Neiva Guedes. A guardiã das araras-azuis
Sem tirar o pé da academia, ela foi a campo em prol da arara-azul. Seu trabalho pioneiro revelou-se o principal responsável pela conservação da espécie.
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Por: Marcia Sousa e Paulina Chamorro. Fonte: Site https://ciclovivo.com.br/
Como a arara que aumenta a cavidade no tronco da árvore para fazer seu ninho, Neiva Guedes abriu brechas e encontrou na biologia seu lar. Mas não ficou confortável dentro de um único espaço e buscou mais: é pesquisadora, professora e conservacionista. Sem tirar o pé da academia, foi a campo em prol da arara-azul. Seu trabalho pioneiro revelou-se o principal responsável pela conservação da espécie.
A menina que nasceu em Ponta Porã, cidade do Mato Grosso do Sul que faz divisa com o Paraguai, cresceu sonhando em ser pediatra. “Não passei no vestibular e precisava trabalhar para ajudar minha família. Acabei optando pela biologia, porque na época o curso era noturno. No segundo ano, me apaixonei pela carreira”, conta. A paixão pelas aves surgiu pouco tempo depois.
Recém-formada, em 1989, ela realizou um curso de Conservação da Natureza, parcialmente ministrado no Pantanal. Um certo dia se deparou com dezenas de araras-azuis (Anodorhynchus hyacinthinus) em uma árvore seca. O encantamento da cena foi seguido por uma informação decepcionante: aquelas aves tão belas estavam fadadas a desaparecer. No início dos anos 90 eram computados 1.500 exemplares no Pantanal Sul Mato-Grossense. Neiva não se conformou com a previsão catastrófica e, mais do que isso, arregaçou as mangas para mudar o curso da história.
Nada passa desapercebido pelos pesquisadores do Instituto Arara-azul quando estão em campo. Planilha à mão eles anotam dados de avistamentos e coletam penas e outros achados relacionados com a espécie que vão encontrando pelo caminho. | Fazenda Caiman, Miranda, Mato Grosso do Sul.
“Comecei sem saber nada de araras. Não era pantaneira, mas isso se tornou meu propósito de vida. É um bicho tão bonito e outras pessoas precisavam ver as araras em seu habitat natural”, revela Neiva. Foi assim que teve início o Projeto Arara Azul.
Neiva estudou a vida das araras, testando e produzindo ninhos artificiais, manejando ovos e filhotes e, acima de tudo, envolvendo a população e divulgando a importância de manter as araras livres na natureza. Desta forma, aves que nas últimas décadas estavam ficando raras, tornaram-se comuns e abundantes em várias regiões do Pantanal e Estado do Mato Grosso do Sul. Fato este, não só constatado pelos dados coletados pela pesquisadora, mas também por outros cientistas e moradores locais. O projeto se tornou um exemplo de conservação, servindo de referência para outros psitacídeos no Brasil e no mundo.
Uma forasteira no Pantanal
Em sua primeira viagem para entender onde as araras estavam se reproduzindo, 54 ninhos foram cadastrados. Para chegar em cada ponto, Neiva pegou carona, andou muito a pé e até a cavalo. Mas, imagine uma mulher, jovem, andando por estradas nem sempre demarcadas. Às vezes, ela passava o dia inteiro sem encontrar uma única pessoa por estar em uma região pouco habitada. “Eu andava no meio do mato mesmo. Só eu e meu assistente, que nem sempre era uma pessoa treinada. No começo eu não tinha equipe. Não tinha recursos. Então chamava para ajudar, para segurar uma corda, abrir porteira”, lembra.
Talvez Neiva ainda não tivesse consciência, mas estava quebrando vários paradigmas. Nem o gênero, nem a pouca idade foram empecilhos para ela seguir em frente. “Fui picada pelo gosto da aventura da pesquisa. Eu não tinha medo. Quando eu analiso algumas coisas que fiz no passado…penso que eu era louca”, confessa.
Neiva segura um filhote de arara-azul do qual irá coletar dados para seu monitoramento de reprodução da espécie.
Ao longo da sua história, teve que abrir mão de muito da vida pessoal para estar em campo, em um trabalho minucioso e incansável. A cada desafio, a busca pela superação. Para conseguir um jipe, virou piloto de teste da fábrica da Toyota. Assim passou a viajar pelo Pantanal, transportando equipamentos, comida e, no máximo, mais um assistente. Na falta de pessoas habilitadas, estavam ali amigos, familiares, voluntários e estagiários. Até aprendeu rapidamente a escalar árvores. “Fui sempre desenvolvendo caminhos, técnicas e arrebanhando pessoas para trabalhar pela conservação”, conta.
Filhotes aprisionados por traficantes de animais silvestres, confiscados pela polícia de fronteira quando estavam prestes a serem contrabandeados para o exterior.
Foi com esse espírito livre e firmeza que ela ganhou a confiança e o respeito por onde passou. Sendo sempre bem recebida nas propriedades, nas fazendas, seja na casa dos fazendeiros ou dos peões. Parte desse respeito adquirido ela atribui também ao fato do projeto ter tido uma continuidade. Todos os meses a bióloga estava in loco, em pouco tempo ficou conhecida como a “mulher das araras”. Hoje, com quase 30 anos de projeto, ela mantém laços com gerações de famílias.
Inspiração
Pesquisadora, motorista, mecânica, alpinista e Relações Públicas de seu próprio projeto. Sempre foi claro a seriedade de seu trabalho em prol da conservação da arara-azul. Isso logo gerou admiração e o apoio de outras mulheres. “Geralmente no Pantanal as mulheres são mais sábias, leem mais do que os peões. E as mulheres que direcionam. Eram elas que mandavam: ‘vai mostrar o ninho para a dona Neiva, vai lá’. Sempre com muito respeito”, conta.
Neiva Guedes descobriu sua paixão pela natureza cedo. Tão logo teve sua primeira oportunidade de trabalhar em campo, trouxe todo esse amor para uma das iniciativas mais exitosas da história da conservação brasileira, o Instituto Arara-azul. Ela segue na linha de frente lutando pela conservação do nosso meio ambiente.
Hoje sua equipe é formada mais por mulheres do que por homens. Elas escalam árvores, verificam os ninhos, fazem registros fotográficos e muitas anotações. O trabalho de toda a equipe é multidisciplinar. Não existe apenas uma função, do preparo de um relatório até fazer o café da manhã, todos são ensinados a compartilhar tarefas.
“Sou bastante realizada inspirando pessoas. Vejo que outras pessoas sonham do meu sonho e com isso se faz uma corrente. Isso envolve as meninas que trabalham no projeto, outras pessoas não só do Pantanal, mas de outras regiões do Brasil ou até do mundo, que se inspiram no nosso trabalho para também trabalhar pela conservação”, comemora.
Uma arara-azul exibe sua plumagem azul cobalto que lhe rendeu esse nome. A espécie, hoje considerada ameaçada de extinção, está sempre em pares e não é incomum encontrar grupos ou bandos de araras-azuis juntos. Com voo característico e tamanho acima do padrão para os psitacídeos, as araras-azuis são facilmente identificadas.
Admirada por estudantes, ela tem muito orgulho de também seguir como docente e manter o Instituto de pesquisa Arara Azul, que é referência mundial em pesquisa de psitacídeos, já tendo formado vários profissionais no Brasil afora.
Quando Neiva era estudante, a situação das araras, como alertou seu professor, era dramática. Além do desmatamento do habitat natural, milhares de araras-azuis foram capturadas na década de 1980 para serem vendidas como aves de estimação. Aliás, o Brasil ainda hoje é um dos maiores mercados para o tráfico de animais no mundo.
Outro problema que se constatou foi a disputa entre aves pelas cavidades naturais das árvores, de forma que parte do trabalho foi recuperar ninhos naturais e instalar ninhos artificiais. Os moradores locais abraçaram outra frente de trabalho: o plantio de árvores, para que, no futuro, as caixas que hoje acolhem os filhotes não sejam mais necessárias.
Neiva Guedes segura um ovo de arara-azul
Em 2019, há cerca de 6,5 mil araras azuis, vivendo principalmente no Pantanal, mas também em áreas onde há muitos anos não eram registradas, como no Cerrado.
Mas, a pesquisadora não colhe os louros sozinha. “Eu digo que a gente pode ter tido a iniciativa. Mas, sempre contei com o apoio das populações locais, dos fazendeiros, dos peões, das empresas, das instituições. Não é um trabalho único”.
E ela segue firme atuando em campo, renovando sua energia com os jovens que se unem à luta e também levam a conservação como uma missão de vida.
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