Roberto Gambini. A psicoterapia como ofício

Na linha de frente dos psicólogos brasileiros de formação junguiana, Roberto Gambini afirma: "Uso a palavra ofício em vez de profissão para diferenciar uma atividade criativa de outra que, em geral, é repetitiva". Seu livro  “A voz e o tempo – Reflexões para jovens terapeutas”, pelo Ateliê Editorial, faz furor entre psicoterapeutas de todas as linhas.

Na linha de frente dos psicólogos brasileiros de formação junguiana, Roberto Gambini afirma: "Uso a palavra ofício em vez de profissão para diferenciar uma atividade criativa de outra que, em geral, é repetitiva". Seu livro  “A voz e o tempo – Reflexões para jovens terapeutas”, pelo Ateliê Editorial, faz furor entre psicoterapeutas de todas as linhas.
Na linha de frente dos psicólogos brasileiros de formação junguiana, Roberto Gambini afirma: "Uso a palavra ofício em vez de profissão para diferenciar uma atividade criativa de outra que, em geral, é repetitiva". Seu livro  “A voz e o tempo – Reflexões para jovens terapeutas”, pelo Ateliê Editorial, faz furor entre psicoterapeutas de todas as linhas. (Foto: Luis Pellegrini)


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O psicoterapeuta paulistano Roberto Gambini.

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Entrevista a: Luis Pellegrini

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Fui procurar Roberto Gambini para este bate-papo. Mais um, na longuíssima lista de encontros que já mantivemos. Roberto foi meu analista durante quatorze anos. Vivi com ele uma aventura psíquica fundamental. Devo a ele um sem número de aprendizados e de transformações. Ao longo do nosso trabalho analítico, nos tornamos amigos, irmãos, estabelecendo uma lealdade recíproca que, espero, atravessará o Tempo e irá Além. Como acontece com os bons vinhos, Roberto fica cada vez melhor com o passar dos anos. Por isso, é preciso de tempos em tempos ir lá, bater à porta do seu refúgio, no bairro paulistano de Perdizes. E ouvi-lo. Sua cornucópia de sabedorias não tem fim.

 

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Você dedica seu livro, “A voz e o tempo”, aos jovens terapeutas que ingressam na carreira. Quais são os seus recados fundamentais?

Este livro comemora meus 30 anos de consultório. Nasceu da necessidade interna de dar um depoimento o mais sincero, o mais corajoso, o mais pessoal possível. É dirigido aos jovens terapeutas, mas não como um manual, não com o intento de ensinar a ser terapeuta. Eu o pensei muito mais como um parâmetro. Eu era jovem, tinha trinta e poucos anos, quando conheci meu analista, Fierz, em Zurique. Ele já passara dos 70 e costumava dizer: “Em épocas de crise de valores, quando o rumo das coisas parece perdido, é preciso que o velho saia do seu refúgio e vá à praça pública, abra a boca e fale.”

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Por ter vivido o tempo e ganho experiência, o velho tem o dever moral de transmitir o que aprendeu aos que estão no início da caminhada?

Chega a hora em que o homem e a mulher maduros precisam falar. O Brasil, por exemplo, vive hoje uma crise muito grande e multifacetada e espera que as pessoas que têm algo a dizer se manifestem. Muitas delas estão recolhidas, vivendo suas vidinhas. É preciso que saiam da toca e falem. Sua voz é importante porque carrega o peso da vida vivida.

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Como essa tomada de consciência se manifesta em seu livro?

Quis mostrar como é a carreira na linha junguiana. Isso significa como exercer um trabalho apoiado numa escola real de pensamento. Em nenhum momento, no entanto, assumo a postura do professor. Não discuto conceitos, não é um livro de teoria ou um manual prático de psicoterapia. É simplesmente um grande depoimento.

O depoimento costuma pertencer ao gênero das biografias.

Como a entrevista. Em geral, quando um profissional dá um depoimento, conta uma história de sucesso. Pouquíssimos dão um depoimento porque fracassaram. Há muitos livros americanos assinados por empresários que, na verdade, contrataram um ghost writer para contar como começaram como office-boy e viraram presidente de multinacional. Meu depoimento não é uma história de sucesso. Seria até uma incongruência, já que, para mim, a melhor maneira de ser analista é ser um analista inseguro. No livro, procuro contar o que o tempo fez comigo. Melhor ainda, o que o tempo fez com a minha mente e a minha psique. Não me preocupei com os velhos clichês sobre o tempo: o tempo nos envelhece, o vinho fica melhor com o tempo, etc. Apenas quis contar os efeitos da passagem do tempo na moldagem de uma massa que consegui deixar plástica – minha massa mental e psíquica.

Sua vida e sua obra são caracterizadas pelo empenho quase feroz na luta contra a rigidez e os processos de endurecimento da mente e da psique.

Nunca permiti que minha massa mental e psíquica se enrijecesse. Esse empenho me obrigou a fazer algumas opções importantes na vida. Saí do mundo acadêmico e não me filiei a sociedades profissionais, pois acho que elas comprometem a maleabilidade, criam estruturas fixas e enrijecem a mente. Você deixa de discutir certas coisas, deixa de estudar outras, porque elas não combinam com o “departamento” onde está. Você não pode escrever sobre certos assuntos porque eles não estão na pauta da Fapesp ou das empresas financiadoras de projetos. Seus colegas fazem cara feia diante dessa independência, há um patrulhamento. Nessas instituições existe um claro processo de enrijecimento das estruturas mentais. Há uma estrutura, sim, mas ela é fixa, crê-se definitiva. Odeio isso. Quero uma estrutura mental que sofra os efeitos do vento. Que ela se vergue, que ela se levante de novo. Que abra espaço para que o vento sopre dentro dela. O que é o vento? São as leituras novas que a gente faz, os novos contatos humanos, a coragem de mergulhar em áreas para as quais julgamos não estar preparados. Esse é o meu modo de ser.

O que o tempo fez com a sua massa mental?

Ele soprou como o vento e foi levando as folhas soltas, tirando tudo aquilo que não possuía muito peso. Levou embora idéias produzidas por outros, como os ditados do Jung, as regras de como fazer as coisas. Como tudo isso não estava realmente arraigado em mim, o vento levou. Tirou a ingenuidade, a ilusão, a superficialidade, o lugar- comum, o medo de entrar no munmundo assustador do outro, a preocupação com a adaptação do paciente, com a suavização dos sintomas, com a normalização da pessoa. Fez-me entender que tudo isso são apenas coisas da superfície, e não da profundidade.

  

"Nada diferencia o terapeuta do paciente. A única diferença é funcional. Eu pratico um ofício e o paciente, não".

 

O que sobrou?

Ficou o que tinha peso ou o que em mim estava arraigado a partir de um processo real. O tempo tirou coisas que eu dizia, mas que eram apenas teóricas, ou então coisas que eu não tinha vivido. Quando falo de uma coisa que não vivi, minha fala tem pouco ou nenhum efeito. No lugar dessas coisas, o tempo colocou outras, muitas vezes opostas a elas. Ensinou-me a olhar cada vez mais a realidade do paciente como ela é, a não ter medo de entrar nos labirintos onde ele se encontra, a não vir a ele com idéias prontas, a sempre admitir o imprevisível, o não pensado, o não vivido. A acreditar mais e mais no poder da vida, que é o poder de se autopreservar e de criar formas viáveis de existir. Ensinoume a projetar menos no paciente. A distinguir melhor o que é uma coisa minha e o que é uma coisa dele.

Alguma coisa em você não mudou apesar da passagem do tempo?

Sim: minha crença profunda de que a terapia é um ato de amor. Sem amor não dá para fazer terapia. Sou muito amoroso, afetivo. Ponho uma mão leve nas feridas do paciente, não uso palavras agressivas, não encosto pessoas na parede, porque não quero que façam isso comigo e não acredito que tais atitudes possam curar ou beneficiar alguém.

E sua relação com Carl Gustav Jung? Mudou?

O vento não alterou minha relação com ele. Sou muito grato a Jung. Não tenho com ele problemas de filho que quer superar o pai; não quero virar pós-junguiano; não entro em competição com Jung para dizer que ele errou e eu acertei. Minha relação com ele é de gratidão e de reconhecimento: na sua genialidade, ele me deu a faca e o queijo. E eu uso a faca e o queijo. Como diz Adélia Prado, quando não há faca nem queijo, há fome. Jung me deu o instrumental e a visão; é como se ele me dissesse: agora você vai lá e faz. Mas tudo isso não é uma história de sucesso. É simplesmente uma história de atravessar o tempo.

E como foi a ação do tempo sobre sua psique?

Eu poderia ter feito uma supervisão da minha psique, um monitoramento, fazendo com que ela se desenvolvesse de acordo com os principais postulados que defendo. Nesse caso, se minha psique não tivesse acompanhado tais postulados, eu ficaria muito preocupado, e cada vez que ela saísse da raia eu teria de reconduzi-la ao “bom caminho”. Mas eu disse não. Sinto que minha psique é como uma planta sob o sol: aconteça o que acontecer com ela – pode ficar seca, pode vir um bicho e comer uma folha, pode ter sol a mais, pode ter sol a menos, pode ter chuva -, não quero colocá-la num estado privilegiado, pois, se o fizesse, estaria me separando dos meus iguais. Quero que minha psique sofra as mesmas contingências que todos sofrem. Assim sendo, eu não a trato com luvas, não a coloco numa redoma protegida, não fico monitorando- a ou analisando-a para ver se ela está caminhando no rumo preestabelecido ou não. Isso faz com que eu tenha de suportar coisas difíceis e coisas maravilhosas. Mas nunca quis tratar a mim mesmo como um objeto especial pelo fato de ser terapeuta e conhecer certas coisas a respeito dos processos da alma e da vida.

O que o diferencia do paciente?

Humanamente, nada. A única diferença é funcional: eu pratico um ofício e o paciente, não. Ofício no sentido medieval da palavra. O que é o oficiar? Estamos, eu e o paciente, sentados um de frente para o outro em duas poltronas absolutamente iguais, numa área de dois metros quadrados. Os técnicos chamam isso de set terapêutico e, na psicoterapia convencional, existem regras sobre como manejá-lo. Há o sigilo, o respeito. Dizem que tudo que acontece no set adquire um significado diferente. Se você deixa cair café no chão do set, isso é passível de interpretação. Quando você está no set, está na lâmina do microscópio, e eu estou do outro lado desse aparelho. Para mim, as coisas não são assim! Para mim, o set é um campo arável, onde nós dois plantamos. Trata-se, portanto, de uma agricultura. Essa é, para mim, a melhor metáfora da terapia: uma agricultura. A etimologia latina da palavra “ofício” é opus + facere. Opus, na Antigüidade, significava o trabalho agrícola. Depois, na alquimia, houve o opus alquímico: fazer a obra alquímica. Existe também o opus com o sentido de trabalho ou ritual religioso. Mas, para mim, oficiar significa mexer na terra, na semente, na água, na erva daninha, na planta que dá fruto, na que não dá fruto, no trabalho dos meeiros. O paciente e eu somos meeiros. Nem eu nem ele somos donos da terra. Pode acontecer que ele abandone a lavoura e eu não poderei continuar sozinho. Se eu estiver trabalhando mais do que ele, posso dizer: está muito pesado para mim, você não está fazendo a sua parte. E o que esperamos disso? Que algo cresça! O que é o ofício? É trabalhar com o intangível. É trabalhar com a matéria psíquica que vem expressa através da fala, do olhar, das emoções e dos gestos.

 

"Nunca permiti que minha massa mental e psíquica se enrijecesse"

 

De todas essas formas de expressão, qual é a mais importante na psicoterapia?

A fala é a mais ampla. Pode ser um relato factual, pode não ser uma fala muito verdadeira, pode ser uma fala coletiva, pode ser uma fala contida num momento de silêncio. A fala pode ser muitas coisas. Pode ser também aquela que é a fala mais importante: a fala virgem. A fala surgida na hora, criada pelo diálogo que o paciente estabeleceu comigo. A fala que dá passagem para o desconhecido ou para o inconsciente. Essa fala constitui a matéria mais rica para se trabalhar. Assim, o ofício é, em primeiro lugar, ouvir e acolher. Depois, é trabalhar esse material. Não trabalhá-lo como lingüista, como semioticista, como crítico literário. Oh! que linda a sua fala, será que ela tem um significado oculto? Simplesmente, vou agregar essa fala a outras, na tentativa de compor um todo. Sem esquecer que, toda vez que sua fala enveredar pelo território simbólico, tenho de utilizar uma ferramenta de ofício, que é saber ouvir a linguagem dos símbolos.

Por que, ao se referir ao trabalho do terapeuta, você prefere usar a palavra “ofício” em vez de “profissão”?

Para diferenciar uma atividade que em geral é repetitiva, a profissão, de uma atividade criativa e que está sempre em movimento, o ofício. Trabalhar com símbolos, por exemplo, nunca é uma coisa fixa, repetitiva; um mesmo símbolo nunca tem o mesmo sentido para duas pessoas distintas.

As faculdades de psicologia desovam, hoje, muitas centenas de novos profissionais a cada ano. Você considera que eles saem das escolas preparados para o ofício?

Não acho sequer que os jovens terapeutas estejam aprendendo um ofício. Eles fazem uma faculdade de psicologia, ou de medicina e psiquiatria. Nelas, aprendem algumas teorias. Depois, começam a fazer atendimento nas faculdades e têm supervisão. Algumas dessas salas de atendimento possuem paredes de vidro e espelhos transparentes, todos sabem disso. Muitas têm microfones ocultos. Assim, tudo o que se diz nelas será julgado pelo supervisor. E ele dirá, depois, ao jovem terapeuta: “Aqui você errou, aqui você acertou.” Nesse processo, cria-se um modelo do que é certo e do que é errado, e o jovem fica condicionado a “acertar” para não ser reprovado.

Ele fica obrigado, dessa forma, a aceitar todos aqueles parâmetros que têm origem na formação e nas convicções do supervisor…

E isso desde o início do aprendizado! Na melhor das hipóteses, isso conduzirá a uma profissão. É um pouco diferente para um estudante de medicina ou de odontologia, por exemplo. Como você obtura um dente? Pega um dente cariado de um voluntário e o dentista mais velho e mais experiente orienta: “Não, o ângulo da mão está errado. Você furou demais, você furou de menos.” Para uma profissão altamente técnica como a odontologia, isso pode funcionar. Para a psicoterapia, não. Muitas vezes, ao reconhecer ser ainda demasiado jovem para ser um analista, o próprio recém-formado decide ir mais fundo e faz um curso de especialização ou entra numa sociedade formadora de terapeutas. Acontece que tais sociedades não trabalham com a idéia de ofício. Elas trabalham com a idéia de reprodução de modelos considerados bons. Dessa maneira, tais sociedades promovem quase sempre a multiplicação de clones de uma coisa que se considera boa. Onde fica, porém, a individualidade daquele jovem terapeuta? Onde está a inovação? Onde está a possibilidade de ele criar uma outra coisa? Nada disso é incentivado nas escolas nem nas sociedades.

 

"Saí do mundo acadêmico e não me filiei a sociedades profissionais, pois acho que elas criam estruturas fixas".

 

Como se faz, então, para se praticar a psicoterapia como ofício?

É preciso, em primeiro lugar, adquirir um conhecimento muito difícil de ser alcançado. Trata-se de saber trabalhar com o inconsciente. O que quer dizer inconsciente? Quer dizer “que não é dotado de consciência”. Como é trabalhar com o inconsciente? Se você for um esotérico, começa a ler sinais. Mas a linha não é essa. Você não precisa ler sinais. Você tem de detectar símbolos. Mas, se tudo é símbolo, nada é símbolo. É necessário ter um critério para se perceber quando existe realmente um símbolo, um sintoma. O terapeuta deve saber diferenciar, qualificar aquele elemento detectado. Deve entender sua linguagem. É necessário, portanto, aprender a decifrar a linguagem simbólica. Essa é uma linguagem que podemos aprender. E não se trata de aprender a interpretar o símbolo, mas sim de transcodificá-lo. Ou seja, tirar o símbolo de um código, que é o código das nossas linguagens, e colocá-lo numa outra linguagem. Nada disso, no entanto, é matéria ensinada na universidade…

 
 

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