Santuários redivivos: O poder regenerador da natureza
Nem mesmo explosões nucleares conseguem impedir o impressionante trabalho de autorrecuperação da natureza. Locais de onde o homem se afastou há décadas são um exemplo desse processo curativo
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
Por Eduardo Araia
Quando sofremos pequenos cortes, em geral basta lavar o ferimento com água e sabão – as defesas do corpo cuidam do resto. Com a natureza costuma ocorrer um processo parecido: sua extraordinária capacidade de regeneração faz com que, mais cedo ou mais tarde, seus machucados cicatrizem e tudo volte ao normal.
Será que o princípio também funciona para as agressões provocadas pelo homem? Apesar da capacidade adquirida por nossa espécie de poder destruir o planeta que a abriga e do uso irresponsável que ela faz dos recursos naturais, os exemplos disponíveis nos mostram que a Terra aguenta ataques pesadíssimos dos seus filhos mais ingratos. Esses exemplos estão em lugares dos quais o homem, depois de destruir, afastou-se por completo, ou quase isso. Uma visita a eles revela santuários ecológicos de impressionante riqueza.
Um oásis natural entre as duas Coreias
Um deles está numa das regiões mais perigosas do globo – a zona desmilitarizada que desde 1953 foi implantada entre as duas Coreias. É um cenário e tanto: 1 milhão de soldados norte-coreanos e 600 mil militares sul-coreanos (estes últimos ao lado de 28 mil capacetes azuis das Nações Unidas) vigiam-se separados por uma faixa de terra de quase 4 quilômetros de largura e 250 quilômetros de comprimento. Essa área, repleta de minas terrestres e armadilhas antitanques, é o símbolo vivo da guerra entre os dois países (1950-1953), na qual se estima que 4 milhões de homens tenham sido mortos ou feridos. Como as hostilidades entre os comunistas da Coreia do Norte e seus vizinhos capitalistas do sul diminuíram nos últimos tempos, uma pequena (e segura) parte do território do lado sul-coreano, em Panmunjon, foi aberta à visitação de turistas estrangeiros, levados por excursões rodoviárias que partem da capital, Seul.
A área hoje desmilitarizada foi cultivada por agricultores ao longo de aproximadamente 5 mil anos. Mais de cinco décadas depois de ser isolada, porém, ela já não mostra sinais de interferência humana. Com isso, fauna e flora prosperaram de forma exuberante. Densas florestas ocupam as encostas das montanhas a leste, enquanto arbustos e grossas gramíneas tomaram conta das áreas ocidentais. Animais em risco de extinção, como o urso-tibetano, o leopardo-asiático, o lince-eurasiano, o carneiro goral e até o ameaçadíssimo tigre-de-amur, passeiam por aquelas terras. Vários pássaros migratórios, como o grou-de-nuca-branca, o grou-de-coroa-vermelha e o colhereiro-de-cara-vermelha, estabeleceram bases na zona desmilitarizada. Segundo ambientalistas, a região abriga hoje mais de 1.100 espécies de plantas e mamíferos.
Curiosamente, esse espetáculo está ameaçado pela paz. Uma aproximação diplomática entre as Coreias do Norte e do Sul pode levar a uma intensificação do aproveitamento econômico da área, com as consequências imagináveis. O desflorestamento ao norte da zona desmilitarizada, por exemplo, já causa inundações. Um complexo industrial foi construído em 2004 em Kaesong, nove quilômetros ao norte, para aproveitar os investimentos sul-coreanos e a mão de obra barata dos vizinhos comunistas. Embora o processo de consolidação do poder do atual líder norte-coreano, Kim Jong-un, tenha envolvido o fechamento de Kaesong, em 2013, imagina-se que o complexo venha a ser reaberto num futuro relativamente próximo (o local representa uma importante fonte de divisas para a Coreia do Norte), e a partir daí nada impedirá que outras iniciativas do gênero sejam erguidas nas proximidades.
A saída pode estar nos esforços do professor de entomologia Ke Chung Kim, curador e diretor do centro de pesquisa da biodiversidade da Universidade Estadual da Pensilvânia (Estados Unidos) e fundador do DMZ (sigla em inglês de zona desmilitarizada) Forum. Ele se empenha para convencer os governos das duas Coreias a – com o apoio da Unesco – preservar a zona desmilitarizada como um dos sítios do Patrimônio Mundial. A empreitada não é fácil, afirmou Kim ao jornal inglês The Guardian, mas seu sucesso ainda não pode ser descartado.
Laboratório de explosões atômicas
A política não representa empecilho no caso da Ilha Christmas (hoje chamada de Kiritimati), cujas agressões humanas foram bem maiores do que as sofridas pela zona desmilitarizada coreana. Maior ilha de coral do mundo, esse pedaço de terra de 321 km2 no Oceano Pacífico – antiga possessão do Reino Unido que em 1979 passou a integrar um novo país, Kiribati – e a vizinha Ilha Malden foram palco, entre 1957 e 1962, de 30 testes nucleares conduzidos por militares britânicos e norte-americanos. As experiências variaram da detonação, sobre a ilha, de uma bomba de 24 quilotons colocada num balão, à explosão de um artefato de 3 mil quilotons a 2.700 metros acima do nível do mar. (Como referência, a bomba jogada sobre Hiroshima era de 15 quilotons.) Levados para um navio militar ao largo da costa, os moradores locais foram espectadores privilegiados desses ensaios de Juízo Final.
A ilha poderia ter sofrido ainda mais, não fosse o Tratado de Interdição Parcial de Testes, assinado por todas as potências nucleares (e vários países não nucleares) em 1963. Na primeira metade da década seguinte, o governo britânico decidiu investigar se havia indícios de radiatividade no local e, em caso positivo, o que deveria ser feito – um estudo que os norte-americanos refizeram em 1975. Os resultados foram sempre negativos. O que as pesquisas flagraram foi um enorme volume de lixo, desde veículos abandonados até tambores que se estragavam na umidade reinante.
As condições meteorológicas da região favoreceram Christmas em termos de radiação – os ventos carregam as partículas radiativas para o oceano, no qual elas se diluem rapidamente. O passado nuclear e a ausência dos atrativos cênicos de um Taiti, porém, ajudaram a manter sua economia frágil, baseada em ajuda internacional, exportação de peixes tropicais e um escasso movimento turístico.
Mas a maior parte desse fluxo de turistas vai até lá por uma evidência de riqueza ambiental, assinala David Wolman na revista eletrônica Salon: Christmas atrai pescadores esportivos por abrigar o maior reduto mundial do ubarana-rato, um peixe furtivo e velocíssimo que gosta das águas rasas da sua laguna. Além deles, visitantes com interesses distantes das varas de pesca têm se impressionado com a variedade de pássaros, como os raros petrel-fênix e mergulhão-de-pata-vermelha, a bela fauna marinha e o excelente estado dos recifes.
Em Bikini três ilhotas desapareceram
Outros pontos do Pacífico que abrigaram testes nucleares não tiveram a mesma sorte de Christmas e permaneceram por décadas contaminados pela radiatividade, mas os prejuízos diminuem a olhos vistos. O atol de Bikini – palco de explosões a cargo dos norte-americanos nos anos 1940 e 1950, com direito a chuva radiativa e desaparecimento de três ilhotas – voltou a receber turistas nos anos 1990, e uma pesquisa feita por biólogos marinhos numa cratera (aberta pela explosão de uma bomba mil vezes mais potente que a jogada em Hiroshima) revelou que a laguna já está 80% coberta por corais em visível processo de crescimento.
Removidos de sua terra, assim como os moradores de Bikini, habitantes de um atol da mesma região, Rongelap – também sede de testes nucleares –, e seus descendentes já convivem com a expectativa de voltar: há um plano de reassentamento de US$ 45 milhões em execução, assinado em 1996 pelo Departamento do Interior norte-americano e pelo governo da República das Ilhas Marshall, que hoje administra a região. Ainda existe uma pendência considerável entre os líderes marshalenses e os norte-americanos. Os primeiros querem que os EUA deem mais dinheiro e assistência médica para os casos de câncer e os danos derivados dos anos de testes nucleares. Os EUA, por seu lado, afirmam que a quantia já ressarcida às Ilhas Marshall daria conta de todos esses gastos e avaliações feitas por cientistas do governo e independentes não registram mais nenhum sinal de radiatividade no atol. Discussões à parte, os rongelapenses preveem seu retorno à terra natal para um “futuro próximo” – quando, enfim, o pesadelo ambiental provocado pelo homem na região será apenas mais uma página da história.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247