O Tao da gastronomia. A comida é o novo sexo, a nova droga, a nova religião

Livros de culinária e gastronomia dominam as listas dos mais vendidos em quase todo o mundo, bem como a programação televisiva. Transformados em celebridades, os grandes cozinheiros, agora apelidados de chefs tornaram-se gurus de estilo de vida. A culinária tornou-se uma arte maior? Ou será uma das formas que, na atualidade, o ser humano encontrou para dar uma razão à própria existência?



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Por: Luis Pellegrini 

Até o começo da década de 1970, quando vivi os meus anos doidos de juventude, o barato era o álcool, e ele chegava na forma de drinques de nomes curiosos, cuba-libre (rum, coca-cola e gelo), hi-fi (vodca, refrigerante de laranja e gelo), bloody-mary (vodca, suco de tomate, limão, sal e gelo), para não falar das tradicionais e atemporais caipirinhas, as batidas de frutas e os rabos-de-galo (conhaque com cachaça). Fora isso, o máximo a que se chegava eram algumas cheiradas de lança-perfume, à base de éter, mas apenas durante o carnaval. Depois, pouco a pouco, chegaram as drogas médicas (Dexamil, Perventin, Mandrix e as várias anfetaminas), as drogas psicodélicas (LSD, cogumelos alucinógenos, mescalina, ayuasca), os fumos recreativos (maconha, hashish, marijuana) e os entorpecentes propriamente ditos (cocaína, heroína, até chegar ao flagelo chamado crack).

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Hoje, em plena era do politicamente correto, parece que chegamos a um novo e ao mesmo tempo antiquíssimo tipo de barato: a comida. Como diz o jornalista inglês Steven Pole, a comida é o novo sexo, a nova droga, a nova religião.

Alex James, baixista dos Blur, que se tornou fazendeiro e produtor de queijos, e que agora virou colunista de gastronomia do jornal The Sun, confessou publicamente: “A festa dos meus 20 anos foi à base de álcool, a dos 30 à base de drogas, e agora percebo que, aos 40, estou muito mais voltado para a comida. ”Ele não é o único. À medida que os cabelos embranquecem, a comida substitui as drogas no panteão hedonista dos gastrônomos que desejam envelhecer com suavidade. Ela traz consigo as marcas de um outro vocabulário. Ouvimos agora falar de um prato ou molho que “bate”, como se se tratasse de um baseado de maconha ou um tiro de cocaína.

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E surgem os modernos templos da comida: restaurantes caríssimos, de Chicago a Copenhague, de Tóquio a São Paulo, são objeto de perfis hagiográficos em revistas e jornais sérios.

Festivais de comida começam a tomar o espaço dos festivais de rock, apresentando emocionantes performances ao vivo e em cores e sabores de… arte culinária.

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Culinária e metafísica

Se você não conseguir assistir a sessões de culinária na televisão ou ao vivo, pode, pelo menos, ler notícias sobre o assunto. Grandes fatias da internet foram abocanhadas por blogs de comida. Seus donos postam fotografias do que comeram no botequim de um beco escuso ou num restaurante com aspirações grandiosas.

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Hoje, cinco de cada dez livros mais vendidos na amazon.co.uk são de culinária, com Nigellissima (livro de receitas da chef inglesa Nigella Lawson) batendo todos os recordes. Esse best-seller de receitas ultrapassou em vendas o livro As Cinquenta Sombras de Grey (que por sua vez, na Grã- Bretanha, ultrapassara as vendas de Harry Potter!) Segundo os dados mais recentes da Bookscan (empresa tipo Ibope para estudar os números do mercado de livros na Inglaterra) as vendas britânicas de livros caíram em quase todos os segmentos e gêneros literários, exceto na categoria de “comida e bebida” (subiu 26.2% ) e na de religião (subiu 13%). Antes de 1990, a categoria bibliográfica “comida e bebida” nem sequer constava.

Que só a alimentação e a religião tenham superado a tendência baixo astral que hoje permeia a maior parte das atividades e das áreas do conhecimento humano não é nenhuma coincidência: as atividades ligadas à culinária e à gastronomia chegaram para responder às aspirações metafísicas das pessoas, às suas preocupações com questões de “estilo de vida”. Os chefs famosos são os gurus dessa nova era.

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Mas será mesmo possível pensar filosoficamente sobre comida? A resposta é sim, como sobre qualquer outro assunto. Por sinal, isso não é de hoje, mas vem de muito longe. Na Índia, por exemplo – uma cultura que pelo menos em termos de antiguidade dá de dez a zero na nossa – existe, há milênios, uma inteira escola de crescimento espiritual baseada no preparo e no consumo da comida. Essa escola se chama Anna Ioga, a ioga da alimentação, e é um caminho de realização do Self (o eu impessoal) tão importante e, pelo que se diz, tão eficaz quanto as demais iogas, hatha, raja, karma, bakhti, tantra, etc.

A pergunta é: Está acontecendo algo de certo modo semelhante na gastrocultura contemporânea? Ou o atual endeusamento da gastronomia está mais para psicose gastronômica?

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Arte culinária ou psicose gastronômica

Onde tudo isso irá parar? Não seria melhor preocuparmo-nos mais com o que colocamos nas nossas cacholas do que nas nossas bocas? Muitos começam a ver nesse anseio desmesurado por comida e por degustação um sucedâneo do anseio de preenchimento de um vazio espiritual característico da nossa civilização. Comida, além de estar diretamente conectada ao instinto primordial de preservação da vida, tem a ver com “espiritualidade” e com “expressão de identidade”, defende o moderno cavaleiro culinário Michael Pollan. Ele é o autor do elogiado “The Omnivore’s Dilemma” (O Dilema do Onívoro), uma espécie de catecismo da gastronomia moderna, onde se fala sem rodeios em comer com “plena consciência” e se afirma sem o menor rubor de vergonha que cada refeição tem o seu “preço cármico”; termina com a declaração de que “o que estamos comendo é parte do corpo do mundo”. E assim, seguindo essa lógica, degustar um virado à paulista ou um vatapá baiano torna-se uma união sublime do eu com o planeta, uma eucaristia da Terra Mãe.

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Não à toa muitos livros de gastronomia se autoproclamam “bíblias”, dos molhos, dos assados, dos legumes, das maioneses, das sopas e por aí a fora.

A igreja primitiva definia a gula como pecado, mas hoje se supõe que comer possa nutrir também o espírito…

Nem só de pão vive o homem

Gula, no entendimento original, não era comer demasiado; era viver demasiadamente interessado por comida, independentemente da sua real ingestão. A gula, como dizia o teólogo Tomás de Aquino, pode ser cometida de várias maneiras diferentes, entre as quais procurar cada vez mais “pratos suntuosos” ou querer alimentos “mais meticulosamente preparados”. Nessa linha de raciocínio, os gastrônomos modernos seriam certamente condenados como glutões pecaminosos…

Mas, se a comida é espiritual, os chefs célebres tornaram-se nossos sacerdotes ou gurus, canais para se alcançar o inefável, o nirvana através do paladar.

Perdemos a confiança nos políticos e no clero; mas estamos sequiosos pelo que os cozinheiros têm para nos dizer, não apenas sobre a forma de comer, mas sobre como viver.

Dietas, sucedâneas de ordens religiosas

E as dietas? Se agora aceitamos alegremente que a alimentação seja uma razão de vida e do viver, podemos também entender as dietas e as inúmeras escolas de alimentação como sucedâneas de ordens religiosas: Existe uma para cada gosto e para cada necessidade.

Não foi assim na Índia, onde cada um podia escolher a ioga da sua preferencia, os que gostavam da ação física iam para a hatha ioga, os meditativos para a raja, os intelectuais para a jnana, os sociais para a karma ioga, os eróticos para a tantra, etc? Ou, mais perto de nós, os católicos que desejavam se dedicar a uma existência religiosa também tinham várias opções, cada uma delas mais ou menos adequada ao caráter, tendências, personalidade do interessado. Os de temperamento militar viravam jesuítas, os de vocação eremita se trancavam nos mosteiros beneditinos ou carmelitas, os estudiosos vestiam o hábito dos dominicanos, os amantes da vida simples seriam franciscanos, etc.

O mesmo acontece hoje com as N opções de dietas disponíveis. Os neo-bichos-grilos radicalizaram e passaram do vegetarianismo para o veganismo, com rejeição total de qualquer alimento de origem animal; os planejadores, pessoas metódicas que tem hora e lugar certo para tudo e não gostam de mudanças, costumam escolher a dieta dos pontos; os sentimentais, que encaram a comida como forma de conforto (o chamado comer emocional) são perfeitos para entrar nos programas tipo o dos Vigilantes do Peso, baseado num jogo de sacrifícios e recompensas; o intelectual, aquele ser que dificilmente muda de opinião e em relação à comida faz cálculos para ver quantas calorias tem cada alimento antes de comê-lo e quantas horas na esteira vai precisar para queimá-lo, esse se dará bem com qualquer dieta, desde que indicada por um médico especialista que o faça entender a lógica do sistema que está indicando. E por aí vai.

Pois, na verdade, em matéria de comida, não existe uma dieta que sirva para todos. “Se isso funcionasse, não existiriam tantas dietas da moda”, afirma o endocrinologista Filippo Pedrinola, que completa o seu parecer de bom senso dizendo: “Regime que funciona é aquele que respeita a individualidade de cada um e é a personalidade que vai determinar o comportamento das pessoas em relação a hábitos alimentares e estilo de vida”. 

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