Quarta idade. Chegou a revolução dos novos-velhos
A primeira geração dos novos-velhos está nas ruas e define, nos países desenvolvidos, um novo conceito de idoso. Nada de ficar mofando diante da televisão, de passar o tempo jogando baralho com os coetâneos, de preparar a mamadeira dos netos. Os novos-velhos viajam pelo mundo todo, lotam as universidades da terceira idade, lêem, estudam, se divertem, gostam de amor e sexo. E já constituem um importante segmento do mercado consumidor a chamar a atenção do marketing comercial em todas as áreas.
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Por: Luis Pellegrini
Meu amigo Lucca, em Roma, fez uma cara de desgosto. Sobre a sua mesa, diante de nossos olhos, os dois principais jornais da capital italiana comentavam na primeira página a notícia de mais dois homens idosos vitimados pelo Viagra. Um, com mais de setenta anos, morreu de infarto em plena atividade sexual, sob os efeitos desse novo remédio milagroso contra a impotência. O outro, na mesma faixa, teve um derrame cerebral. Parece que seu sangue, em vez de ficar retido apenas nos corpos cavernosos do falo, acabou paralisado também no interior da sua cabeça.
Lucca, como bom italiano, gesticulou e falou alto: “Mas o que eles queriam? Ter aos setenta o desempenho sexual dos vinte?” O tema deu, como se costuma dizer, pano para muitas mangas. Logo transcendeu os limites da sanha erótica de alguns vovôs para penetrar nas alturas de filosofias mais abrangentes. Edoardo, um outro amigo presente, de natureza mais ponderada, observou com sabedoria: “É preciso respeitar os ciclos naturais da vida”. Nello, um terceiro amigo à mesa, entrou na conversa e extrapolou: “E esses políticos decrépitos, agarrados ao poder como velhos lobos a seus ossos? Por que não se aposentam e vão passear, para abrir espaço aos mais jovens?”
Os ânimos esquentavam, pois na Itália tudo é motivo para debates acalorados. Lucca, então, lembrou que, na Índia, a sabedoria milenar considera a existência de três fases fundamentais na vida de um homem. A primeira é a “fase do guerreiro”, em que a pessoa, ainda jovem, deve lutar para se afirmar diante do mundo e diante de si mesma, deve conquistar sua própria identidade, deve, enfim, transformar-se em alguém. Esta é, exatamente, a fase de muito trabalho e esforço. Depois, chega-se à “fase da consolidação”, quando se assume a responsabilidade de estar no mundo e de dar a sua contribuição pessoal para o mundo. É a fase onde o homem se casa, têm filhos, torna-se chefe do seu pequeno clã e se sacrifica por ele. Por fim, quando os filhos já estão formados e independentes, quando os cabelos embranquecem e as rugas transformam os rostos, chega-se ao terceiro estágio: a “fase da solidão”.
O direito – e o dever – à libertação
“Mas, na Índia, solidão não significa necessariamente isolamento e melancolia. É, muito mais, sinônimo de libertação”, explicou Lucca. Depois de cumprir todas as suas obrigações sociais e familiares, o indivíduo conquista o direito - e o dever - à sua liberdade, à sua “solidão”. Pode, inclusive - e muitos o fazem - sair a caminhar pelo mundo, carregando apenas a roupa do corpo, e percorrer as estradas em peregrinação, a meditar sobre as coisas da vida e de si mesmo. Pode bater às portas e pedir um prato de comida. Se o dono da casa for espiritualizado e conhecedor das regras hinduístas que norteiam a existência individual e social, certamente não irá negar. Saberá que aquele pedinte não é um vagabundo aproveitador. É simplesmente alguém que, depois de muito dar, conquistou o direito de receber. É um homem solitário e livre, a preparar-se para a grande viagem final, aquela que não admite retorno.
Pensei muito nisso tudo após deixar meus amigos. Refleti sobre as enormes diferenças que existem entre aqueles valores orientais, amadurecidos ao longo de milênios, e os nossos valores ocidentais, quase sempre cruéis e injustos ao tratar daqueles que encaneceram e perderam a força dos músculos após uma existência de trabalho que, muitas vezes, não lhes poupou sequer os anos de infância e adolescência.
É justo chamar os aposentados de vagabundos? Não, certamente não. Embora deva-se reconhecer a eles todo o direito de vagabundear. Direito pelo qual já pagaram os devidos pedágios. Mas o nosso mundo burguês contemporâneo é feito de distorções e contradições. Aos velhos não se dá o direito ao descanso. Quanto aos jovens, particularmente os da classe média para cima - que não precisam batalhar para sobreviver -, eles podem fazer o que bem entendem. Inclusive passar os dias no maior dolce far niente, a dilapidar o próprio tempo, as energias e as mesadas dos papais em sessões intermináveis de música techno nas discotecas e bares, ou trancados em seus quartos. A juventude, em nosso mundo, foi santificada e colocada sobre um altar. Foi elevada ao estatuto de condição privilegiada, como se ser jovem, apenas por ser jovem, fosse algo de extremamente especial. Seduzidos pelo charme transitório da juventude, muitos adultos rejeitam o envelhecimento natural, e querem permanecer jovens a todo custo. E haja cirurgia plástica, implantes capilares, ginásticas e vitaminas especiais, hormônios, massagens e exercícios, numa parafernália infernal em busca da fonte artificial da juventude. Como se envelhecer fosse uma vergonha da qual é preciso, em desespero, fugir.
Quem paga essa conta?
Quem paga a conta desse equívoco, infelizmente, são os próprios jovens. O mundo e a vida não respeitam privilégios desse tipo, baseados em premissas e convicções falsas, e os resultados já estão aí: basta observar o clima geral de apático desinteresse por tudo e por todos que se manifesta em boa parte dos nossos jovens. O excessivo endeusamento à juventude roubou deles sua maior riqueza: a vontade de virar gente grande.
Essa patológica inversão de valores dá origem a um fenômeno muito curioso cada vez mais observado, principalmente nos países desenvolvidos. Na Europa rica surge uma raça hodierna de jovens apáticos que entristecem e envelhecem nas casas dos genitores. E há uma raça antiga de jovens de espírito, embora velha de anos, que vai dançar, pratica esportes, viaja, estuda, lê, navega em redes virtuais. Os primeiros tiveram tudo e não aprenderam a desejar; os segundos – nascidos nas décadas que sucederam a Segunda Grande Guerra e suas consequências - tiveram muito pouco e sabem o que querem: uma existência intensa e alegre mas, ao mesmo tempo, leve e serena. Uma existência saudável, feliz e divertida, dentro de parâmetros naturais totalmente possíveis ao ser idoso.
“Esta é a primeira geração dos novos-velhos”, comentava Arrigo Levi, um dos mais importantes jornalistas italianos. Levi publicou em seu país um divertido guia para a terceira e a quarta idades, intitulado A velhice pode esperar - ou seja, a arte de permanecer jovem, onde escreve: “É como o salto no vazio do adolescente que vai de encontro à juventude. A gente amadurece, a um certo ponto alça vôo em direção à velhice e, diante de si, encontra um mar infinito que se chama liberdade”.
Como são esses novos-velhos europeus da virada de milênio? São pessoas não mais atormentadas pelo trabalho, pela carreira, pelos filhos, que dispõem de muito tempo livre e descobrem que a segunda metade da vida pode ser uma maravilha. Como diz a pensadora feminista norte-americana Betty Friedan em Invenção da Idade - outro belo livro sobre o tema -, “Libertamo-nos dos preconceitos sobre a velhice, como o medo de não suportá-la, de ter de renunciar à sexualidade, de perder aquelas famosas células cerebrais. Para em seguida perceber que aquelas células perdidas não eram, enfim, as mais necessárias. E então fica-se mais lúcido, com a mente mais leve...”
No ano 2016, na Itália, França, Alemanha e outras nações desenvolvidas da Europa - países que produzem poucas crianças e onde quase não mais existe a família tradicional, mas que não se tornarão desertos humanos graças à imigração das demais populações do Mediterrâneo e do mundo -, já há um ancião para cada cinco habitantes. As pesquisas indicam que, até 2020, a porcentagem de pessoas que vão dos 65 aos 80 anos chegará aos 20% (No Brasil ela se aproxima agora dos 10%).
A invasão das “panteras grisalhas”
À parte os velhos inválidos, a maioria dos idosos vive uma terceira e uma quarta idades não apenas trinta anos mais longa do que no século precedente, mas sobretudo muito mais rica de estímulos. E, como não poderia deixar de ser, a indústria e o comércio deu-se conta disso. O turismo e o lazer, o ensino, as artes e espetáculos ganham rios de dinheiro com essas “panteras grisalhas” que invadem alegremente territórios até há pouco reservados aos jovens. Trata-se de uma geração nômade, que deixa a televisão, os filhos e netos em casa e põe-se a girar o mundo. Enrica Montanucci, diretora da Amecon, grande agência de turismo italiana especializada em pacotes para a América Latina, dizia recentemente: “Não, nada mais me espanta. Na Itália já atingimos o nível dos norte-americanos e dos ingleses. Aos nossos balcões chegam velhotes fantásticos, com tênis nos pés e mochila a tiracolo e que escolhem lugares que nem mesmo um jovem enfrentaria com tanta desenvoltura. Querem ir ao Peru, para passear naquele trenzinho a quatro mil metros de altura, querem visitar a Floresta Amazônica, o Pantanal de Mato Grosso”.
E o amor? Se o amor tem sempre vinte anos, um jovem de vinte anos nem de longe pode entender de quanto amor (e sexo) são capazes os seus avós. O sociólogo Pietro Valdina publicou há pouco um ensaio chamado O sexo dos idosos, onde faz revelações estatísticas surpreendentes. Por exemplo, que 60% das pessoas entre 70 e 74 anos vivem relações sexuais satisfatórias, da mesma forma que 40% dos que vão dos 75 aos 95 anos.
Depois do turismo, do sexo e do teatro, um outro capítulo fundamental e permanente para os idosos europeus é a instrução. Universidades da terceira idade são abertas em toda parte. A Universidade Popular de Roma, por exemplo, possui editora própria, 980 tipos diferentes de cursos, quase vinte mil alunos inscritos, um pelotão de 250 professores. A oferta de cursos vai das línguas e literatura à criminologia, da filosofia ao flamenco espanhol, à meditação, à redação de poemas, desenho, pintura e um sem número de artesanatos. “Os cursos estão abertos a pessoas de todas as idades, mas apenas 45% dos alunos pertencem à faixa dos anciões”, diz o diretor dessa Universidade, Francesco Florenzano, médico geriatra. “Os cursos nascem das exigências dos inscritos: os que têm acima de 60 anos perseguem quase sempre um sonho, que é o de estudar uma matéria que não puderam estudar em outros tempos, e os mais jovens aqui encontram cursos que as universidades convencionais não oferecem. O mais bonito é que nas salas de aula e nos corredores instaura-se uma troca muito viva entre gerações. Um intercâmbio frutífero que lá fora, em boa parte, se perdeu. E, com muita freqüência, torna-se difícil distinguir as idades: às vezes os mais jovens raciocinam como velhos, e aqueles de cabelos brancos se lançam às teses mais controvertidas”, continua Florenzano.
Novo segmento do mercado consumidor
Se na Europa proliferam os novos-velhos, criando inclusive um novo e importante segmento do mercado consumidor, numa outra potência moderna, os Estados Unidos, os cientistas batalham na descoberta de novos recursos para retardar ao máximo a velhice ou, pelo menos, neutralizar os seus efeitos. A revista New Scientist publicou um amplo serviço a respeito desses esforços, intitulado “Morte à Velhice!” Os jornalistas que fizeram essa investigação descrevem cientistas que querem ultrapassar os limites impostos pelo relógio biológico: “Até hoje o objetivo desses cientistas era eliminar os sofrimentos aos quais inevitavelmente o ser humano vai de encontro com o avançar dos anos. Seus esforços visavam encontrar um modo pelo qual um octogenário pudesse continuar a ter o corpo e a mente de um quarentão”. Mas eles agora querem ainda mais. “Em não mais de vinte anos seremos capazes de manipular a nosso bel prazer a duração da vida”, afirma o biólogo celular Woodring Wright, do Southwestern Medical Center de Dallas, Texas. Certamente uma perspectiva ao mesmo tempo animadora e aterradora...
Mas, enquanto não chegamos lá, melhor para os idosos seguir o exemplo dos colegas novos-velhos europeus. Aproveitar enquanto é tempo, e beber até a última gota do vinho da vida. Até porque, quando se chega à quarta idade, todos os pedágios já foram pagos, e a estrada a ser percorrida ainda pode ser longa, larga e bela.
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