Sexo no mundo árabe: Uma história pouco contada

"Se você realmente quiser conhecer um povo, comece olhando dentro de seus quartos", diz Shereen El Feki, que viajou pelo Oriente Médio durante cinco anos, conversando com pessoas a respeito de sexo

"Se você realmente quiser conhecer um povo, comece olhando dentro de seus quartos", diz Shereen El Feki, que viajou pelo Oriente Médio durante cinco anos, conversando com pessoas a respeito de sexo
"Se você realmente quiser conhecer um povo, comece olhando dentro de seus quartos", diz Shereen El Feki, que viajou pelo Oriente Médio durante cinco anos, conversando com pessoas a respeito de sexo (Foto: Gisele Federicce)


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Vídeo: TED – Ideas Worth Spreading

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Tradução para o português: Leonardo Silva. Revisão: Ruy Lopes Pereira 

Embora as conversas que Shereen El Feki entabulou com muitas pessoas nos países árabes refletissem normas rígidas e profunda repressão, ela também descobriu que o conservadorismo sexual no mundo árabe é algo relativamente novo. Ela se pergunta: “Será que um ressurgimento do debate público poderia levar a uma vida sexual mais satisfatória e segura?”

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Médica especializada em imunologia molecular, Shereen El Feki pesquisa e escreve sobre sexualidade e mudanças sociais no mundo árabe. Dividindo o seu tempo entre Londres e o Cairo, tem produzido importantes trabalhos relacionados à saúde e o bem-estar social na região árabe. Ela dedica particular atenção à evolução atual da liberdade política e sexual no universo árabe. 

Video:

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Tradução integral da palestra de Sherren El Feki proferida no TED:

Quando estive no Marrocos, em Casablanca, não muito tempo atrás, conheci uma jovem mãe solteira chamada Faiza. Faiza me mostrou fotografias de seu filho pequeno e me contou a história de sua concepção, gravidez e parto. Foi uma história impressionante, mas Faiza deixou o melhor para o final. "Sabe, eu sou virgem", ela me disse. "Tenho dois laudos médicos que comprovam isso".

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Esse é o Oriente Médio moderno, onde, dois mil anos após a vinda de Cristo, ainda acontece de virgens darem à luz. A história de Faiza é apenas uma das centenas que ouvi ao longo dos anos, viajando pelo mundo árabe, falando com as pessoas sobre sexo. Mas eu sei que isso pode parecer um trabalho dos sonhos, ou, talvez, uma profissão tremendamente duvidosa, mas, para mim, é outra coisa.

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Eu sou meio egípcia e meio muçulmana, mas cresci no Canadá, bem longe de minhas raízes árabes. Assim como tantos que ficam divididos entre Oriente e Ocidente, fui levada, ao longo dos anos, a tentar entender melhor minhas origens. A escolha de estudar o sexo vem de minha experiência com HIV/AIDS, como escritora, pesquisadora e ativista.

O sexo encontra-se no centro de uma epidemia emergente no Oriente Médio e na África, que é uma de apenas duas regiões do mundo onde o HIV/AIDS ainda está crescendo. Bem, a sexualidade é uma lente incrivelmente poderosa para se estudar qualquer sociedade, porque aquilo que acontece em nossa intimidade é refletido por forças de um cenário maior: na política e na economia, na religião e nas tradições, no gênero e nas gerações.

Como descobri, se quiser realmente conhecer um povo, comece olhando dentro de seus quartos. Com certeza, o mundo árabe é vasto e variado. Mas existem três linhas vermelhas que o percorrem, questões que não se deve desafiar com palavras ou feitos. A primeira delas é a política. Mas a Primavera Árabe mudou tudo, com revoltas que se espalharam por toda a toda a região, desde 2011.

Embora os que estão no poder, antigos e novos, continuem a se agarrar aos negócios, como de costume, milhões de pessoas ainda estão lutando e avançando rumo àquilo que esperam ser uma vida melhor. A segunda linha vermelha é a religião. Mas, agora, religião e política estão interligadas,com o surgimento de grupos como a Irmandade Muçulmana. Algumas pessoas, pelo menos, estão começando a fazer perguntas sobre o papel do Islã na vida pública e na vida privada. Quanto à terceira linha vermelha, um assunto intocável, o que vocês acham que pode ser? Plateia: Sexo. Shereen el Feki: Mais alto. Eu não ouvi. Plateia: Sexo. SEF: Mais uma vez. Por favor, não sejam tímidos. Plateia: Sexo. SEF: Exatamente. É isso mesmo. É o sexo. (Risadas)

Em toda a região árabe, o sexo só é aceito no contexto do casamento, aprovado pelos pais, autorizado pela religião e registrado pelo Estado. O casamento é uma passagem para a fase adulta. Se você não se casa, não pode deixar a casa dos pais não pode ter relações sexuais e, definitivamente, não deve ter filhos. É uma muralha social, uma fortaleza invencível, que resiste a qualquer ataque, a qualquer alternativa. Ao redor da fortaleza, existe um vasto campo de tabu contra o sexo antes do casamento, contra os preservativos, contra o aborto, contra a homossexualidade e por aí vai. Faiza era a prova viva disso. Seu atestado de virgindade não era uma ilusão.

Embora as grandes religiões da região exaltem a castidade antes do casamento, num contexto patriarcal, rapazes são rapazes. Os homens fazem sexo antes do casamento, e as pessoas meio que fecham os olhos para isso. Não funciona assim para as mulheres, que devem estar virgens na noite de seu casamento, ou seja, estar com o hímen intacto. Não é uma questão de preocupação pessoal, mas uma questão de honra de família e, em particular, de honra masculina. Então, as mulheres e seu parentes chegam a extremos para preservar essa parte minúscula de sua anatomia: desde a mutilação da genitália feminina, a testes de virgindade e cirurgia reparadora do hímen.

Faiza optou por um caminho diferente: o sexo não vaginal. Mesmo assim, ela engravidou.Na verdade, Faiza não se deu conta disso, porque tem-se muito pouca educação sexual nas escolas, e existe pouquíssima comunicação dentro da família. Quando sua gravidez ficou difícil de esconder, a mãe de Faiza a ajudou a fugir de seu pai e de seus irmãos. Isto porque os assassinatos por motivos de honra são uma ameaça realcontra inúmeras mulheres na região árabe. Por fim, quando Faiza acabou parando num hospital em Casablanca, o homem que se ofereceu para ajudá-la, na verdade, tentou estuprá-la. Infelizmente, Faiza não está sozinha. No Egito, foco da minha pesquisa, vi muitos problemas, dentro e fora da fortaleza. Há diversos rapazes que não têm condições financeiras para se casar, porque pedir alguém em casamento se tornou algo bem caro.Eles têm de arcar com o fardo dos custos de uma vida de casado, mas não conseguem emprego. Este é um dos grandes motivos das recentes revoltas, e é uma das razões da crescente era do casamento em grande parte da região árabe.

Há mulheres bem sucedidas que querem se casar, mas não encontram um marido, por irem de encontro ao que se espera da mulher, ou, como uma jovem médica na Tunísia me explicou: "As mulheres estão ficando cada vez mais abertas. Mas os homens ainda estão na era pré-histórica". Há também homens e mulheres que cruzam a linha da heterossexualidade, que transam com pessoas do mesmo sexo, ou que têm uma identidade de gênero diferente. Eles são vítimas de leis que punem seus comportamentos e até sua aparência. Eles travam uma luta diária contra o estigma social, contra o desespero da família e contra o "fogo e enxofre" religioso. Mas a vida conjugal também não é um mar de rosas. Casais que buscam maior felicidade,maior felicidade sexual em seu casamento, mas não fazem ideia de como conseguir isso,principalmente as esposas, que temem ser vistas como mulheres vis, se demonstrarem alguma empolgação na cama. Há também aquelas cujo casamento é, na verdade, uma fachada para a prostituição.Foram vendidas por suas famílias, normalmente para turistas árabes ricos.

Este é apenas um dos lados do comércio sexual em expansão em toda a região árabe. Agora, levantem a mão se o que estou falando se parece com algo que aconteça no lugar de onde vocês vêm. Bem, o mundo árabe não é o único no que se refere a tormentos sexuais. Embora ainda não tenhamos um Kinsey Report árabe para nos contar exatamente o que está acontecendo dentro dos quartos de toda a região árabe, está bem claro que algo está errado. Dois pesos e duas medidas entre homens e mulheres, o sexo como motivo de vergonha, o controle da família restringindo as escolhas individuais, e um enorme abismo entre aparência e realidade: aquilo que as pessoas estão fazendo e aquilo que elas estão dispostas a admitir que fazem, e uma relutância generalizada em ir além dos sussurros privados, para uma discussão pública séria e sustentável.

Como um médico no Cairo resumiu para mim: "Aqui, o sexo é o oposto do esporte. Todos falam a respeito de futebol, mas raramente alguém joga. Quanto ao sexo, todos fazem,mas ninguém quer falar a respeito". (Risadas) (Música) (Em árabe) SEF: Quero dar um conselho a vocês, que, caso vocês sigam, trará felicidade à vida de vocês. Quando seu marido vier até você, quando ele pegar em alguma parte do seu corpo, suspire profundamente e olhe para ele com desejo. Quando penetrar você, tente falar coisas sensuais e se mover em harmonia com ele. Coisas picantes! Pode parecer que essas dicas úteis vêm de "A Alegria do Sexo" ou do YouPorn, mas, na verdade, elas vêm de um livro árabe do século X, chamado "A Enciclopédia do Prazer", que fala de sexo, dos afrodisíacos à zoofilia, e tudo que há entre esses dois. A enciclopédia é apenas uma na longa lista da literatura erótica árabe, em sua maioria escritas por estudiosos religiosos. Voltando ao profeta Maomé, existe uma rica tradição no Islã de falar abertamente sobre sexo: não apenas sobre os problemas, mas também sobre os prazeres do sexo, e não apenas para os homens, mas também para as mulheres. Mil anos atrás, havia dicionários inteiros de sexo em árabe.

Palavras para cada aspecto imaginável da sexualidade, posições e preferências, um corpo linguístico rico o bastante para compor o corpo da mulher que vocês veem nessa página. Hoje, essa história é totalmente desconhecida na região árabe, até por pessoas com instrução, que geralmente se sentem mais confortáveis para falar de sexo em uma língua estrangeira do que em sua própria língua. O cenário sexual atual parece muito com o da Europa e da América às vésperas da revolução sexual. Mas, embora o Ocidente tenha se aberto quanto ao sexo, vemos que as sociedades árabes parecem estar seguindo na direção oposta. No Egito e em muitos de seus vizinhos,esse conservadorismo é parte de um conservadorismo maior do pensamento político, social e cultural. E é o produto de um processo histórico complexo, que tem ganhado terreno com a ascensão do conservadorismo islâmico, desde o fim da década de 1970."Apenas diga não" é o que conservadores ao redor do mundo dizem a qualquer desafio ao status quo sexual. Na região árabe, eles dizem que essas tentativas são uma conspiração ocidental para enfraquecer os valores árabes e islâmicos tradicionais. Mas o que realmente está em risco aqui é uma das ferramentas mais poderosas de controle deles: o sexo envolto pela religião. Mas a história nos mostra que, mesmo nos dias de nossos pais e avós, houve épocas de maior pragmatismo, tolerância e boa vontade para considerar outras interpretações: seja sobre o aborto, a masturbação, ou até a polêmica da homossexualidade.

Não é preto e branco, como os conservadores nos faziam acreditar. Tanto nestas, quanto em tantas outras questões, o Islã nos apresenta, no mínimo, "cinquenta tons de cinza". (Risadas) Em minhas viagens, conheci homens e mulheres em toda a região árabe que têm explorado todo esse leque: sexólogos que estão tentando ajudar casais a encontrar maior felicidade em seus casamentos, inovadores que estão conseguindo levar a educação sexual para as escolas, pequenos grupos de homens e mulheres lésbicas, gays, transgêneros e transexuais, que estão alcançando seus grupos com iniciativas online e com apoio real. Mulheres, e cada vez mais homens, estão começando a falar abertamentee a combater a violência sexual nas ruas e no lar. Grupos que tentam ajudar profissionais do sexo a se protegerem contra o HIV e outros riscos da ocupação, e ONGs que têm ajudado mães solteiras, como Faiza, a encontrarem um lugar na sociedade e, principalmente, a ficarem com seus filhos. Mas esses esforços são pequenos, geralmente recebem pouco subsídio e enfrentam tremenda oposição. Mas tenho esperança de que, a longo prazo, as coisas vão mudando, e eles e suas ideias vão ganhar terreno.

A mudança social, na região árabe, não ocorre através de confrontos dramáticos, de brigas ou de enfrentamentos, mas através da negociação. Não estamos falando aqui de uma revolução sexual, mas de uma "evolução" sexual, aprendendo com outras partes do mundo, fazendo adaptações para as condições locais, forjando nosso próprio caminho e não seguindo o caminho dos outros. Esse caminho, espero, vai um dia nos levar ao direito de controlar nosso próprio corpo e de ter acesso à informação e aos serviços de que precisamos para termos vidas felizes e sexualmente seguras. O direito de expressar nossas ideias livremente, de nos casarmos com quem quisermos, de escolhermos nossos próprios parceiros, de sermos sexualmente ativos ou não, de decidir quanto a ter filhos e quando, tudo isso sem violência, força ou discriminação. Em toda a região árabe, estamos muito longe disso e há muito mudar: a lei, a educação, a mídia, a economia, a lista é enorme, e esse é o trabalho de uma geração, no mínimo. Mas começa com uma jornada que eu mesma fiz, questionando veementemente a sabedoria adquirida sobre vida sexual.

Essa é uma jornada que serviu apenas para fortalecer minha fé e minha admiração pelas histórias e culturas locais, mostrando-me possibilidades onde eu antes via apenas o absoluto. Devido ao tumulto em diversos países da região árabe, falar sobre sexo, desafiar os tabus e buscar alternativas podem parecer um capricho. Mas, neste momento crítico da história, se não nos agarrarmos à liberdade, à justiça, à dignidade, à igualdade, à privacidade e à autonomia em nossa vida pessoal e sexual, será muito difícil conseguirmos essas coisas na vida pública. O político e o sexual são companheiros íntimos e isso vale para todos nós, onde quer que moremos ou amemos. Obrigada.

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