Salvar os mares: Estamos acabando com eles
Os ecossistemas marinhos são um enorme manancial de riquezas para a humanidade, mas o tratamento que recebem põe em risco sua sobrevivência
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Por Sara A. Lourie (*)
Os ecossistemas marinhos nos fornecem pelo menos US$ 20,9 trilhões em bens e serviços a cada ano. No entanto, tratamos o mar como um esgoto, um lixão e uma fonte inesgotável de peixes. As respostas ecológicas dizem tudo: perda de mais de 90% dos principais predadores, colapso da pesca e uma mudança de águas ricas em vertebrados para mares dominados por águas-vivas, com um crescente número de zonas mortas. Segundo estudo publicado na revista Science, quase todo quilômetro quadrado dos oceanos está sob ameaça.
É preciso fazer mais para proteger o reino marinho. Mas por onde começar? Qual contribuição a biogeografia marinha pode dar? Quatro das abordagens mais comuns para o planejamento sistemático de conservação – hotspots, representação, ecorregiões e áreas-chave – foram apresentadas em recente conferência da Unesco. Cada uma dessas abordagens reflete um conceito biogeográfico e dados específicos.
Hotspots – A simples abordagem conceitual é priorizar hotspots, as áreas ricas em espécies. Com cerca de 100 mil km2 de recifes de coral (34% do total mundial) e mais de 2 mil espécies de peixes de recife, o Sudeste da Ásia é um desses “pontos quentes”. Estima-se que a área relativamente pequena entre Indonésia, Filipinas e Papua-Nova Guiné (o “Triângulo de Coral”) abriga 83% das espécies de coral do mundo e 58% dos peixes de recifes. No entanto, essa riqueza é atribuída principalmente a uma concentração de distribuições sobrepostas de espécies abrangentes, como o peixe Abudefduf bengalensis, em vez de uma abundância de espécies de áreas restritas (endemias), como o Discordipinna griessingeri, um tipo de caboz.
Em termos ecológicos, porém, pode ser que as regiões pobres em espécies, ou coldspots, sejam mais vulneráveis. Por um lado, a baixa diversidade implica uma probabilidade maior de que a extinção de uma ou mais espécies signifique a perda de um ecossistema fundamental. Coldspots também contêm um número desproporcionalmente grande de espécies endêmicas. Já em 2002, cientistas tinham mapeado a distribuição de 3.235 espécies de peixes, corais, lagostas e moluscos e mostrado que, como na terra, as espécies de distribuição restrita no mar estavam concentradas em centros de endemismo.
Embora a abordagem de hotspots seja relativamente simples, atrativa politicamente e transparente em termos de análise, há um risco de que ela possa prejudicar as comunidades de “áreas não hotspot”, que também precisam estar envolvidas no esforço de conservação.
Representação – A segunda abordagem propõe assegurar uma representação adequada e abrangente de cada tipo de hábitat ou zona biogeográfica. Mas elaborar classificações apropriadas do meio ambiente marinho, a fim de avaliar a representação de uma gama de escalas espaciais, não é uma tarefa fácil.
Classificações marinhas são baseadas em vários dados, como a direção, a velocidade e a persistência das correntes; a temperatura e a cobertura de gelo; a geomorfologia; imagens de satélite; sondagens de sonar; registros de fauna, associações bióticas e percentagem de endemismo.
Ecossistemas “empoleirados” no mar, como recifes de coral, algas marinhas, faunas de fontes hidrotermais e bancos de ostras, são mais fáceis de mapear do que ecossistemas no mar aberto (zonas pelágicas), apesar dos desafios envolvidos na localização dos mesmos.
Corais na Austrália
Ecorregiões – Recentemente, tem havido uma mudança para uma “abordagem ecossistêmica” na conservação marinha, com os cientistas indo além de padrões e números para considerar o funcionamento ecológico das áreas. Dessa forma, os ecossistemas associados, tais como recifes de corais, mangues e leitos de algas marinhas, são considerados em conjunto num plano de gestão ecorregional.
Áreas-chave – A abordagem de “áreas-chave” não depende de uma etapa de classificação prévia; ela se concentra em locais específicos onde importantes processos ecológicos acontecem. Por exemplo, áreas-chave incluem locais de reprodução das baleias, praias de nidificação para as tartarugas, corredores de migração ou locais onde há espécies ameaçadas em particular.
Nidificação para tartarugas
Malabarismos com abordagens diferentes: Na prática, as ONGs internacionais usam uma combinação de abordagens para ajudar a determinar suas prioridades de conservação. O programa marinho da Conservação Internacional (CI) foi inicialmente conduzido por uma abordagem de hotspots, combinando hotspots de endemismo com outros ameaçados. Atualmente, a CI se concentra em três “paisagens marinhas”, usando outros critérios biológicos e socioeconômicos.
Em 1995, há quase dez anos, a União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN, na sigla em inglês) avaliou o grau em que as áreas de proteção marinha existentes contribuíram para um sistema representativo, mas a falta de um acordo-quadro sobre a estrutura biogeográfica global prejudicou essa avaliação. Comentários recentes usando a classificação de ecorregiões marinhas do mundo mostram que apenas 16 delas têm mais de 1% de sua área designada como reservas marinhas, ou no take zones (zonas sem captura). Essa classificação, já em uso no planejamento de conservação global e regional pelo World Wildlife Fund (WWF), The Nature Conservancy e outras ONGs internacionais, está sendo adotada como ferramenta de apoio pela Convenção sobre Diversidade Biológica. Em escala menor, o princípio da representação tem sido utilizado com sucesso, por exemplo, no estabelecimento de prioridades básicas e de zoneamento para a Grande Barreira de Corais da Austrália.
Em 2002, o WWF utilizou uma abordagem de ecorregiões na sua análise Global 200. No reino marinho, ecorregiões foram definidas, mapeadas e avaliadas por critérios diferentes de biodiversidade, como riqueza de espécies, endemismo, maior singularidade taxonômica, fenômenos ecológicos ou evolutivos incomuns e raridade global do tipo de hábitat.
As ecorregiões foram, então, classificadas como globalmente notáveis, regional ou biorregionalmente notáveis, ou localmente importantes. Por último, foram avaliadas pelo nível de ameaça, a fim de se chegar a uma lista final de 43 ecorregiões marinhas prioritárias. O WWF trabalha atualmente em 20 delas.
A abordagem de áreas-chave tem sido menos usada no mar do que em terra. Contudo, os grandes ecossistemas marinhos, 16 dos quais recebem atualmente financiamento do Global Environment Facility, concentram-se em áreaschave de produtividade. Em escala menor, a abordagem das áreas-chave foi incorporada ao planejamento ecorregional do WWF.
Área de Proteção Marinha
Áreas definidas como prioritárias por diferentes ONGs, como recifes de coral, normalmente se sobrepõem.
Parques de papel: O pressuposto implícito da definição global de prioridades é que a conservação baseada em sítios locais dentro de áreas de alta prioridade mundial aloca adequadamente os recursos. Financiamentos e recursos para a conservação com base local são, portanto, filtrados pelo enquadramento global e podem não necessariamente levar em conta as realidades sociais que governam o sucesso das Áreas de Proteção Marinha (APMs) designadas. Áreas definidas como prioritárias por diferentes organizações comumente se sobrepõem. Por outro lado, áreas significativas do oceano não atraem a atenção prioritária nem o financiamento associado a ela.
Na verdade, as APMs designadas ocorrem tanto em áreas prioritárias como em outros lugares. Existem hoje em torno de 5.045 APMs no mundo, que abrangem por volta de 4% da área da plataforma continental, ou 0,7% da superfície do oceano. O conjunto das reservas marinhas, por seu lado, representa menos de 0,1% da superfície dos oceanos, e nenhuma delas está em alto-mar. Pior ainda, estimativas sugerem que a maioria das APMs não passa de “parques de papel”. A partir de 2006, por exemplo, menos de 0,01% dos recifes de coral do mundo estavam dentro das APMs definidas como reservas marinhas.
Pesca industrial - Os subsídios concedidos à pesca industrial ao redor do mundo estão entre os fatores sociopolíticos que devem ser considerados nos esforços de conservação marinha.
Adaptar os regimes para os oceanos
Em geral, a conservação marinha ainda parece presa à ideia de designar áreas de proteção baseadas em locais, pois a maior parte da teoria do planejamento conservacionista deriva do trabalho terrestre. Mas a própria natureza do mar significa que certas abordagens desenvolvidas na terra podem não ser eficazes num cenário marinho, pois o mar tem dimensões físicas, biológicas e sociopolíticas diferentes das da terra.
Por exemplo, a elevada densidade da água permite aos organismos flutuar em um mar totalmente tridimensional sem gastar muita energia. Ao contrário das árvores e da grama enraizadas na terra, a maioria das plantas marinhas, os microscópicos fitoplânctons, está à mercê dos movimentos da água gerados por variações de temperatura, salinidade e química do oceano e é, portanto, muito dinâmica e difícil de mapear. A fluidez e a relativa falta de barreiras físicas significam que muito do mar está interligado física, ecológica e geneticamente. Seu tamanho também permite que os indivíduos se movam por enormes distâncias e que as espécies tenham amplitudes potencialmente vastas.
Essas características do mar têm importantes implicações para a biogeografia, a forma como as ameaças à biodiversidade podem se espalhar e a eficácia das abordagens de conservação. Por exemplo, as regiões biogeográficas do mar são tridimensionais e têm fronteiras difíceis de mapear. Já na terra, as plantas enraizadas crescem em regiões bidimensionais, onde as transições são em geral mais abruptas e comparativamente estáveis ao longo do tempo e do espaço. Os fatores sociopolíticos incluem a procura de recursos marinhos, o livre acesso à natureza de grande parte do mar, subsídios perversos na pesca industrial, alterações climáticas induzidas pelo homem, pobreza na governança do oceano e na resolução de conflitos, combinados com um conhecimento geralmente escasso das questões marinhas. Uma abordagem eficaz para a conservação marinha deve considerar as relações dentro e entre os ecossistemas, mais do que simplesmente um grupo de áreas protegidas isoladas.
A biogeografia pode contribuir significativamente para isso, fornecendo dados sobre a distribuição das espécies e respondendo à pergunta “por que as coisas estão onde estão?” A ciência biogeográfica tem o potencial para aprofundar a compreensão dos processos ecológicos e evolutivos, reforçar a voz da conservação no discurso político e educar e inspirar o público a cuidar da biodiversidade marinha e da necessidade de uma ética de conservação.
Info: www.wdpa.org
(*) Sara A. Lourie é biogeógrafa marinha do Redpath
Museum, McGill University, Quebec, Canadá.
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