Revolução Cultural. Um fantasma ainda assombra a China
Meio século depois, a China ainda não digeriu a Revolução Cultural, assunto do qual pouco se fala na imprensa, a não ser por chavões e meias palavras. Mas o autor do artigo, o jornalista chinês Cau Xishun, deixa claro a aversão atual do país ao culto da personalidade e aos governantes personalistas.
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
Por: Cau Xishun (*). Fonte: Site QQ (TENCENT), de Shenzen, China
“Durante os dez anos da Grande Revolução Cultural, a liderança individual marcada pelos erros esquerdistas do camarada Mao Tse-tung sobrepôs- se à liderança colegial do Comitê Central do Partido; o culto da personalidade de que foi alvo o camarada Mao atingiu então o paroxismo". Por isso, "temos de respeitar estritamente o centralismo democrático e o princípio da colegialidade da direção, rejeitando todo o culto da personalidade".
Estas palavras recordarão sem dúvida alguma coisa a quem conhece a história da Revolução Cultural (1966- 1976) e a política de reformas e abertura (lançada em 1979) na China. Trata- se de um excerto da “Resolução sobre diferentes problemas históricos no interior do partido desde a fundação da República Popular", adotada em junho de 1981, no sexto Plenário do 11° Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), e que ainda hoje merece ser lida, 50 anos após o lançamento da Revolução Cultural.
Mao Tse-tung, um deus na Terra
Aí se diz, nomeadamente, que o culto da personalidade explica em grande parte a falência da Grande Revolução Cultural, da qual ele uma manifestação extrema. Devemos reconhecer que a China nunca teria podido enveredar pela via das reformas e da abertura nem de modificar, como fez, o seu destino e a face do país se não tivesse posto em causa, há trinta anos, essa linha de pensamento.
Durante a Revolução Cultural, o desenvolvimento doentio do culto da personalidade levou a um endeusamento persistente. Os donos do poder tiraram partido do entusiasmo das massas pelo seu líder (Mao Tse-tung), de modo que levaram ao cúmulo a veneração por Mao e pelo seu pensamento. Ele era apresentado como um gênio absoluto.
"Gênios como o Presidente Mao, só há um por século em todo o mundo e um na China em cada mil anos; o Presidente Mao é o maior gênio na terra", disse, a 18 de setembro de 1966, Lin Piao. Este alto responsável militar do PCC, a certa altura sucessor indicado de Mao, acabou morrendo em 1971 num mal esclarecido acidente de avião entre fortes rumores de conspiração contra Mao.
Também se ouvia dizer que era preciso “firmar a autoridade absoluta do pensamento de Mao Tse-tung". Para não mencionar as estátuas, os bustos, os emblemas com a sua imagem ou com as suas citações, que se encontravam por toda parte!
Todos tinham consigo um exemplar do "Pequeno Livro Vermelho", que era consultado pela manhã e referido à tarde; liam-no diariamente, recitavam citações de Mao, faziam ginástica ao ritmo das suas citações, dançavam a dança da lealdade.
O culto da personalidade atingiu o auge. Esse endeusamento era acompanhado por uma campanha de sanções e de violenta repressão: os que se opunham à revolução, os que duvidavam dos seus fundamentos ou simplesmente erravam ao recitar ou as citações de Mao eram castigados, criticados, espancados e, às vezes, presos. Um clima de terror rodeava este culto, aumentando ainda mais a sua força.
Depois de terminada a Revolução Cultural, Deng Xíaoping (que voltou ao poder em 1978, após anos de afastamento forçado) tirou da experiência uma lição amarga e criticou abertamente o culto da personalidade. "É pouco saudável e extremamente perigoso fazer depender o destino de um país do prestígio de uma ou duas pessoas", disse então. "Temos de continuar a eliminar a influência residual do feudalismo na política e na ideologia e reformar resolutamente o regime nesse sentido."
A 29 de fevereiro de 1980, o 5o Plenário do 11o Congresso Nacional do PCC adotou um código bastante elaborado de regras de conduta para os membros do Partido, que preconizava textualmente: "A propaganda sobre os dirigentes deve ser realista e comedida, sendo proibido qualquer exaltação. Não se devem entoar louvores aos dirigentes proletários com palavras de exploradores. Não são autorizadas celebrações de aniversário, nem presentes, nem o envio de mensagens de homenagem. A construção de memoriais não pode ser tolerada para dirigentes vivos, sendo limitada unicamente ao caso de dirigentes falecidos".
Uma herança feudal
A 30 de julho de 1980, o Comitê Central tornou públicas diretrizes visando "gabar menos o indivíduo". Exigia, textualmente, que “se reduza ao mínimo a publicidade dada às atividades e propósitos pessoais de um dirigente, na medida em que não tenham grande relevância e importância".
Conforme sublinha a resolução de 1981, a “China é um país com um longo passado feudal. O veneno político e ideológico que herdou é difícil de dissipar. Esta situação deu vez a condições de concentração excessiva dos poderes do Partido nas mãos de um só indivíduo, o que favoreceu procedimentos arbitrários de um só indivíduo no Partido e o culto da personalidade; também é isso que explica que o Partido e a nação não tenham conseguido impedir a eclosão nem o desenvolvimento da Grande Revolução Cultural".
A China tem de evitar todas as formas de culto da personalidade e as suas variantes, e de tudo fazer para eliminar um terreno propício ao seu surgimento. Desde o lançamento da política de reformas e de abertura, o desenvolvimento econômico cortou pela base os fundamentos sociais do culto da personalidade, tornando ao mesmo tempo mais urgente uma reforma do sistema político chinês. Sem isso, será impossivel promover a introdução da democracia na vida política da China e assim livrar-se do terreno institucional em que pode florescer o culto da personalidade.
Linha do tempo
Da independência ao Bando dos Quatro
1949 - Proclamação da República Popular da China.
1953 - Coletivização da terra, nacionalização acelerada da indústria e do comércio. Primórdios da economia planificada.
1957 - Em abril, Mao lança a campanha "Que Cem Flores Desabrochem", apelando ao debate de ideias, mas em junho o movimento contra os desvios de direita reprime os excessos críticos: entre 400 a 700 mil pessoas são enviadas para campos de trabalho forçado.
1958 - Mao lança o "Grande Salto à Frente". Aparecem as comunas populares. Os pequenos altos-fornos disseminados por todo o pais revelam-se uma tremenda fonte de desperdício e de poluição ambiental.
1959-1961 - Durante os três anos negros, a fome mata cerca de 30 milhões de pessoas.
1961 - Abrandamento da coletivização.
1962 - Mao recusa a reavaliação do "Grande Salto à Frente". O Pequeno Livro Vermelho começa a ser difundido no seio das Forças Armadas.
1966 - A 16 de maio é criado um Grupo da Revolução Cultural no gabinete político do PCC, cujos alvos passam a ser "os detentores do poder no seio do Partido que seguem uma via capitalista". A 25 de maio, na Universidade de Pequim, surgem cartazes criticando o reitor. Nasce um movimento de crítica aos responsáveis escolares em escala nacional por parte dos alunos que passam a ser conhecidos como Guardas Vermelhos, encorajados por Mao. Vítimas de maus-tratos físicos ou psicológicos, dezenas de milhares de intelectuais morrem ou cometem suicídio. Dezenas de milhares de professores e dirigentes são vítimas de perseguições. A 5 de agosto, Mao publica o texto "Fogo sobre o Quartel-General" que visa atingir o Presidente da República Liu Shao Shi, logo substituído por Lin Piao. Com o paroxismo do culto da personalidade, as rivalidades internas e o faccionismo grassam entre os Guardas Vermelhos.
1967 - Em janeiro, Mao ordena que as Forças Armadas intervenham. As organizações radicais são dissolvidas e volta a ser dado poder às elites conservadoras. Situação de guerra civil em algumas províncias. Em agosto, os militares são autorizados a usar a força e os Guardas Vermelhos são desmantelados, Em setembro, o pais em escala nacional é governado por comitês revolucionários enquadrados pelos militares. Em outubro, uma circular preconiza o envio para a província de jovens instruídos a fim de serem reeducados pelos camponeses. Nos dez anos seguintes, 17 milhões de jovens terão este destino.
1966 - Prossegue a repressão no Sul do país, verificando-se os piores massacres da Revolução Cultural em Guangxi.
1969 - Lin Piao é apontado como delfim de Mao.
1970 - No segundo plenário de Lushan, os comitês revolucionários voltam a ser controlados pelo PCC.
1971 - Morte de Lin Piao num acidente de avião na Mongólia entre rumores de atentado ou de traição.
1976 - Mao Tse-tung morre em setembro. Prisão da sua viúva, Chiang Qing e do Bando dos Quatro em outubro.
1977 - Deng Xiaoping chega ao poder.
1978 - Política de reformas.
1979 - Deng Xiaoping reprime a Primavera de Pequim, movimento jovem que pedia modernização e democracia.
1981 - 11o Congresso do PCC minimiza papel de Mao e imputa os excessos da Revolução Cultural ao Bando
dos Quatro e a Lin Piao.
(*) Cau Xishun é jornalista, colunista, escritor, membro do Pen Clube independente chinês.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247