O novo terrorismo. Ele é sobretudo político, e não religioso
Os atentados de Paris representam a emergência de um novo tipo de terrorismo, não contra grandes alvos simbólicos como os da Al-Qaeda, mas levado a cabo por indivíduos isolados ou por pequenos grupos de fanáticos dispostos a matar e a morrer. Combatê-los não pode passar por leis de exceção nem por esquadrões da morte. Porque se abdicarmos do estado de direito e das liberdades fundamentais estaremos dando aos assassinos o que eles querem.
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Por: José Ignácio Torreblanca. Fonte: Jornal El País, Madri
O atentado contra o jornal Charlie Hebdo em Paris obrigou a Europa a se confrontar com o terrorismo dentro de casa, e obriga-nos a refletir sobre as suas origens.
Uma vez que se trata de política e não de religião, não podemos cair no erro de alimentar ódios, quando o que é preciso é construir pontes.
Cada vez que ocorre um atentado de inspiração jihadista reaparece o coro de vozes que pretendem responsabilizar a religião muçulmana e os seus praticantes pelos crimes cometidos em seu nome. Em primeiro lugar, atribui-se à religião uma natureza violenta e sectária que a torna
incompatível com qualquer outro modo de vida, regimes democráticos, direitos e liberdades individuais. Em segundo lugar, os crentes islâmicos são responsabilizados pela cumplicidade do seu silêncio, pela incapacidade de criticar os seus líderes religiosos, pela resistência à modernização dos hábitos culturais, e pela constante vitimização, o que leva demasiadas vezes a que exijam que se limitem direitos, ou que surjam micro-espaços nas sociedades ocidentais onde estes não se apliquem.
Choque de civilizações
Mas este raciocínio, que no extremo nos leva a admitir a existência de um choque de civilizações entre o Ocidente e o Islão, naufraga contra a evidência de que, para cada cidadão ocidental assassinado por esses jihadistas, morrem milhares de muçulmanos. Desde a guerra civil na Argélia, onde morreram entre 150 mil a 200 mil pessoas nos anos 90, até ao conflito no Iraque, onde o número de vítimas após a invasão de 2003 é semelhante. Ou ainda na Síria, na Líbia, na Tunísia, no Egito.
Para cada cidadão ocidental assassinado por jihadistas, morrem milhares de muçulmanos. Desde a guerra civil na Argélia até ao conflito no Iraque e em outros lugares. Torna-se claro que o conflito dominante não é entre o Islão e o Ocidente, mas dentro do próprio mundo islâmico. Esse mundo é vítima de fraturas sobrepostas de caráter étnico, geopolítico ou econômico, de choques entre sunitas e xiitas, curdos e turcos, autoritários e democráticos, laicos e religiosos, ricos e pobres.
Não à renúncia dos nossos direitos
Ignorar a profundidade e severidade dessas fraturas é não ver os problemas dessas sociedades. Significa, também, não querermos reconhecer a contribuição que demos à sua criação desde os tempos do colonialismo. A tentação recorrente que surge nestas ocasiões é declarar que o terrorismo é simplesmente uma barbárie niilista sem sentido. Não, o terrorismo – o de Paris ou outro qualquer - é politico e procura concretizar um domínio politico. Portanto, para podermos neutralizá-lo de forma eficaz, devemos entendê-lo em toda a sua complexidade.
Tudo isto não é um apelo a renunciar a nada, nem a relativizar nada. Como não podia deixar de ser, o brutal massacre de Paris obriga-nos a reafirmar os nossos valores e princípios e a não aceitar uma única renúncia que seja na esfera dos nossos direitos. E que fique claro que isso se aplica a sátiras ou irreverências que se pratiquem contra os nossos símbolos, instituições, sejam estes políticos ou religiosos.
Que um humorista armado com um lápis possa ser considerado por um fanático uma ameaça existencial pior que a representada por um soldado prova quão longe se chegou e quantos anos-luz nos separam dessa gente. É precisamente por isso que não podemos cair no erro de construir trincheiras e ódios, quando aquilo que é preciso são pontes e políticas eficazes.
O CRIME NÃO ESQUECE
As redes criminosas, dos cartéis de droga ao terrorismo, são globais e só podem ser combatidas de uma forma integrada, defende o ex-juiz espanhol Baltazar Garzón.
Por: Baltazar Garzón e Dolores Delgado. Fonte: Jornal El País, Madri (*)
Procurar a causa do atentado de 7 de janeiro em Paris numa mera vingança é simplismo. Do que não há dúvida é que se trata de um atentado à liberdade de expressão.
Em 2006, o Charlie Hebdo publicou caricaturas, não de Maomé mas de fundamentalistas que agiam em seu nome. As reações da época são insuficientes para as considerarmos a única causa do que agora aconteceu. Não nos deixemos levar por análises descontextualizadas. Os jihadistas recorrerão a todos os meios violentos para obter publicidade e poder, como via para imporem um universo supostamente islâmico, mas sobretudo redutor.
Deixamos fugir muitas oportunidades para atacar as causas profundas deste terrorismo. As primaveras árabes tiveram uma origem e um objetivo. Os atores eram variados (laicos, democratas, radicais,
terroristas, poderosos ou interessados) e não soubemos apoiar aqueles que teriam preenchido o espaço que acabou por ser ocupado pelo terrorismo. As zonas de conflito tornaram-se um destino desejado pelos futuros combatentes. Longe de promovermos localmente o desenvolvi-mento social, cultural e humano, demos prioridade às respostas militares.
Um novo desafio se apresenta na internet, nas redes sociais ou nos aplicativos para telefones celulares. Há um novo terrorismo que se aproveita das novas tecnologias para ganhar dimensão global e chegar a todos à velocidade que a web permite. Difunde ideias e propicia a sua captação sem restrições, porque por detrás da web há um exército invisível de homens e mulheres dispostos a sair do mundo virtual para passar à ação. A resposta ao uso dessa nova ferramenta deve ser multidisciplinar. Segurança policial, judicial e, claro, educação.
Absurdo da barbárie
Em Paris vimos consumado o absurdo da barbárie; o terror não esquece e é covarde perante quem dissemina ideias diferentes ou lhe faz frente. Por isso, a firmeza democrática perante ele deve ser total.
Será a Espanha um dos alvos do terror jihadista? Qualquer resposta meramente local seria um grave erro. A globalidade deste terrorismo e o uso de ferramentas globais visam fins globais, concretizadas em múltiplas ações locais. Por isso, as vítimas do atentado de Paris somos todos nós. O contrário levar-nos-ia a ignorar o que dissemos em 20 de dezembro de 2009 num artigo no El País, “Terrorismo de ida y
Vuelta”: “Este tipo de terrorismo é de ida e volta. Ao ser global, o teatro das operações é muito maior e por isso devemos percebê-lo como um crime universal, qualquer que seja o lugar onde for cometido ou a nacionalidade das vitimas”.
Memória curta
Os seres humanos têm a memória curta e rapidamente perdem a perspectiva do que lhes acontece. O terrorismo global tanto pode atacar num sítio como noutro e só nos surpreende quando nos afeta. Espalha- se como o crime transnacional organizado e é difícil de “descobrir e combater se não se assumir que as inter-relações desses grupos terroristas não são aleatórias, mas respondem a uma lógica de terror cujo fim é a consecução de objetivos tão globais como aparentemente inatingíveis, o que favorece a indiferença e a incredulidade ou mesmo o ceticismo dos cidadãos e das instituições, e a convicção de que não existe risco algum, contribuindo involuntariamente para lhes garantir impunidade na primeira e mais importante fase de formação”.
Hoje sabemos que o Isis (“Estado Islâmico”) existe e estendeu as suas redes ao Norte da África e ao Sahel. Que fez alianças com outras organizações, ou seja, que está se instituindo como rede criminosa estável, cujos militantes tanto podem atuar no Iraque ou na Síria como em Paris ou Roma. Os motivos serão meras desculpas sempre que haja vítimas, hoje jornalistas, amanhã policiais ou cidadãos cujo assassínio promova essa loucura. São redes que se aproveitam da web, mas que não renunciam aos métodos sangrentos, porque desde o início (o momento da doutrinação), os ideólogos ou emires têm prevista a atuação do grupo, aproveitando as contradições da nossa sociedade e o medo que nela existe de assumir a realidade do problema, o que às vezes se traduz em opiniões publicadas, tão banais como imprudentes e perigosas, porque serão aproveitadas para nos atingir como, quando e onde lhes interessar.
É necessário que no Estado de direito se faça uma reflexão profunda e se exija a cooperação entre os países que trabalham em prol da segurança internacional. Mecanismos judiciais de assistência mútua, como o Grupo Quadripartido, formado pelos ministérios públicos especializados na luta contra o terrorismo no Marrocos, França, Bélgica e Espanha, são indispensáveis na resposta ao terrorismo global.
(*) Baltasar Garzón é advogado e presidente da FIBGAR, Fundação Internacional Baltasar Garzón pro Direitos Humanos e Jurisdição Universal. Dolores Delgado é delegada antiterrorismo do Ministério público Espanhol.
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