13) Sexualmente, você se preocupa mais em satisfazer a seu parceiro do que a si próprio.
14) Você não é capaz de parar de ver determinada pessoa mesmo sabendo que continuar a fazer isso é destrutivo para você.
15) Você permanece obcecado pelas lembranças de um relacionamento por meses ou até mesmo anos depois que ele terminou.
A avaliação é simples: a resposta “verdadeiro” na maioria das questões indica o vício em relacionamento. Comece a trabalhar para reverter essa situação.
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