Rota das Abolições. Tributo à memória das causas que libertam
A Rota das Abolições é hoje um rico e estimulante itinerário turístico da França. Lançada em 2004, na província da Franche-Comté, ela traça o roteiro de personagens, lugares e situações que foram fundamentais nos processos de abolição da escravidão.
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Por Luis Pellegrini. Fotos de Lamberto Scipioni. De Besançon, Franche-Comté, França
Como as pessoas e as nações, também as cidades e as regiões têm o seu destino histórico. Muitas vezes, só o transcorrer do tempo permite revelá-lo com clareza. A Franche-Comté, província no extremo leste da França, fronteira com a Suíça, não fugiu à regra. Mas no caso desse território agreste, outrora habitado quase apenas por camponeses de natureza simples e religiosa, ninguém poderia imaginar que seu destino seria marcado a ferro e fogo pela escravidão e pelos processos abolicionistas que correram o mundo entre a segunda metade do século 18 e a primeira metade do século 19.
Para começar, na Franche-Comté, não havia nenhum escravo nesse período. Não havia sequer, ao que se saiba, um único morador de pele negra. Muitos nem sabiam que no mundo existiam pessoas de tez muito escura. O único personagem que correspondia a esse modelo era o rei mago Baltazar, figurado em algumas pinturas da Adoração do Menino Jesus que adornavam as igrejas. Apesar disso, na Franche-Comté, durante aquele tempo que durou um século, inúmeras situações e o surgimento de vários personagens de primeira grandeza contribuíram para dar à província a marca indelével que ela carrega e exibe até hoje: a de uma terra habitada por um povo libertário e decididamente abolicionista.
A tal ponto que, há duas décadas, decidiu-se criar na Franche-Comté um roteiro turístico inteiramente voltado para o tema, a “Route des Abolitions”, Rota das Abolições. Ele é hoje um dos itinerários geográficos, históricos, culturais e espirituais mais interessantes de toda a França. Inscrita em projeto internacional da Unesco, a Rota se apresenta como um “circuito do dever de memória em relação ao tráfico, a escravidão, as resistências e as abolições”.
Toussaint Louverture, o “Napoleão Negro”
A Rota começa em Besançon, a bela e rica capital provincial da Franche-Comté, fundada pelos romanos e orgulhosa do seu passado de importante encruzilhada comercial e cultural entre a França, a Suíça e a Alemanha. Caracterizada por uma arquitetura onde predominam os grandes palácios barrocos e construções de pedra medievais, Besançon possui a mais importante galeria de obras de arte na França fora de Paris. Com efeito, o Museu de Belas Artes e Arqueologia de Besançon reúne uma excepcional coleção iniciada em 1694 e que não para de crescer. Entre os seus tesouros destaca-se um grande acervo de artefatos do antigo Egito, bem como pinturas que incluem obras de Bellini, Bronzino, Tintoretto, Rubens, Jordaens, Ruisdael, Cranach, Zurbarán, Goya, Fragonard, Boucher, David, Ingres, Géricault, Courbet, Constable, Bonnard, Matisse, Picasso e muitos, muitos outros do mesmo calibre. Besançon é sem dúvida uma das mais importantes “Villes d’Art” da França.
Mas, para os interesses da Rota das Abolições, o personagem que mais importa na capital provincial é sem dúvida François-Dominique Toussaint Louverture, negro nascido escravo em 20 de maio de 1743, no Caribe francês, e que morreu prisioneiro em 8 de abril de 1803 no Forte de Joux, imensa fortaleza de pedra construída em La Cluse-et-Mijoux, nas imediações de Besançon.
Toussaint Louverture foi o maior líder da Revolução haitiana e, em seguida, governador de Saint Dominique, o nome do Haiti na época. É reconhecido por ter sido o primeiro líder negro a vencer as forças de um império colonial europeu em seu próprio país, impondo a Napoleão Bonaparte a sua primeira e fragorosa derrota militar. Pela sua bravura, é conhecido como o “Napoleão Negro”. Nascido escravo, tendo sua formação em armas e tendo levado uma luta vitoriosa para a liberação dos escravos haitianos, ele passou a ser uma figura histórica de importância no movimento de emancipação dos negros na América.
A revolução para a independência do Haiti iniciou-se em 1791, tendo à frente o líder negro Toussaint Louverture e, como pano de fundo, os incêndios nos canaviais. Em 1794, quando o governo aboliu a escravidão nas colônias, os haitianos já tinham conquistado sua liberdade.
A revolução, no entanto, não agradou Napoleão, já que a libertação dos escravos diminuiu os lucros com o que era outrora a mais lucrativa colônia francesa. O imperador francês enviou para a colônia seu cunhado, Charles Leclerc, com uma intenção declarada - depor Louverture, e com uma intenção secreta - restaurar a escravidão na ilha. Graças a complôs, traições e estratagemas de todo gênero, Leclerc conseguiu aprisionar Louverture. Ele e sua família foram enviados para a França e encarcerados. Na prisão, em 1803, Louverture finalmente morreu de pneumonia e foi enterrado sem caixão em uma caverna debaixo da capela da prisão. A masmorra onde ele passou seus últimos meses é hoje um ponto de peregrinação obrigatório para todos que se dedicam aos estudos das ações abolicionistas.
Besançon é o epicentro ideal para se visitar as localidades ligadas à Rota. Permanece-se hospedado em algum dos hotéis da boa rede de hotelaria da capital, e a cada dia vai-se a um ou dois dos demais lugares. As viagens são feitas de carro ou de ônibus. Informe-se no site da Rota, que fornecemos ao final da reportagem.
Na Rota estão as localidades de Chamblanc, Seurre e Jallanges, as três muito próximas umas das outras. Em Jallanges nasceu e viveu madre Anne-Marie Javouhey, personagem notável da saga abolicionista. Filha de um abastado fazendeiro, sua casa abriga hoje algumas freiras da ordem que ela fundou e conserva ainda o mobiliário original. São essas freiras que conduzem os visitantes e dão explicações a respeito da saga da fundadora.
Minha consciência limpa é mais importante
Embora religiosa e devota, Anne Marie era mulher de personalidade forte e não se dobrava diante de nada nem ninguém. Nascida em Jallanges em 1779, tornada freira em 1807, ela foi mandada para a Guiana Francesa em 1828. Lá, tomou contato pela primeira vez com os horrores da escravidão, e se rebelou contra ela. Pragmática, logo percebeu que não tinha poder para uma ação política efetiva, mas decidiu mesmo assim fazer tudo que estivesse a seu alcance em prol da abolição. Com o dinheiro da herança paterna, começou a comprar escravos, com a intenção de libertá-los. Mas não o fazia de imediato. Antes, ela os fazia passar durante alguns anos por uma preparação, na qual aprendiam a ler e a escrever, a desempenhar algum ofício, a desenvolver a sua consciência de homens e mulheres livres. Quando o escravo estava pronto, ganhava um certificado de libertação, roupas decentes e... um par de sapatos. Seriam os primeiros calçados da sua vida. Em quase todos os países escravagistas das Américas, Brasil inclusive, aos escravos era proibido o uso de sapatos...
Anne Marie Javouhey acabou comprando terras na Guiana, e nelas fundou uma cidade, Maná, para onde se mudou com todas as irmãs da ordem e centenas de libertos ou escravos em processo de libertação.
Foi quando ela foi chamada às falas pelo Cardeal de Caiena. Como no Brasil e na maior parte dos países americanos, a Igreja era grande proprietária de escravos e auferia grandes lucros com o tráfico. Autoridade máxima da Igreja Católica na colônia, o cardeal instou Anne-Marie a abandonar imediatamente o seu projeto, sob pena de excomunhão. A resposta que ela deu está nos anais da história das abolições: “Pode me excomungar, eminência. Minha consciência limpa é mais importante do que todos os lucros que a Igreja possa auferir com esse negócio infame”.
Anne Marie Javouhey foi realmente excomungada. Mas ela nunca deixou o hábito de religiosa e voltou para Maná onde continuou sua obra com o uso de fundos próprios. Cerca de dois anos depois, foi reabilitada pela Igreja e prosseguiu até o fim libertando escravos. Hoje, seus despojos descansam no Panteão da França.
Abade Gregório, figura emblemática da Revolução
A Rota das Abolições continua na localidade de Emberménil, onde foi pároco durante oito anos Henri Jean-Baptiste Grégoire, que passou à história da França com o nome de Abade Gregório. Ele nasceu em 1750 e morreu em Paris em 1811. Gregório foi padre católico e homem político francês, uma das principais figuras emblemáticas da Revolução Francesa. Na Assembleia Constituinte, ele pediu não apenas a abolição total dos privilégios dos nobres e dos poderosos, mas também o fim da escravidão. Lutou em prol do sufrágio universal e da concessão de direitos cívicos e políticos aos judeus, chamando a comunidade judaica de irmã. Fundador do Conservatório Nacional das Artes e Ofícios, ele participou da criação do Instituto da França, tornando-se membro dele. Teve ação preponderante na elaboração e promulgação da Carta dos Direitos do Homem, precursora da Carta dos Direitos Humanos da ONU
Em Emberménil, onde Gregório desenvolveu e amadureceu suas ideias libertárias, um pequeno museu que leva seu nome traça, com documentos e obras de arte, a trajetória completa da sua vida e obra. Como Anne-Marie Javouhey, seus restos mortais também estão no Panteão da França, em Paris.
A Rota prossegue em Fessenheim, onde está a Maison Schoelcher. Nela viveu Victor Schoelcher, que foi secretário de Estado para as Colônias e que, em 1848, fez votar o decreto para a abolição definitiva da escravidão. Humanista eclético, partidário não apenas da abolição da escravidão mas também da pena de morte, defensor das causas das mulheres e dos direitos da criança, seus despojos também repousam no Panteão da França.
O episódio mais surpreendente da saga abolicionista que aconteceu na Franche-Comté, não se liga no entanto apenas a um personagem ilustre, mas a toda uma comunidade, a população da cidadezinha de Champagney. Foi lá que, em março de 1789, seus habitantes decidiram, por unanimidade, elaborar um documento de condenação solene à escravidão e à exploração do homem. Naquele ano, na tentativa de acalmar os ânimos cada vez mais exaltados da população do seu país, o Rei Luís 16 solicitou às comunidades nacionais que elaborassem “cahiers de doléances”, cadernos de queixas, onde seriam elencados os problemas mais urgentes e graves vividos pelas comunidades.
Era uma medida demagógica e paliativa, já que o rei, ao que parece, nunca tomou conhecimento das centenas de cadernos que chegaram ao palácio do governo. Todos tratavam de questões locais. Menos o caderno de Champagney. Nele, os habitantes da cidadezinha não pediam nada para si mesmos, porém condenavam com veemência a prática da escravidão. No Caderno, pediam ao rei que proclamasse a abolição, pois “Os habitantes da comunidade de Champagney não conseguem parar de pensar nos males que sofrem os negros nas colônias sem ter o coração dilacerado pela dor mais pungente”.
Casa da Negritude, em Champagney
Em Champagney funciona hoje a Maison de la Negritude, Casa da Negritude, que rende homenagem ao gesto corajoso dos moradores da cidade. Nesse espaço, gerido pela prefeitura local, a escravidão e o tráfico negreiro são hoje evocados com a exposição de objetos, fotos, quadros e documentos relativos ao tema, notadamente a reprodução em escala natural do porão de um navio negreiro. A instituição dedica-se também a cursos, encontros e congressos que atraem especialistas de todo o mundo, particularmente dos países africanos.
A Rota das Abolições se apresenta desse modo como um curioso e muito interessante destino para um turismo que não pretende apenas curtir a boa gastronomia, paisagens e lojas chiques da França. O que não significa que a Franche-Comté não tenha nada a oferecer nesse sentido. Pelo contrário, a região dispõe de ótima hotelaria e de uma gastronomia muito particular, onde predominam os pratos da antiga cozinha francesa, abundante, generosa, saborosa, repleta de carnes, embutidos e queijos, tudo regado pelos vinhos secos da região, sobretudo os excelentes brancos secos, de uvas de montanha.
Mais informação: Association Route des abolitions de l’esclavage et des Droits de l’Homme, www.abolitions.org
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