Neurossexismo: O cérebro é feminino ou masculino?
A neurocientista australiana Cordelia Fine mostra que muitos estudos a respeito das diferenças dos cérebros de homens e mulheres podem ter sido mal interpretados para justificar um condicionamento sociocultural muito antigo
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Por: Maíra Lee Chao – Fonte revista Planeta
Para muitas pessoas, homens e mulheres são diferentes, e não só fisicamente. Estudos recentes, popularizados por incontáveis livros, jornais e revistas, difundiram a imagem de que elas são, por características cerebrais, mais sensíveis e empáticas, enquanto eles, mais racionais, exibem superioridade nas ciências exatas. A neurocientista australiana Cordelia Fine, no entanto, critica o uso da ciência para justificar essa visão. De acordo com ela, esses estudos que comprovam a diferença de gênero contêm falhas metodológicas e interpretações equivocadas que a levaram a criar um neologismo: "neurossexismo", ou o conjunto de situações em que a neurociência é (mal) utilizada para justificar estereótipos de gênero.
Cordelia publicou o livro Delusions of Gender: The Real Science Behind Sex Differences (Ilusões de Gênero – A Verdadeira Ciência por Trás da Diferença Sexual, em tradução livre), no qual faz um alerta sobre como a neurociência pode se transformar em "neuro-sem-sentido" quando não possui rigor metodológico ou é mal interpretada. "Uso o termo neurossexismo para me referir a situações em que as pessoas superinterpretam, interpretam mal ou até constroem a neurociência como forma de disfarçar os estereótipos de gênero", afirma.
Homens e mulheres não são assim tão diferentes
Cordelia Fine explica no livro que "queria tornar a ciência real sobre a diferença de gênero acessível e mostrar que é muito mais complicada e interessante do que somos induzidos a pensar". Ela deseja acabar com a crença, estimulada por best-sellers como Homens São de Marte, Mulheres São de Vênus, do escritor norteamericano John Gray, de que é inútil esperar por uma "igualdade de gênero", porque a ciência apontou diferenças inatas entre os sexos. "Se o livro também incentivar um debate sobre como melhorar a produção científica e a transmissão de informação sobre o assunto, então, estarei muito contente", declara.
O ponto central abordado por Cordelia é o uso equivocado da neurociência para justificar a questão de gênero. Por se referirem a um campo novo, as pesquisas neurocientíficas precisam ser mais bem estudadas. "Certamente, há diferença sexual de cognição e comportamento, mas o que é interessante é que ela pode aumentar, diminuir, desaparecer e mesmo ser revertida, dependendo do contexto social, ou do país, ou do período histórico", avalia.
A neurocientista critica diversos estudos muito populares que oferecem respaldo ao neurossexismo. Eles surgiram, em parte, como uma reação à ênfase que os psicólogos deram à importância do meio no desenvolvimento das habilidades e da personalidade durante os anos 1970 e o início da década de 1980. A resposta científica resultou, então, num peso exagerado para a influência dos genes e das habilidades herdadas.
Um desses estudos é sobre como os hormônios influenciam no comportamento e, em contato com o feto, podem determinar sua estrutura cerebral – e, consequentemente, seu padrão comportamental. A médica norte-americana Louann Brizendine, autora do best-seller Como as Mulheres Pensam, defende, por exemplo, que a testosterona que interage com o feto masculino por volta da oitava semana de gestação responde pelo desenvolvimento e pela inibição de algumas áreas do cérebro, como as relacionadas à agressividade e à comunicação, que dão aos homens habilidades matemáticas com as quais nos habituamos a associá-los.
Cordelia retruca, porém, assinalando que o comportamento característico e a diferença de sexo têm muito mais a ver com a socialização das crianças do que com a testosterona fetal. Segundo ela, os métodos de medição hormonal durante a gestação ainda não são exatos. Além disso, se houvesse habilidades inatas de homens e mulheres derivadas da estrutura cerebral, isso implicaria indivíduos seguindo carreiras de acordo com essa aptidão natural. No entanto, hoje há mulheres na área de exatas e em outros campos antes exclusivos dos homens, como o jornalismo esportivo.
O ambiente pode levar a mudanças hormonais
"Certamente, os hormônios influenciam nosso comportamento, mas o comportamento também influencia os hormônios", afirma Cordelia. Para ela, embora estejamos habituados a achar que, por conta dos hormônios, é natural que os homens sejam menos ligados à vida doméstica, o estímulo do ambiente pode levar a mudanças hormonais. "[Em seu estudo, a psicóloga norteamericana] Francine Deutsch descobriu que pais que dividem as tarefas igualmente com as esposas desenvolveram um tipo de proximidade com os filhos que normalmente associamos às mães", escreve a neurocientista.
Assim, as funções inatas de homens e mulheres podem não ser tão "instintivas" quanto se pensava. É a vivência social que acaba nos fazendo crer que há funções específicas para cada sexo. "Acho que há uma explicação plausível para o aparecimento da ideia de diferenças sexuais inatas", afirma Cordelia. "Psicólogos sociais mostraram que somos motivados psicologicamente a pensar que nossa estrutura social é justa, natural e inevitável." No quesito empatia, por exemplo, ela ressalta que os dois sexos conseguem ter o mesmo desempenho – "mas, quando uma mulher é lembrada que, como as demais mulheres, deveria ser boa nessa característica, ela tem performance melhor que a dos homens".
A vulnerabilidade das neuroimagens
Um tipo de estudo que merece atenção especial de Cordelia no livro é o que usa neuroimagens, como ressonância magnética funcional (fMRI, em inglês) e tomografia por emissão de pósitrons (PET, em inglês). Segundo a neurocientista, o atual entusiasmo com as pesquisas baseadas nesse recurso pode levar a descobertas superficiais sobre diferença de sexo.
Cordelia argumenta que, por esses exames de imagem cerebral serem muito caros, o número de participantes é limitado. Logo, a baixa amostragem pode levar a resultados duvidosos, já que pequenas variáveis, como cafeína e taxa respiratória, podem alterar a imagem, sem que tenham algum efeito significativo no comportamento.
Diferença sexual na ativação cerebral
A cientista australiana observa ainda que, pelo fato de a neurociência ser uma área nova, seu uso gera controvérsias. Muitos especialistas defendem que a análise estatística baseada nessas imagens deve ser feita com mais rigor. Segundo eles, muitos estudos recentes sobre diferença sexual na ativação cerebral não possuem, por exemplo, um dado estatístico relevante, ou podem mudar, dependendo do método de análise. "Por essas razões, é essencial não apostar muito em um único estudo que aponte diferenças sexuais, mas tentar encontrar um padrão consistente", analisa Cordelia.
Um estudo feito pela equipe da neurocientista holandesa Iris Sommer exemplifica a existência de pesquisas equivocadas nessa área. A equipe revisou duas vezes todos os estudos sobre lateralização da linguagem (quando uma parte do cérebro é mais desenvolvida em razão de hormônios e, por isso, o indivíduo tem mais ou menos habilidades verbais) que usavam fMRI. A primeira avaliação, de 2004, considerou cerca de 800 participantes; a segunda, de 2008, incluiu mais 2 mil voluntários. Em ambas, os cientistas não encontraram nenhuma diferença sexual significativa na lateralização funcional para a linguagem. Os pesquisadores também observaram que os estudos que mostravam as diferenças sexuais tinham menos participantes.
Um estudo feito por Janet Shibley Hyde, professora de psicologia da Universidade de Wisconsin- Madison (EUA), constatou, por meio de meta análises de outras 46 pesquisas, que 78% das diferenças entre os gêneros são muito pequenas ou inexistentes. Ou seja: meninas podem se sair tão bem na área de exatas quanto os meninos. Outra evidência disso é um estudo da norte-americana Giordana Grossi, da Universidade Estadual de Nova York (EUA), que mostra que, dependendo do país e da cultura social, garotas podem obter resultados tão altos quanto os garotos em testes matemáticos. Alunas da Finlândia tiraram notas maiores do que seus colegas do sexo masculino e do que os alunos norte-americanos que superaram suas conterrâneas.
Questão de gênero e educação
Um dos motivos pelos quais Cordelia se preocupa com a divulgação de estudos neurocientíficos sobre diferença sexual é o uso destes na área pedagógica. "Tenho objeção a meninos e meninas serem ensinados de forma diferente porque os estereótipos de gênero estão disfarçados de neurociência", declara. A autora exemplifica que há escolas mistas com "educação paralela" em alguns anos do período escolar. Durante essa fase de separação de classes em masculinas e femininas, os jovens são ensinados de forma diferente. Por exemplo, o ensino de matemática para meninos é feito com base em atividades práticas, como desenho e exercícios. Já nas classes femininas, o professor é orientado a discutir a matéria por cerca de dez minutos no início da aula, fazendo uma analogia dos eixos horizontal e vertical de um plano cartesiano com uma relação entre duas pessoas.
Para a neurocientista australiana, é fundamental aumentar o rigor das pesquisas sobre diferença sexual no cérebro. Nesse aspecto, ela argumenta que tanto cientistas quanto autores não especializados na área devem trabalhar em conjunto para que a ideia errada não seja passada ao público. "Jornalistas e editores que trabalham com mídia popular precisam estar conscientes da necessidade de apurar as declarações; e os cientistas têm a obrigação moral de ajudá-los", afirma. Os neurocientistas também devem estar cientes de que suas informações sobre diferença de gênero influenciam seu trabalho e o de colegas. "O neurossexismo afeta atitudes sociais de um modo prejudicial, e não devemos fazer pouco-caso disso."
Cérebro feminino de antes
Desde 1915, acreditava-se que as diferenças físicas do formato e da estrutura do cérebro das mulheres poderiam ter influência em seu comportamento. Naquele ano, o neurologista norte-americano Charles L. Dana utilizou essa crença como argumento para dizer que as mulheres não tinham como especialidade a área política e judicial, em seu artigo sobre direito de voto feminino no jornal The New York Times.
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