Por: Luis Pellegrini
Fotos de Lamberto Scipioni
Quando Domenico Modugno compôs Nel blu dipinto di blu (No azul pintado de azul) provavelmente estava pensando na Sardenha. Seus moradores, os sardos, vivem num paraíso geológico e cultural cercado pelo azul do mar e coberto pelo azul do céu. Eles sabem disso e, como respeitam as regras da hospitalidade, têm prazer ao mostrar suas riquezas aos visitantes. Mas olhem lá: vejam tudo, fotografem, degustem a incrível cozinha e seus vinhos de sabor muito original, comprem umas lembranças, aproveitem ao máximo e, depois, voltem para suas casas. Pois morar na Sardenha é privilégio dos sardos, e eles fazem questão de zelar por isso.
Não à toa, Peppeto Pau, arqueólogo e erudito sardo que visitei e entrevistei na cidade de Oristano, na Sardenha Oriental, esclareceu logo a charada: “Não sou italiano, nem de qualquer outro país da Europa. Não sou africano, nem do Oriente Próximo. Sou sardo”. Mas para mostrar a outra face do seu povo, me convidou para almoçar na casa dele, assim, logo no primeiro encontro, e serviu à mesa um “carneiro de sete horas” – o tempo que essa iguaria permanece cozinhando, nadando num molho de especiarias da ilha cuja fórmula passa de mãe para filho e permanece secreta. Até hoje, quando me lembro daquele sabor, tenho vontade de rezar em ação de graças… Do Vermentino, vinho branco que acompanhou o carneiro, falamos depois.
Uma sucessão de invasores
Os sardos, os verdadeiros, sobretudo os mais velhinhos, que ainda não foram contaminados pela cultura do celular e da fast food, nos olham com olhos cheios curiosidade e de uma bondade fora do tempo. Mas neles brilha também uma ponta de desconfiança. É natural. Durante séculos, milênios, estrangeiros vieram pisar o seu solo, vieram oprimir e tirar partido daquele povo. Talvez, no inconsciente dos que nasceram na ilha, os turistas de hoje não são muito diferentes. Todos vêm lá de trás do horizonte e, segundo um antigo e dramático provérbio sardo, “todos os que atravessaram o mar carregam o mal dentro de si”.
Ao longo das eras, a ilha assistiu a chegada de uma sucessão de invasores e déspotas: gregos, fenícios, cartagineses, romanos, árabes, espanhóis e, por último, os agentes de turismo. Cada invasão deixou a sua marca, mas raras foram aquelas benéficas para o povo e a paisagem da Sardenha. Por isso os sardos aprenderam a desconfiar das influências e das presenças estrangeiras. E, como tudo na vida e no mundo é moeda de duas faces, o lado bom dessa desconfiança é que ela ajudou os sardos a preservarem com cuidado as suas próprias tradições, costumes e inclusive a língua.
O mistério da civilização nurágica
Foi o arqueólogo Peppeto Pau (que, infelizmente, faleceu em um acidente de carro poucos meses depois do nosso encontro) quem me iniciou no mistério e encantamento da Sardenha nurágica (de nurago, o monumento arquitetônico mais característico da Sardenha). Nuragos são torres de tipo cônico, espalhadas por toda a ilha, principalmente na região de Oristano e de Sassari. Os nuragos eram construídos com grandes blocos de pedra superpostos, e sua cobertura, em geral de forma ogival, é algumas vezes truncada para dar lugar a terraços.
Os nuragos eram ao mesmo tempo fortalezas com finalidade de defesa militar e moradias amplas, no interior das quais se desenvolvia uma restrita porém bem organizada e autônoma vida social e familiar. Foram inventados por uma civilização de características únicas, a “civilização nurágica” que durante cerca de 1300 anos, de 1800 antes de Cristo até o final do século 6 a.C. floresceu em toda a Sardenha. A arqueologia já descobriu cerca de sete mil nuragos em toda a ilha, alguns em excelente estado de conservação, outros em ruínas.
Vistos à distância, sobre a planície ou sobre as colinas semiáridas, os nuragos parecem grandes ventres protuberantes saídos do corpo da Terra. Cada um deles mede de 20 a 30 metros de altura, e possuem em geral uma única entrada que consiste numa fenda estreita e de defesa fácil. Por essa fenda tem-se acesso ao interior do nurago, um labirinto tipo casa de formiga feito de corredores estreitos que interligam os vários aposentos, quartos, salões, cozinha e despensas.
Há dezenas de nuragos para se visitar. Os mais fascinantes e bem conservados são: Su Nuraxi, perto de Barumini; Santu Antine, perto de Torralba; Losa, perto de Paulilatino; Arrubiu, perto de Orroli.
Mas em termos de monumentos a civilização nurágica não deixou apenas o testemunho dos seus nuragos. Produziu também templos subterrâneos dedicados ao culto das águas, como o Templo de Santa Cristina, perto de Paulilatino, e o de Santa Vitória, perto de Serri, que ainda hoje são lugares de peregrinação. Nos dias de festa os fiéis acorrem a esses templos, e embora o culto oficial seja agora católico, tudo se passa como há três mil anos, com distribuição de vinho e comida, apresentação de cantos e danças, e deposição de centenas de ex-votos por graças recebidas.
Há também, dessa época remota da história sarda, as “tumbas de gigantes”, enormes monumentos funerários de pedra esculpida e que realmente parecem feitos para abrigar corpos de gigantes. Ou então as domus de janas, “casas de bruxas”, que são na verdade necrópoles subterrâneas ou escavadas na rocha macia das paredes de colinas e montanhas. Segundo a lenda as janas são poderosas feiticeiras que, agora fantasmas, ainda moram dentro dessas casas (domus), cujas paredes são decoradas com símbolos mágicos talhados em relevo: cabeças de bois e de outros animais, chifres, espirais e grande variedade de desenhos geométricos.
A riqueza arqueológica da Sardenha não para aí. Há também as cidades cartaginesas de Monte Sirai e Tharros, esta última um perfeito exemplo de cidade púnica clássica, construída sobre uma estreita e alta península, com um porto bem abrigado, apenas uma ligação com a terra, e portanto fácil de defender, com águas pouco profundas e piscosas e uma região circundante muito fértil.
Ruínas romanas estão em toda parte: os belíssimos mosaicos de Nuoro constituem um excelente exemplo. Sinais da presença árabe também são fáceis de identificar, sobretudo na arquitetura de palácios e igrejas das cidades de Cagliari, Olbia e Porto Torres, alvos principais dos invasores sarracenos. E nas cidades da costa ocidental da ilha, particularmente Sassari, Alghero e Oristano, é a herança cultural espanhola, sobretudo a catalã, que aparece com maior evidência.
Em Oristano há uma fantástica festa anual de origem espanhola, a Sartiglia. Ela acontece em duas etapas, a primeira no último domingo antes da Quaresma, e a segunda parte na Terça Feira de Carnaval. A Sartiglia envolve toda a população da cidade. Há cortejos em trajes típicos e competições variadas de canto, poesia, dança e música instrumental. Mas a principal competição é equestre: cavaleiros mascarados e vestidos com roupas medievais montam cavalos ajaezados com fina pompa. Cavalo a galope, o cavaleiro munido de uma longa lança deve agarrar com ela uma estrela de metal suspensa por uma corda. Poderes mágicos são atribuídos aos cavaleiros vencedores, e pretende-se que a fartura da próxima colheita depende do número de estrelas que cada competidor consegue arrebatar.
Fora os meses do inverno sardo, frio e ventoso, qualquer outro momento é bom para se visitar a ilha. Na primavera, a partir do final de março, a atmosfera fica impregnada dos odores das flores silvestres e das ervas de cheiro como o rosmarinho, mirto, alecrim, timo e camomila. No outono há o espetáculo multicor das folhas que pouco a pouco assumem todas as tonalidades do laranja, do marrom e do vermelho.
Uma comida que se mantem desde as origens
A gastronomia sarda é antiga, muito antiga. Ao contrário da maior parte da cozinha italiana continental, ou da sua ilha irmã, a Sicília, ambas com culinárias muito sofisticadas, cheias de molhos, de temperos e de arranjos de mesa que mais parecem obras de arte, a culinária sarda parece extremamente simples. Ela usa poucos elementos e em geral despreza as combinações complicadas. Mas essa simplicidade é aparente. A comida sarda é muito requintada, mas seu requinte não está na profusão barroca dos ingredientes; está mais no capricho e no rigor da preparação dos pratos. O porcellino di latte, “porquinho de leite”, por exemplo, é um leitão novinho, assado, servido inteiro e apenas coberto por um ramo de mirto, uma das ervas aromáticas da Sardenha.
Parece um prato fácil. Mas esse leitão nunca teve outro alimento além do leite da mãe, e assá-lo representou um trabalho de muitas horas, sem pressa e sempre na mesma temperatura. Ou a botarga, ovas de peixe secas ao sol e usadas para condimentar massas e outros pratos. Nada mais simples, aparentemente: rala-se a botarga, joga-se o pó obtido no azeite de oliva quente, tempera-se com meio dente de alho, um pedacinho de pimenta vermelha, e derrama-se a mistura sobre o spaghetti al dente. Nada demais, a não ser que o sabor da boa botarga compete e às vezes supera o do melhor caviar. Ou ainda o peixe assado no sal, sem nenhum tempero, e os muitos frutos do mar grelhados e temperados apenas com sal e azeite. A cozinha sarda preserva os sabores naturais de cada alimento, procurando tirar deles o maior proveito possível.
O mesmo pode ser dito dos vinhos da ilha, todos eles com sabores e perfumes antigos. Os tintos são densos, fortes, adequados às carnes de caça que constituem a base da cozinha sarda: Campidano di Terralba, Cannonau, Carignano del Sulcis, Giro di Cagliari. Os brancos são leves e perfumados: Malvasia di Bosa, Moscato di Cagliari, Trebbiano di Arborea, Vermentino di Gallura.
Há ainda os queijos, como o famoso pecorino sardo, e o pão carasau, também chamado carta della musica, “papel musical”. Este pão, feito de finíssimas folhas de massa superpostas, é comida tradicional dos pastores, mas pode ser encontrado em todas as padarias. Por falar nisso, a Sardenha possui uma das maiores culinárias do mundo em matéria de pães, tanto salgados quanto doces. E os doces da Sardenha, à base de amêndoas, nozes, avelãs, são servidos em toda parte. É preciso provar pelo menos o torrone, o torrão da região de Gennargentu, de sabor inesquecível.
Costa Esmeralda, um paraíso muito chique
No meses quentes de verão chega a Sardenha um tipo de turista que possui um único objeto de desejo: a Costa Esmeralda. Localizada no nordeste da ilha, ela arrasa com o seu charme. Não é para menos: a costa tem falésias de pedra branca esculpidas pela erosão, tem montanhas selvagens, oitenta baias e enseadas e uma miríade de praias de fina areia clara. Esse litoral, longo 55 quilômetros, é um dos mais atraentes paraísos mediterrâneos.
A Costa Esmeralda é um refúgio muito chique. Foi “descoberto” na década de 50 pelo príncipe Karim Aga Khan, que alí estabeleceu um complexo de marinas, hotéis e residências de luxo. Para o turismo de classe média, foram criadas as cidades-balneário de Porto Cervo e Porto Rotondo.
Karim Aga Kham costumava dizer que a Costa Esmeralda foi feita para pessoas muito ricas e poderosas. “Não quero outro tipo de convidado por aqui”, ele dizia. Mas nas últimas décadas a pressão do turismo de massa foi mais forte, e também esse éden milionário teve de ceder. Hoje, o estilo de vida ali é muito descontraído. As pessoas, mesmo as mais ricas, buscam o repouso e a calma, e não querem mais se submeter às exigências loucas e caras da moda. Os longos vestidos de noite e as gravatas pretas foram banidos; as mulheres deixam suas joias nos cofres, e as Ferraris ficam trancadas nas garagens. O único “acessório” indispensável desses privilegiados é o barco, necessário para se atingir as praias desertas das pequenas ilhas. Nas ruas de Porto Cervo e Porto Rotondo a democracia é total: pode-se cruzar a qualquer momento com astros do cinema, com reis como João Carlos da Espanha ou Abdullah e Rânia, soberanos da Jordânia, com ídolos do esporte ou da crônica social. E pode-se ver – de longe, é claro – as mansões luxuosas de magnatas como Silvio Berlusconi, político e dono de tvs, jornais e revistas, ou da família Agnelli, da Fiat; ou as casas de ministros e de grandes estilistas.
Visita que não se pode perder é ao hotel Cala di Volpe, que parece um castelo medieval. Concebido pelo arquiteto francês Jacques Coelle, o Cala di Volpe impressiona pelo bom gosto e pelo tamanho: o restaurante é tão grande quanto uma sala de espera de aeroporto; a piscina é mais do que olímpica; a discoteca é uma verdadeira caverna. Mick Jagger, do Rolling Stones, é cliente assíduo do Cala di Volpe. Ele gosta da suite presidencial, com sua piscina privada, a um custo de dois mil dólares por dia.
Pode-se também combinar o dolce far niente da Costa Esmeralda com passeios pelas regiões vizinhas. A Sardenha é uma ilha grande, mas é sempre uma ilha onde as distâncias são percorridas em pouco tempo. Um pouco mais ao norte, bem diante da Córsega, fica a Gallura, região selvagem e pedregosa onde a cor predominante é o azul. O mar é azul, o céu é azul, o ar é azul e as próprias rochas claras, ao refletir a cor do meio ambiente, parecem também azuis. Na Gallura fica a localidade de Arzachena, onde estão as mais imponentes “tumbas de gigantes” da Sardenha, monumentos de pedra feitos na era pré-cristã.
Um pouco mais à frente e chega-se a Santa Teresa di Gallura, o extremo-norte da ilha, porto onde atracam os ferry boats que a ligam à Córsega. Ao lado fica o Cabo Testa com suas falésias altíssimas de bases perfuradas pela ação do mar. É também da Gallura que partem os barcos para a Madalena, ilha de granito e de pórfiro situada já bem perto da Córsega. Essa ilha está na moda, e não sem motivos: tem praias lindas, um centro urbano de notável qualidade arquitetônica, cheio de hotéis pequenos e acolhedores, restaurantes de ótimo peixe, e um museu de arqueologia naval onde há inclusive um grande barco comercial romano do século II antes de Cristo. Ali perto uma outra ilha atrai curiosos e saudosistas: é Caprera, onde Giuseppe Garibaldi se retirou até o final da sua vida em 1882. O Museu Garibaldi, em Caprera, tornou-se lugar de peregrinação, e conserva roupas e objetos pessoais, além dos livros e a correspondência do unificador do Estado Italiano.
Visitar a Sardenha só acarreta um problema: a saudade que se sente quando se vai embora de lá. Fica nos olhos as cores da natureza sarda, com seu azul predominante; fica nos ouvidos o barulho das vagas, o grito das gaivotas e o lamento da sua música; nas narinas o odor das suas flores e plantas; na pele o tom bronzeado que aquele sol dá. E, como disse o poeta sardo Marcello Serra, no coração fica o gosto “daquela poção mágica que se extrai dos descampados, do interior dos bosques, das alturas dos montes, do respiro dos abismos marinhos, e que passará a correr em tuas veias e te trará aquele langor doce e amargo de melancolia que, talvez, chamarás de mal da Sardenha”.
GALERIA DE ROUPAS TÍPICAS DA TRADIÇÃO SARDA
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