Por: Luis Pellegrini
Fonte: www.luispellegrini.com.br
“Droga é melhor que sexo.” Essa afirmação surpreendente foi feita por um garoto de 14 anos numa sala de aula em São Paulo, diante dos colegas, da professora e da orientadora social Ana Mortari. Foi Ana, querida amiga que infelizmente faleceu há alguns anos, quem me relatou o episódio. “Poucos dias depois, nessa mesma escola”, contou Ana, “fui procurada por uma menina de 12 anos para uma conversa particular. Ela já tinha provado algumas drogas e tinha vida sexual ativa. Não, não veio a mim por achar que essas coisas constituíam problemas. Simplesmente disse que não sentia nada, nem prazer nem dor, na relação sexual. Queria que eu lhe ensinasse o que deveria sentir durante a transa”.
Contei essa história a uma psicóloga especializada em crianças e adolescentes que, por seu lado, fez-me um relato ainda mais preocupante e doloroso. Acabara de enfrentar um problema sério: a pedido dos pais desesperados de um rapaz de 17 anos, cuidara da internação dele numa clínica de desintoxicação escondida numa localidade campestre do interior de São Paulo. O rapaz fora “iniciado” anos antes às drogas mais leves – maconha, cogumelos e LSD – em antros da capital e de Ilhabela, no litoral paulista. Depois de um verão inteiro passado em Porto Seguro, no Sul da Bahia, descambou de vez. Não apenas voltou de lá viciado em drogas pesadas – cocaína, crack e heroína -, como se tornou traficante. Passou a vender drogas a outros adolescentes. Os pais só perceberam a gravidade da situação quando o rapaz, que vivia solto pelas ruas, trancou-se em casa apavorado, recusando-se a sair. Pressionado, acabou confessando: recebera de grandes traficantes uma partida de drogas. Em lugar de vendê-las, consumira tudo ele mesmo e dera uma parte de presente a amigos. Por não poder pagar a mercadoria que lhe fora consignada, estava agora ameaçado de morte pela quadrilha. A clínica secreta para onde a psicóloga o encaminhou foi criada exatamente para esses casos. Abriga jovens drogados que vivem sob ameaças análogas, e seu endereço só é conhecido por terapeutas especializados.
Um encontro em Cabul
Esses relatos de uso de drogas por gente jovem reavivaram a memória de outros tristes casos que testemunhei em minhas andanças pelo mundo. Lá pelo ano de 1974, no hotel zero estrelas onde eu estava hospedado em Cabul, a capital do Afeganistão, conheci um jovem alemão. No café da manhã, no restaurante do hotel, quando eu mergulhava um naco de pão na gema vermelha de um ovo, ele se aproximou. Teria 19 ou 20 anos, era magro e de estatura média, e usava uma camisa afegane larga e de mangas compridas. Seus longos cabelos louros e encaracolados serviam de moldura a um rosto de rara beleza. Mas a expressão ansiosa e o estranho brilho nos olhos contrastavam com seus traços de anjo europeu.
Sem nenhum preâmbulo pediu-me vinte dólares emprestados. Disse que passava mal e tinha de comprar um remédio imediatamente. Vinte dólares era um bocado de dinheiro naqueles tempos e naquele lugar. Por isso inicialmente neguei, dizendo que não podia. Ele não hesitou. Aproximou-se da janela próxima à minha mesa – estávamos no terceiro ou quarto andar -, foi se debruçando para fora e disse que iria se jogar se eu não lhe desse o dinheiro. Acabei cedendo para não arruinar completamente meu café da manhã e meu primeiro dia em Cabul. Ele foi embora apressado, dizendo que me pagaria em um ou dois dias.
Naquela tarde, ao atravessar o saguão do hotel, cruzei com o jovem alemão. Ele parou à minha frente e agradeceu o favor que lhe fizera. Parecia então estar tranquilo e até mesmo contente. Mas, ao baixar o olhar, um calafrio percorreu-me a espinha. Ele usava agora uma camiseta de mangas curtas que lhe deixavam expostos os braços: não havia neles nem mais um centímetro sem marcas de picadas de agulhas.
Meses depois fiz o mesmo caminho terrestre, voltando da Índia para a Europa. Novamente me hospedei naquele hotel, em Cabul. Lembrei-me do rapaz alemão e perguntei por ele ao garçom afegane. Este, como quem narra um fato corriqueiro qualquer, contou-me que ele tinha morrido havia poucas semanas. Pressionado pela gerência a pagar a conta, furtara uma quantidade de lençóis na lavanderia do hotel, amarrara os lençóis um ao outro, como quem quer fazer uma corda, e tentara, com bagagem e tudo, descer com ela desde a janela do quinto andar, onde estava o seu quarto. Despencou lá de cima e teve morte quase instantânea. “Está enterrado no jardim da Embaixada da Alemanha”, continuou o garçom. “Há muita gente enterrada lá. Você sabe, eles chegam aqui, gastam todo o dinheiro em drogas, e por fim vendem os próprios documentos, passaportes e tudo o que têm para comprar mais. Alguns acabam morrendo e as embaixadas não podem repatriar os corpos por causa da falta de documentos de identificação. Enquanto não chega alguém da família capaz de reconhecer os restos, ficam enterrados nas embaixadas.” E completou, sacudindo a cabeça de modo desconsolado: “Por que vocês, ocidentais, não podem viver sem drogas?”
Consumo de drogas, um fenômeno inquietante
Até hoje tento elaborar uma resposta. Na memória, imagens do rapaz alemão em desespero pela falta de droga se alternam com outras cenas análogas que testemunhei em minhas andanças. A de uma jovem americana sentada na calçada de uma rua de Bombaim, falando sozinha e movendo os braços no ar como se voasse; a de um outro garoto contido à força por policiais em Catmandu, após ingestão excessiva de comida temperada com pó de haxixe; a de uma amiga italiana, casada e mãe de dois filhos, condenada a dez anos de prisão em Singapura por porte de droga.
A pergunta do garçom afegane permanece no ar. Por qual motivo tantas pessoas, particularmente jovens, arruínam a saúde, arriscam a própria vida e até mesmo morrem por causa de drogas? Trata-se de uma pergunta fundamental: o consumo de drogas é um dos mais inquietantes e sombrios fenômenos contemporâneos.
Durante muito tempo só tive meias-respostas: a crise geral da nossa civilização; a impossibilidade para muitos de aceitar a escala de valores que o sistema oferece como “objetivos máximos” a serem alcançados – o acúmulo desmedido de bens materiais, a conquista de status social, a competitividade; a carência de uma real filosofia de vida, de uma ideologia ou religião organizadas que possam oferecer às pessoas respostas verdadeiras, capazes de dissipar ou pelo menos mitigar a grande angústia existencial que caracteriza o atual momento histórico; a relação estreita entre drogas e sexualidade, com o espectro da AIDS a pairar sobre as cabeças inexperientes dos nossos jovens tão desprovidos de orientação eficaz quanto ao amor e ao sexo.
Todas essas causas são válidas em alguma medida. Mas a razão maior, a causa profunda pela qual tantos se atiram no poço autodestrutivo das drogas, ainda permanece um mistério. Muito provavelmente essa causa não é de tipo objetivo, e sim subjetivo. Tem a ver com a mais fundamental e premente das inquietudes da alma humana: a inquietude espiritual.
A primeira observação importante nesse sentido diz respeito ao quase constante interesse de tipo espiritual que se manifesta nas pessoas que usam drogas. Ele se exprime em geral através de alguma atividade religiosa, mística ou esotérica primárias. É muito comum que os usuários de drogas se interessem por técnicas de meditação, de ioga, ou práticas de tipo mágico ou mediúnico. Mesmo que tais práticas não sejam explícitas, parece evidente que quem usa drogas tende a tecer ao redor do seu hábito uma auréola mística. Exemplo típico, entre nós, são as seitas ligadas ao consumo do Daime – uma bebida vegetal alucinógena muito potente.
Uma resposta instigante ao fenômeno foi desenvolvida pelo psicólogo junguiano italiano Luigi Zoja. Em seu livro Nascer Não Basta, editado no Brasil pela Editora Axis Mundi, Zoja aborda um ponto fundamental: ele relaciona diretamente o consumo de drogas aos assim chamados “ritos de passagem”, processos iniciáticos que no passado faziam parte integrante de todas as culturas e civilizações. A abolição desses processos iniciáticos é um fenômeno relativamente recente e localizado, levado a cabo pela primeira e única vez pela civilização ocidental moderna.
Abrir as portas para um universo oculto
A iniciação é o tema nuclear de Nascer Não Basta. Não basta nascer no corpo, é necessário nascer também no espírito. Nascer no espírito é a realização plena da consciência, fruto de um trabalho que, no passado, era orientado pelas religiões. Eram elas que, através dos seus símbolos, abriam as portas para um universo oculto que está além das palavras, dos sentidos, da realidade sensível. Em todas elas encontramos rituais de passagem ou de iniciação para orientar esse desenvolvimento.
A iniciação pressupõe que o mero nascimento ponha o homem no mundo em condições insatisfatórias, sem valores ou transcendência ou, antes, numa condição meramente vegetativa. O acesso a uma condição superior é obtido com uma morte e uma regeneração simbólicas e rituais.
O binômio morte-renascimento simbólico constitui o cerne de todo processo de iniciação, da mesma forma que de todo processo de desenvolvimento e de maturação da psique e da consciência humanas. A psique e a consciência parecem não se desenvolver de modo linear, mas sim aos saltos, por degraus ou, melhor dizendo, por etapas e por ciclos. As passagens de uma etapa para outra são caracterizadas por situações de crise de transformação, nas quais a pessoa sente-se em geral perdida, desorientada, como se ficasse temporariamente desprovida da sua identidade anterior, e ainda sem a posse de uma nova identidade. Por isso, desde os tempos mais primitivos, as civilizações criaram os rituais de iniciação. Durante muitos milênios esses rituais organizaram a vida psíquica e social dos povos. São reminiscências de rituais de iniciação o batismo, a primeira comunhão, o casamento, o bar mitzva dos judeus e todos os demais rituais de puberdade, da mesma forma que as “camarinhas” da umbanda e do candomblé.
A psicologia sabe bem que toda transformação no universo da psique segue o padrão arquetípico da morte e do renascimento simbólicos. A morte da criança para surgir o adulto, a morte do solteiro para surgir o casado, a morte neste mundo para renascer num outro mundo. Nas sociedades organizadas com algum sentido iniciático, cada uma dessas transformações é acompanhada de rituais específicos que impedem a caotização do processo e o tornam mais seguro, mais coerente, mais rápido e, principalmente, mais consciente.
A psique profunda precisa de rituais para o seu desenvolvimento harmônico. Quando há falta de rituais, ela busca alternativas e às vezes sucedâneos incompletos, desvirtuados, que levam a resultados destrutivos.
Exatamente aqui Luigi Zoja nos fala do fenômeno da “morte do renascimento”, observado no dependente de drogas. Tomado pela grande angústia que deriva do modo inadequado ou desorganizado pelo qual acontece o seu processo de transformação psíquica, e sem nenhuma orientação e proteção dadas pela sociedade e pela cultura em que vive, o jovem recorre às drogas na tentativa de encontrar uma saída para a sua crise pessoal. Mas a droga constitui uma saída ilusória e destinada a frustrar. Ela produz, enquanto dura o seu efeito no organismo, a sensação de um renascimento: morre-se durante algum tempo para a realidade anterior angustiante, e se renasce no universo mais prazeroso, de percepções mais aguçadas, mais livre e aparentemente mais vital da consciência drogada. Mas como o drogado não passou antes pela experiência da morte simbólica, ele viverá essa “morte” depois que o efeito da droga passar. Faz assim uma iniciação às avessas, de sentido negativo, e aí costuma acontecer uma grande tragédia: o drogado permanece paralisado na fase que deveria ser inicial e transitória, a fase de morte. Para escapar dela, recorre novamente à droga, e o processo tende a se repetir indefinidamente, levando à destruição da saúde física e psíquica, e muitas vezes à morte final.
Tentativa de iniciação
O recurso às drogas seria, portanto, uma tentativa inconsciente de iniciação. Mas uma tentativa falha já de início por falta de consciência.A carência de oportunidades de iniciação no mundo moderno não afeta apenas os jovens, mas também a muitos adultos. Muitos procuram, consciente ou inconscientemente, meios para supri-la. Evidência disso é o grande florescimento, nas últimas décadas, do interesse por assuntos de tipo esotérico, ocultista ou místico. Mas, infelizmente, a tradição multimilenar da iniciação como um sistema cultural orgânico foi rompida, e dela restam hoje apenas fragmentos.
Mas nem por isso devemos ser pessimistas. Da mesma forma que cada pessoa atravessa ao longo da vida várias situações de crise de passagem, e sofre com elas, também com as civilizações isso acontece. Nossa civilização passa agora por uma grande crise de transformação, na qual valores antigos e esclerosados morrem para que novos padrões surjam para constituir as bases do mundo futuro. Nada é realmente eterno, nem mesmo os sistemas religiosos com seus métodos iniciáticos. Cada tempo histórico, cada civilização, têm de criar os seus próprios métodos, a sua própria religião. A nossa civilização também acabará criando os seus. Enquanto isso não acontece, Luigi Zoja e outros psicoterapeutas propõem a psicologia analítica como uma real possibilidade de iniciação, embora ainda em fase de desenvolvimento. Para esses psicólogos o trabalho analítico é, ao mesmo tempo, um processo de esclarecimento e de conhecimento, e um processo afetivo: um trabalho iniciático cujo método, sem fugir à regra, também está essencialmente baseado na experiência da morte e do renascimento simbólicos. “Se o processo funciona”, diz Zoja, “pode exprimir-se numa espécie de renascimento. Lento, trabalhoso, e inevitavelmente incompleto. É, no entanto, uma das poucas experiências de renascimento que se podem encontrar com certa objetividade na cultura das grandes cidades”. Para quem quer saber mais, ou tem problemas ligados ao consumo de drogas, recomendo vivamente a leitura de “Nascer não basta”, de Luigi Zoja. Particularmente aos país de adolescentes e pré-adolescentes.
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