O guerreiro altruísta: Quando o indivíduo se sacrifica pela coletividade
A ciência mostra como os sentimentos altruístas podem ter entrado para o nosso patrimônio genético a partir de milhares de anos de conflitos tribais.
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Por: Eduardo Araia
Filho de pai do planeta Vulcano e de mãe terrestre, o orelhudo sr. Spock da telecinessérie Jornada nas Estrelas marca sua presença em cena por um inseparável apego à lógica, característica dos conterrâneos paternos. Mas, vez por outra, os sentimentos tipicamente humanos do lado materno vencem a couraça vulcana, para deleite dos espectadores. Uma dessas ocasiões, no final do segundo filme, A ira de Khan, não poderia deixar mais evidente a condição humana de Spock: ele se sacrifica para salvar todos os ocupantes da nave Enterprise.
Dar a vida pela sobrevivência do grupo
O altruísmo manifestado por Spock e tantos outros heróis que, por livre-arbítrio, dão a vida pela sobrevivência do grupo sempre foi motivo de discussão entre os biólogos evolucionistas e outros homens de ciência. Essa característica estaria definitivamente incorporada aos nossos genes por obra da evolução defendida por Charles Darwin? O assunto tem sido estudado por décadas, e a conclusão inicial era a de que os atos de sacrifício pessoal supremo não podiam ser explicados pela seleção natural – exceto aqueles relacionados à perspectiva de ajudar na sobrevivência de parentes próximos, cujos genes são similares aos das pessoas favorecidas.
Mas o próprio Darwin já havia sugerido uma interpretação diferente para o tema em seu livro The descent of man ("A descendência do homem"), de 1871. As frequentes lutas entre as tribos pré-históricas poderiam ter contribuído para fixar esse aspecto em nosso patrimônio genético. A ideia, retomada e ampliada nos últimos anos pelo professor de economia Samuel Bowles, do Instituto Santa Fé, no Novo México (Estados Unidos), tem agitado o meio científico. Para Bowles, o altruísmo pode ter evoluído diretamente em consequência de guerras tribais nas quais sacrifícios individuais foram um elemento crucial para os membros de um grupo derrotarem seus oponentes.
De caçadores a agricultores
"Biólogos e economistas duvidaram que uma predisposição genética para comportar-se altruisticamente – ajudar outros à custa da própria vida – poderia evoluir, excetuando-se o auxílio estendido a familiares geneticamente próximos", observa o pesquisador. A teoria que desenvolveu vai de encontro a isso, ao propor que a seleção natural trabalhou sobre grupos de pessoas que cooperavam juntas, em vez de indivíduos considerados isoladamente.
Segundo Bowles, na maior parte dos cerca de 200 mil anos da história humana, nossos antepassados integravam tribos de caçadores-coletores – a agricultura, que mudou definitivamente esse panorama, surgiu há menos de 10 mil anos. O cotidiano desse longo período, observa ele, implicava um estado beligerante praticamente contínuo entre as tribos. "A guerra era suficientemente comum e mortal entre nossos ancestrais para favorecer a evolução do que eu chamo de altruísmo paroquial, uma predisposição para ser cooperativo em relação a membros do mesmo grupo e hostil para com gente de fora dele", afirma.
Em linhas gerais, a ideia desagradou à maioria dos biólogos porque, de acordo com eles, esses grupos não tinham diferenças genéticas suficientes para favorecer a seleção de grupo (forma de seleção natural que supõe que há sobrevivência diferencial entre grupos distintos de organismos, graças às características presentes em cada um dos grupos). A observação na natureza e experiências (algumas das quais realizadas por Bowles e sua equipe) mostraram, porém, que o altruísmo é bastante comum entre humanos – bem mais do que nas outras espécies animais, por sinal. Com isso, o pesquisador aprofundou-se mais no tema.
O partilhamento dos alimentos
Em um artigo publicado em 2006 na revista Science, Bowles propôs um modelo matemático desse processo e revelou que as diferenças genéticas entre os caçadores-coletores pré-históricos e os modernos eram muito maiores do que se pensava antes – um endosso à hipótese de que a seleção de grupo poderia ter sido uma poderosa força evolutiva. Ela encontra apoio também, por exemplo, nas práticas igualitárias entre ancestrais humanos (o partilhamento de alimentos, por exemplo), que reduziram a força da seleção individual contra os altruístas, e no fato de que as frequentes guerras fizeram da cooperação altruísta entre os membros do grupo algo essencial para sua sobrevivência.
Quando utiliza a palavra "guerra" no contexto daquela época, Bowles sublinha que não se refere a conflitos em grande escala. "Estamos falando sobre grupos de homens que saíam em duplas, trios ou quintetos", diz. "Eles não tinham uma cadeia de comando e é difícil ver como eles poderiam forçar outras pessoas a lutar." É por isso que a intenção altruísta da parte desses homens era crucial, ressalta o pesquisador. Cada um deles poderia perfeitamente ficar em casa, em vez de arriscar sua pele brigando com tribos rivais – mas, mesmo assim, eles encaravam o desafio.
Em um estudo sobre o tema publicado em 2009 na Science, Bowles decidiu investigar o que teria acontecido a uma tribo de indivíduos altruístas levados a combater outras tribos, mais egoístas. Ele reuniu e analisou evidências arqueológicas de sítios da Idade da Pedra e estudos etnográficos de tribos de caçadores-coletores modernas. Segundo suas conclusões, os conflitos entre grupos foram responsáveis por cerca de 14% de todas as mortes registradas em sociedades de caçadores-coletores primitivas.
No final, o altruísmo prevaleceu
Em seguida, ele estimou a taxa segundo a qual o altruísmo reduziria as chances de um indivíduo reproduzir-se. Depois, aplicou os números obtidos em um modelo de competição intergrupal em que o altruísmo de uma pessoa ampliaria as chances de um grupo de vencer os combates. Resultado: os grupos com indivíduos não egoístas foram os predominantes e, dentro deles, o altruísmo prevaleceu.
Bowles detectou duas condições – um estado beligerante suficientemente intenso entre tribos rivais e diferenças genéticas suficientes dentro desses grupos humanos – que, se satisfeitas, permitiriam ao altruísmo evoluir por meio dos mecanismos propostos por Darwin. Em seu estudo, ele mostrou que isso teria ocorrido mesmo: as diferenças genéticas observadas no seio desses grupos eram de fato maiores do que o que se pensava anteriormente e os conflitos eram rotineiros a ponto de moldar o comportamento social naquela época. A consequência disso, ele conclui, era a ocorrência de atos altruístas de sacrifício pessoal que ajudavam um grupo a sobreviver diante de outro. Ou seja: a situação cotidiana de guerra ajudou esses ancestrais a reduzir seu grau de egoísmo, incutindo-lhes noções de altruísmo que colaboraram na preservação dos grupos.
O pesquisador alerta que essa teoria do "guerreiro altruísta" é apenas um cenário capaz de explicar como o altruísmo evoluiu nas sociedades primitivas. "A disposição para assumir riscos mortais como um combatente não é a única forma de altruísmo (...) grupos mais altruístas e, portanto, mais cooperativos podem ser mais produtivos e sustentar membros mais fortes, saudáveis ou mais numerosos, por exemplo, ou fazer um uso mais efetivo da informação", ressaltou.
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