Pais que tudo querem, nada terão. Eles podem condenar os filhos a uma existência desesperada e infeliz
Venda a sua liberdade, suprima a luz do dia, viva para trabalhar, e você também poderá fazer parte de uma elite intoxicada e paranoide.
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Por: George Monbiot (jornalista, escritor e ambientalista)
Fonte: The Guardian, Londres
Talvez porque a alternativa seja demasiado horrível de ser encarada, nos convencemos de que aqueles que detêm o poder sabem o que estão fazendo. A crença numa inteligência superior que nos orienta e guia é muito difícil de ser contestada. Sabemos perfeitamente que as condições de vida se deterioram a cada dia. Hoje, a maioria dos jovens tem pouca perspectiva de vir a possuir uma casa própria, ou até mesmo de alugar uma moradia decente. Empregos interessantes são espatifados e fragmentados através de um taylorismo (*) digital que torna cada fragmento uma atividade repetitiva, tediosa e cansativa.
O mundo natural, cujas maravilhas melhoram nossas vidas, e do qual depende a nossa sobrevivência, está sendo dilapidado a uma terrível velocidade. Aqueles a quem apelamos, no governo e na elite econômica, não detém esse declínio; eles o aceleram. O sistema político-social que dá origem a tudo isso é sustentado por uma aspiração principal: a fé, quase sempre cega, de que se nos esforçarmos o bastante acabaremos nos integrando à elite, até mesmo quando os padrões de vida declinam e a imobilidade social a cada dia mais se petrifica. Mas a que estamos aspirando? A uma vida melhor do que a que temos, ou pior?
Os Dez Mandamentos do Poder
Há pouco, uma nota de um analista do grupo Barclay's Global Power and Utilities, de Nova York, vazou. A mensagem era dirigida a estudantes que começavam um curso intensivo de verão, e ela oferece uma visão da cultura tóxica para a qual eles estavam sendo induzidos.
“Quero apresentar a vocês os Dez Mandamentos do Poder... Durante nove semanas vocês irão viver e morrer por eles... Esperamos que você seja um dos últimos a ir embora a cada noite, não importa o que... Recomendo que você traga um travesseiro para a sala de aula pois ele fará com que dormir debaixo da sua mesa de trabalho seja muito mais confortável... Este curso intensivo significa realmente assumir um compromisso com sua mesa de trabalho... um dos alunos pediu à organização para ser liberado durante um fim de semana para participar de uma reunião familiar – a resposta foi que ele poderia ir, desde que amarrasse o seu telefone celular no pulso e a sua mesa de trabalho às costas... Acabou o tempo de brincadeiras e agora é hora de apertar o cinto de segurança”.
Acabou o tempo de brincadeiras... Mas será que para os jovens que faziam o curso esse tempo algum dia começou? Se esses alunos têm o tipo de pais descrito em artigo publicado há poucas semanas no jornal Financial Times, certamente não. O artigo falava de um novo ofício que entra na moda: o “consultor de berçário” (nursery consultant). Pais entregam seus filhos a esses profissionais que prometem – cobrando R$ 1.400,00 a hora – treinar os pequenos e inseri-los no caminho certo para que, um dia, façam parte de uma elite universitária.
Espanhol e chinês mandarim aos dois anos
Enquanto isso, no Reino Unido, no campo da Saúde Mental, a demanda de leitos para crianças aumentou 50 % nos últimos tempos. Mesmo assim, o país ainda não conseguiu atender os pedidos de socorro de muitos pais que, quando os filhos tinham seis meses de idade, já tinham decidido que eles iriam para a Universidade de Cambridge e, em seguida, entrariam para o Deutsche Bank. Nem para aqueles pais cuja filha de dois anos “tinha um tutor com quem passava duas tardes por semana para melhor desenvolver o aprendizado da matemática superior e a alfabetização, bem como, nas demais tardes, praticar exercícios de leitura, de correta pronúncia dos fonemas, mais aulas de dramatização, de piano, de francês para iniciantes, sem falar na natação e no balé”. Os pais estavam considerando adicionar também aulas de espanhol e chinês mandarim quando a garota surtou. “A menina estava tão esgotada e amedrontada que, quando chegou na clínica, não conseguia abrir a boca”.
O problema não é apenas britânico. Em Nova York, treinadores-animadores cobram 450 dólares (cerca de R$ 1.500,00) a hora para treinar crianças pequenas em habilidades sociais que “podem ajudá-las na admissão às mais prestigiosas escolas privadas”. Entre outras coisas, essas crianças aprendem a esconder traços que poderiam sugerir que elas estão dentro do espectro do autismo, o que reduziria as suas chances de seleção.
Da infância até a idade de procurar emprego, no jovem é incutido um condicionamento de negação da vida e do amor. Sem se preocupar com a alegria e a felicidade, no cerne dessa mentalidade pontifica uma ambição que é ao mesmo tempo desesperada e inútil. Tudo que essa ambição poderá proporcionar não compensará o seu custo: a perda da infância, da vida em família, das alegrias do verão, do trabalho detentor de significado, da sensação de se chegar a alguma coisa ou lugar, de realmente viver o momento existencial.
Separação dos alunos
Para a salvaguarda da atual cultura tóxica, a economia é redefinida, o contrato social é reescrito, a elite é liberada dos impostos e dos regulamentos, e de todas as outras restrições impostas pela democracia. Para onde a elite vai, somos induzidos a segui-la. Como, segundo se informou, o regime de avaliação dos alunos nas escolas primárias no Reino Unido era demasiado permissivo, no ano passado a Secretaria de Educação anunciou um novo teste para alunos de quatro anos de idade. Uma escola primária em Cambridge logo adotou a novidade: separação dos alunos em diferentes classes desde os quatro anos de acordo com as tendências, habilidades e capacidades neles detectadas. Logo depois, um discurso da Rainha apertou ainda mais o parafuso anunciando cortes no orçamento para a educação. Essas novas medidas irão ajudar as crianças, ou irão prejudicá-las? Quem sabe responder a essa pergunta?
O governo costumava publicar dados estatísticos sobre a saúde mental das crianças a cada cinco anos. Isso era regra até o ano de 2004, quando a prática foi encerrada. Sabe-se, no entanto, que na Inglaterra a oferta de vagas para tratamento de doenças mentais em crianças aumentou 50% entre 1999 e 2014, mas esse incremento do número de vagas ainda se mostra insuficiente para atender a demanda.
Crianças que sofrem crises de saúde mental estão sendo despejadas nas enfermarias para adultos e até mesmo em celas da polícia por falta de vagas em instituições terapêuticas adequadas. O número de crianças vítimas de autoagressão internadas em hospitais aumentou 68% em dez anos, enquanto o número de pacientes jovens que apresentam transtornos alimentares praticamente duplicou em três anos. Não dispomos de dados estatísticos realmente confiáveis, e portanto fica muito difícil chegar-se a uma conclusão clara a respeito das causas desses problemas. Mas vale a pena notar que, no ano passado, de acordo com a organização beneficente YoungMinds, o número de crianças que receberam aconselhamento para tratamento de síndromes de estresse triplicou.
Contra os interesses comuns da humanidade
Em nome do avanço e da autopromoção somos exortados a sacrificar o nosso lazer, nossos prazeres e o tempo que dedicamos aos nossos parceiros, filhos e amigos. Somos condicionados a passar por cima dos corpos dos nossos rivais e a nos definirmos contra os interesses comuns da humanidade. E então? Nós descobrimos que a satisfação que obtemos é igual ou menor daquela que tínhamos ao iniciarmos esse processo.
In 1653, Izaak Walton descreveu em "The Compleat Angler" o destino dos “pobres homens-ricos”, que “gastam todo o seu tempo primeiro para obter riqueza, e depois na ansiedade de conservá-la; homens condenados a serem ricos e, pela riqueza, a serem sempre ocupados e descontentes”. Hoje, confunde-se esse destino com salvação.
Leve trabalho para casa, passe em todos os seus exames, gaste os seus vinte anos longe da luz solar, e você também poderá viver como vive a elite. Mas as vagas para crianças com problemas mentais aumentaram em 50%, e ainda não são suficientes para atender a demanda.
(*) O taylorismo é uma concepção de produção, baseada em um método científico de organização do trabalho, desenvolvida pelo engenheiro americano Frederick W. Taylor (1856-1915). Em 1911, Taylor publicou “Os princípios da administração”, obra na qual expôs seu método. A partir dessa concepção, o taylorismo, o trabalho industrial foi fragmentado, pois cada trabalhador passou a exercer uma atividade específica especializada no sistema industrial. A organização foi hierarquizada e sistematizada, e o tempo de produção passou a ser cronometrado. O método também é chamado de “racionalização do trabalho”.
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