Sem razão de ser

O mundo contemporâneo tem como força crescente a busca pela permanente racionalização das coisas



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Manchetes de todos os jornais estampam a conjugação do conto de fadas moderno espetacularizado (o tal casamento do príncipe de Gales e sua, com o perdão do trocadilho, Lady Kate), resquícios dos estilhaços do homicídio em massa de Realengo, promovido pelo antes desprezado – e postumamente famoso – Wellington, alguma nota sobre a final do Estadual, talvez até referência repetitiva aos problemas ambientais consequentes do terremoto no Japão, além, é claro, de um anúncio financiador da produção do tal veículo de comunicação. O que separa estes acontecimentos são as páginas do folhetim e a impossibilidade humana do olhar onipresente, porém, no final das contas, os fatos ocorrem por meio de uma rede caótica de causas e efeitos que não nos damos conta no cotidiano.

Calma lá, meu caro, sei que optou por ler esta crônica exatamente por desejar refugiar-se da informação útil, da solidariedade com a tragédia da moda ou, ainda, do pensamento consciente das relações macro-sociais. Não, não vou lhe expor uma análise sistemática dos fatos. Mas, com a permissão da vossa paciência por talvez não entender a diferença da frase anterior para a que vem em seguida, explico: quero apenas analisar um fato que acontece sistematicamente – eu disse que você não veria diferença, mas vamos lá.

O mundo contemporâneo – em especial, no Ocidente, mas as fronteiras hoje são outras - apesar do conflito provocado pelo compartilhamento do espaço por indivíduos e grupos tão plurais, tem como força crescente a busca pela racionalização das coisas. Eu sei, usted sabe, she knows: boa parte do mundo não pensa duas vezes antes de agir; quando se incumbem de tal esforço, tomam decisões em detrimento da Lógica e, não posso deixar de citar, semanalmente percebemos uma igreja tomar espaço de uma garagem d'um casebre, quiçá levantar andaimes a ponto de nos perguntarmos se trata-se da construção de um shopping. Mas, senhores, isso não se choca com o que acabo de dizer. Seja nos laboratórios com cientistas evolucionistas tentando achar o gene próprio ao psicopata, ou nas capelas com beatos fervorosos e reacionários explicando a escolha divina para que uma família seja real e outra não, o fato é que estão em alta os “porquês” essenciais do Ser humano, um sentido do homem anterior a ele mesmo. Melhor me explicar logo antes que você desista das próximas linhas, tão mais simples de acompanhar: os indivíduos não estão mais lógicos, no sentido aristotélico do termo, mas é verdade que existe uma procura maior por explicações pretensamente racionais e, no caso que elegi como cerne do texto, uma procura pela causa/sentido maior que as outras, de maneira que haja uma direção central para as ações.

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Conheço três caras que, junto ao passar de folhas do calendário, se desprendem disso tudo que acabo de falar. Comigo somado, seríamos quatro, mas hoje não quero falar sobre mim – vou me debruçar sobre os outros, para quem sabe me convencer de algo. São: um estudante de Direito, um sociólogo e um professor de Matemática. Todos eles, cada qual com suas filiações ideológicas, subjetividades e posições no mundo, perceberam, através – aí sim – da Lógica instrumentalizada para pensar a causalidade dos fatos, que não existe uma razão essencial para existirmos. Portanto, não há um moderador maior da vida, uma justificativa para as ações que seja alienígena dos contextos. Assim sendo, sem Deus, tudo pode – ainda que nem tudo seja permitido e alcançado.

Renunciarei revelar o nome dos três, mas o primeiro chamarei de Rafael. Egresso dos cafundós de Angra dos Reis (onde querem construir uma terceira usina nuclear, apesar dos protestos devido ao ocorrido no Japão), trabalhou desde pirralho com o pai na feira, completamente desacreditado por parte dos que o cercavam, tornou-se estudante de Direito de um dos mais renomados cursos do país, fazendo sua história digna de propaganda que faria qualquer um acreditar que o indivíduo escolhe plenamente seus próprios caminhos, tal qual apregoa a figura do self-made man do Liberalismo. Comediante da vida, acha que ela não passa de uma piada, por isso não tem pudor, só retórica.

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Um dos outros, o qual chamarei de Nino, não é propriamente sociólogo. Formado em Ciências Sociais, mudou de área no mestrado e não sabe onde vai parar. Não quer escolher um emprego, não sabe do que quer viver.

O terceiro, cujo destaque é necessário, militante do ateísmo, tem como nome Cristiano – por ironia do acaso ou do destino? Ele é o típico cara que vive na busca ininterrupta pela razão formal, que questiona seus próprios paradigmas. A Matemática, ao mesmo passo que é causa desta característica pessoal, é efeito: desde quando eu o conheci, percebo a incapacidade de lidar com o inexato. Consequência máxima disto: resolveu que não terá mais apego por ninguém, pois não lhe dá um ganho objetivo e, ainda por cima, todo seu esforço não pode esperar recíproca, pois a incerteza não lhe cabe.

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O que há em comum entre estes três rapazes tão anônimos, tão outros quaisquer? A anomia. Se a identidade é o lugar que nos vemos no mundo, eles não cabem em lugar algum. Restaria a eles o que Camus compreende como a verdadeira questão filosófica: o suicídio – diria, inclusive, que gostariam de poder voltar no tempo para promoverem um auto-aborto! Entretanto, se a vida não tem uma razão essencial – e, assim, todos sentidos que existem são criados -, o suicídio, resposta ao absurdo que é viver sabendo disto, tem menos cabimento ainda, pois implica deixarem de gozar com o que lhes sobra.

Precisam, juntos – mas sem consciência um do outro -, superar a negação do sentido para incorporar o significado. Ora, se não há um sentido essencial da vida, a objetividade plena não lhes levará a lugar algum, porque não há lugar para chegar. Falta-lhes poesia! No orvalho, no barulho do ventilador, no cafuné, em ver puto o casamento da realeza inglesa. Ou, já que não posso convencê-los do afeto, pois seria racionalizar até isso, no meu carinho ao escrever as presentes palavras.

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Curiosa e paradoxalmente, a final do Estadual de amanhã estremece Rafael e Nino em alto grau da escala Richter, por causa da paixão na qual insistem sustentar-se. Quanto ao Cris, fica a dica, vê se assiste a partida também. Se não dá solução ao absurdo, ao menos traz boas sensações. Se nem isso for capaz, vai ocupar sua falta de sentido de viver.

Agora... se quer saber qual a relação que os fatos do primeiro parágrafo tem com este texto, respondo: vocês estão buscando razão em tudo.

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