Selvageria humana. Quando as vítimas se tornam carrascos

Cortar cabeças, mutilar e torturar são atos extremos impensáveis para a maioria dos indivíduos. Mas um coquetel com as doses certas de fatores que desencadeiam a selvageria pode transformar qualquer pessoa em um violento extremista.

Cortar cabeças, mutilar e torturar são atos extremos impensáveis para a maioria dos indivíduos. Mas um coquetel com as doses certas de fatores que desencadeiam a selvageria pode transformar qualquer pessoa em um violento extremista.
Cortar cabeças, mutilar e torturar são atos extremos impensáveis para a maioria dos indivíduos. Mas um coquetel com as doses certas de fatores que desencadeiam a selvageria pode transformar qualquer pessoa em um violento extremista. (Foto: Luis Pellegrini)


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Por: Luis Pellegrini

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No momento, todos apontam o dedo acusador para o Estado Islâmico – facção extremista também conhecida pela sigla ISIS que atua sobretudo na Síria e no Iraque – acusando-o de crimes inomináveis. Com efeito, essa organização terrorista tem praticado o genocídio de dezenas de milhares de “infiéis” que habitam aqueles territórios, bem como tem levado suas mulheres e filhos à escravidão. Sem falar nas terríveis e cruéis execuções que lhe servem de propaganda, levadas a cabo ao vivo e em cores diante de câmeras de vídeo e televisão, e espalhadas em seguida pelo mundo a fora como se fossem um espetáculo macabro no qual pessoas ajoelhadas são degoladas ou mortas com um tiro na nuca. Graças a esses militantes “açougueiros”, muitos ocidentais tendem a ver e considerar o Estado Islâmico como o único afloramento do fundamentalismo religioso registrado na história da humanidade.

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No entanto, em julho de 1995, forças bósnias e sérvias ostensivamente cristãs invadiram a cidade de Srebrenica e massacraram implacavelmente mais de oito mil muçulmanos, homens, mulheres, velhos e crianças. E quem não se lembra dos relativamente recentes genocídios da etnia tutsi em Ruanda, perpetrado por homens da etnia hutu; o homicídio em massa de cidadãos do Camboja por militantes do Khmer-Vermelho; o genocídio de milhões de judeus, ciganos, homossexuais e deficientes nos campos de concentração nazistas? Isso para citar apenas alguns dos vários crimes contra a humanidade cometidos nas décadas passadas. A lista das selvagerias cometidas por grupos humanos contra outros grupos humanos é longa e deprimente.

 

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Desde os tempos mais remotos, como durante as lutas de gladiadores nos coliseus da Roma Antiga, a selvageria é apresentada ao grande público como simples esporte ou meio de diversão.

 

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Selvageria gera selvageria

Quais serão, portanto, as origens e as causas da selvageria, se ela não pode ser atribuída a uma única religião ou ideologia? Segundo o neuropsicólogo Ian Robertson, autor do best-seller The Winner Effect: The Neuroscience of Success and Failure (O efeito vencedor: A neurociência do sucesso e do fracasso) a primeira parte da resposta pode ser muito simples: selvageria gera selvageria. Robertson explica que insensibilidade, agressividade e falta de empatia são respostas comumente dadas por pessoas que foram vítimas de tratamentos duros por parte de membros de outros grupos ou organizações. Nos campos de concentração nazistas, por exemplo, muitos dos mais cruéis eram prisioneiros transformados em guardas, os famosos “kapós”, termo alemão que equivaleria ao brasileiro “caciques”. Pessoas que foram abusadas sexualmente quando crianças – especialmente meninos – são mais suscetíveis de se tornarem abusadores sexuais quando se tornam adultos, embora isso aconteça apenas com uma minoria. As vítimas, em outras palavras, muitas vezes respondem ao trauma sofrido tornando-se eles próprios atacantes.

 

Estudos mostram que a selvageria violenta e de força bruta é mais comum entre os homens. As mulheres costumam usar de outras armas quando querem manifestar o seu lado selvagem.

 

O choque, o espanto e o terror dos bombardeios da cidade de Bagdá, no Iraque, e a sua subsequente invasão em 2003 desencadearam na capital iraquiana e em todo o país uma explosão da violência e a ruptura total da lei e da ordem. Poucos iraquianos escaparam aos efeitos da selvageria da qual, além dos bombardeios e demais operações militares que atingiram civis, faziam parte também atentados como o dos automóveis carregados de bombas que explodiam na entrada dos mercados e os assassinatos por emboscada de membros de facções religiosas e políticas rivais. Estimativas bastante conservadoras afirmam que, entre 2003 e 2011, cerca de 114 mil iraquianos foram mortos e muitas centenas de milhares ficaram feridos ou mutilados. Agora, como consequência desses traumas, uma minoria dessas vítimas da violência – quase todas do sexo masculino – são hoje propagadores e executores da selvageria que atormenta as populações de cidades como Mosul e seus arredores.

 

A selvageria humana pode se manifestar de maneira coletiva, como acontece nas lutas violentas entre torcidas de futebol.

 

A submersão no grupo

Mas para Ian Robertson, a vítima que se torna carrasco não constitui a única explicação para tanta ferocidade. “Quando o Estado se quebra e afunda, levando consigo a lei, a ordem e a sociedade civil, resta apenas um recurso para a sobrevivência: o grupo. Não importa se definido pela religião, raça, política, tribo ou clã, ou pelo autoritarismo dominante de um chefe de gangue, a sobrevivência dos indivíduos e das famílias depende da segurança mútua oferecida pelos membros do mesmo grupo.

 

É nas guerras que se manifesta da maneira mais explícita e radical a selvageria humana. O inimigo deixa de ser um adversário para se tornar um simples objeto a ser destruído.

 

A guerra cria vínculos muito fortes entre as pessoas de um mesmo grupo, e esses vínculos suavizam e tornam mais suportáveis o medo e o estresse que o indivíduo sente quando o Estado se esfacela. Eles também oferecem autoestima para as pessoas que se sentem humilhadas pela perda do seu lugar e status social numa sociedade relativamente ordenada. À medida que isso ocorre, a identidade individual e a do grupo se fundem e as ações pessoais tornam-se cada vez mais uma manifestação concomitante do desejo individual e do desejo grupal”. Quando isso acontece, as pessoas podem fazer coisas terríveis, coisas que elas nunca imaginaram fazer: a consciência individual quase não tem vez ou lugar no interior de um grupo tomado pelos sentimentos da guerra, do combate, do medo, da vingança e da sobrevivência. Isso acontece porque o indivíduo e o grupo estão unificados, e eles assim permanecerão enquanto a ameaça externa perdurar. São os grupos que são capazes de selvagerias extremas, muito mais que qualquer indivíduo isolado.

 

A selvageria humana faz escola, como mostra a esta imagem de um pai membro do Estado Islâmico ensinando seu filho ainda criança a usar uma metralhadora.

 

Podemos ver isso nos rostos dos jovens militantes masculinos do Estado Islâmico, quando eles correm com seus caminhões e tanques de guerra, quando agitam suas bandeiras, sorrisos abertos nas caras, punhos cerrados levantados, quando acabaram de trucidar infiéis que recusaram se converter ao Islão. Para Robertson, o que podemos ver nessas situações é “uma exaltação bioquímica produzida pela produção exagerada do hormônio oxitocina e do hormônio masculino dominante, a testosterona. Muito mais do que a cocaína e o álcool, essas drogas naturais influem no comportamento, induzem ao otimismo e energizam a ação agressiva por parte de todo o grupo. E devido ao fato de que a identidade individual submergiu quase totalmente na identidade grupal, o indivíduo estará muito mais pronto a se sacrificar no campo de batalha – ou num suicídio como homem-bomba – pela causa grupal. Por que? Porque se eu estiver totalmente fundido ao grupo, eu viverei no grupo até mesmo quando o ‘eu’ individual morrer”.

 

A selvageria humana manifestada contra os animais. Na imagem, matança de baleias piloto acuadas numa praia da Noruega.

 

Os fora-do-grupo como objetos

Quando a pessoa submerge no grupo, seu nível de oxitocina no sangue aumenta muito, mas a consequência disso é que nessa pessoa costuma aflorar, de modo concomitante, uma maior tendência a demonizar e desumanizar os que estão fora do grupo. Este é o paradoxo que corresponde às atitudes altruístas que podem ser observadas no interior do grupo: ele torna mais fácil anestesiar qualquer empatia para com os membros de um outro grupo e a vê-los como simples coisas ou objetos. E perpetrar coisas terríveis aos objetos é lícito e está bem porque eles não são humanos.

Robertson aponta como exemplo de situações desse gênero a assustadora realidade da carnificina mutuamente perpetrada por membros das seitas islâmicas xiita e sunita no Iraque e na Síria. No seio do grupo, sobretudo quando ele é definido por sectarismo religioso, o tribalismo é estimulado bem como a tendência a descarregar as tensões através da agressão aos grupos rivais. Para esse estudioso, até mesmo quando a agressão contra o outro grupo é de tipo autodestrutivo – como podemos observar tragicamente na atualidade no Oriente Médio – grupo caracterizados pelo sectarismo religioso pregam um grau de agressão contra seus opositores que costuma estar ausente nos grupos não-religiosos.

 

Elefantes na África são cada vez mais dizimados por causa de suas presas de marfim.

 

Vingança perpetua a selvageria

A vingança, por outro lado – que é um valor forte na cultura árabe -, também desempenha um papel na perpetuação da selvageria. Obviamente, a retaliação a ações vingativas gera mais selvageria, criando um ciclo infernal interminável. Além disso, ao mesmo tempo que a vingança é um poderoso motivador, ela também é sempre decepcionante, porque logo faz emergir a evidência de que ao se vingar de alguém, longe de se aplacar a angústia e o ódio, o que se consegue é aumentar e perpetuar esses sentimentos.

Finalmente, as pessoas irão perpetrar coisas selvagens se seus líderes lhes disserem ser necessário e aceitável fazê-lo. Particularmente quando essas pessoas fundiram os seus próprios “selfs” (a sua identidade profunda) ao “self” do grupo. O genocídio em Ruanda foi acionado por uma série de transmissões radiofônicas nas quais uns poucos líderes da etnia hutu incitavam os membros do seu grupo étnico a desencadeá-lo. Por causa desse estímulo, as pessoas desse grupo se transformaram em assassinos selvagens dos tutsi, os membros do outro grupo étnico regional que, até a véspera, tinham sido seus amigos, vizinhos e colaboradores. O exército soviético cometeu estupros de massa quando invadiu a Alemanha em 1945 porque os soldados a isso foram induzidos pelos seus comandantes. Da mesma forma, combatentes do Estado Islâmico agora estão massacrando cristãos e yezidis desarmados porque seus líderes, e provavelmente seus imãs religiosos, lhes disseram que é correto e justo fazê-lo.

 

A violência doméstica é uma das formas mais perversas de selvageria.

 

Conclui-se que os grandes responsáveis por toda essa selvageria são os líderes “tribais”, em qualquer nível hierárquico eles se encontrem. Da mesma forma, são os líderes que têm o poder de mudar o curso das coisas e de cessar o processo, como aconteceu em Ruanda, após uma forte pressão internacional. Com relação ao Oriente Médio, a pergunta realmente séria a ser feita é se existe algum real interesse por parte das diferentes forças que atuam nessa região do mundo em cessar os conflitos para se chegar a um acordo. Todas as partes envolvidas – e do conjunto delas não fazem parte apenas os grupos islâmicos, mas também poderosos interesses políticos, estratégicos, militares e econômicos internacionais – pretendem se assegurar que seus líderes continuarão atuando na área, de modo a defender e preservar seus interesses e motivações estratégicas. É do interesse de boa parte dessas forças (a da indústria e a do comércio legal e ilegal de armamentos, por exemplo) manter os conflitos no Iraque e na Síria, bem como em outros lugares do mundo islâmico. Enquanto essa mentalidade perdurar, a selvageria irá prosseguir.

 

 

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