Mil nazistas. A serviço da CIA e do FBI
Documentos que há pouco deixaram de ser classificados provam que, durante a Guerra Fria, mais de mil antigos colaboradores do Terceiro Reich trabalharam para os serviços secretos norte-americanos
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Por: Eric Lichtblau (*). Fonte: Jornal The New York Times
Documentos e entrevistas recentemente divulgados provam que, nas décadas que se seguiram à Il Guerra Mundial, a CIA e outras agências norte-americanas empregaram pelo menos mil nazis como espiões e informadores e que, ainda nos anos 90, esconderam as ligações entre o Governo e alguns deles, que continuavam vivos, nos Estados Unidos.
Documentos agora liberados (desclassificados) mostram que, no auge da Guerra Fria, nos anos 50, diretores de forças policiais e dos serviços secretos, como J. Edgar Hoover do FBI e Allen Dulles da CIA, recrutaram ativamente nazis de todas as categorias, como uma “mais-valia" secreta na luta contra os soviéticos. Consideravam que o manancial de informação contra os russos de que estes dispunham era mais importante do que aquilo a que um alto funcionário chamou “lapsos morais” que pudessem ter cometido o serviço do Terceiro Reich.
Nos anos 50, por exemplo, a CIA contratou um espião que fora oficial das SS, mesmo depois de ter chegado à conclusão de que, provavelmente, era culpado de “crimes de guerra menores”.
Segundo um funcionário governamental, em 1994, um advogado da CIA pressionou o Ministério Público para que desistisse de investigar um ex-espião dos arredores de Boston, envolvido no massacre nazi de dezenas de milhares de judeus, na Lituânia.
As provas das ligações das autoridades a espiões nazis começaram a surgir nos anos 70. Contudo, milhares de documentos desclassificados, requerimentos apresentados ao abrigo do Freedom of Information Act (lei sobre a liberdade de informação, que obriga as agências federais a comunicar o conteúdo de documentos a quem o peça) e também as entrevistas com dezenas de altos funcionários governamentais, atuais ou já afastados, mostram que o recrutamento de nazis pelo Governo foi muito mais longe do que se pensava anteriormente, e que as autoridades tentaram ocultar esses laços durante pelo menos meio século, após o final da Segunda Grande Guerra.
Como aterrorizar judeus
Em 1980, responsáveis do FBI recusaram-se a contar, até mesmo aos caçadores de nazistas do Departamento da Justiça, o que sabiam sobre 16 suspeitos que alegadamente viviam nos Estados Unidos.
Alguns memorandos indicam que aquela polícia federal ignorou o pedido de apresentação dos registos internos sobre os suspeitos nazis, formulado pelo Ministério Público, porque os 16 homens tinham trabalhado como informantes do FBI, e fornecido pistas sobre “simpatizantes” comunistas. Aliás, cinco deles ainda estavam na ativa. Numa tentativa de justificar a recusa de cooperação, um alto funcionário do FBI sublinhou, num memorando, a necessidade de “proteger o mais possível a confidencialidade desse tipo de fontes de informação”.
Vários espiões dos Estados Unidos tinham trabalhado ao mais alto nível para os nazistas. Um oficial das SS, Otto von Bolschwing, fora o mentor e braço-direito de Adolf Eichmann, o arquiteto da “solução final”, e escrevera documentos de orientação sobre a forma de aterrorizar judeus.
Os registos mostram que, depois da guerra, a CIA não só o contratou como espião na Europa, como o instalou, com a família, em Nova Iorque, em 1954. Segundo escreveu esta agência, a iniciativa foi considerada como “uma recompensa pelos seus bons e leais serviços no pós-guerra e tendo em conta a inocuidade das suas atividades no seio do partido (nazi)”.
O filho, Gus von Bolschwing, que só muitos anos depois ficou sabendo das ligações do pai com os nazistas, considera a relação entre a agência de espionagem e o seu pai como uma relação de conveniência mútua, forjada pela Guerra Fria. “Usaram-no e ele os usou”, declarou Gus von Bolschwing, hoje com 75 anos, numa entrevista. “Não devia ter acontecido. Ele nunca deveria ter sido autorizado a entrar nos Estados Unidos. Isso não era coerente com os valores do nosso país.”
Alguns memorandos provam que quando os agentes israelenses detiveram Eichmann na Argentina, em 1960, Otto von Bolschwing pediu ajuda à CIA, porque tinha medo de que viessem atrás dele. Segundo relatou um alto funcionário da CIA, os responsáveis da agência também receavam que Von Bolschwing pudesse ser apontado como “colaborador e parceiro nas ações de Eichmann, e que a publicidade daí resultante viesse a constituir um embaraço para os EUA”.
Os registos mostram que, em 1961, depois de Von Bolschwing ter se encontrado com dois agentes da CIA, esta agência lhe prometeu não revelar as suas ligações com Eichmann. O ex-SS viveu tranquilamente mais 20 anos, até os magistrados do Ministério Público terem descoberto o papel que ele desempenhara durante a guerra e terem aberto um processo contra ele. Em 1981, Von Bolschwing aceitou renunciar à cidadania norte-americana e morreu meses mais tarde.
Mentalidade da Guerra Fria
Segundo Richard Breitman, especialista do Holocausto da American University e membro de uma equipe de peritos nomeada pelo Governo para desclassificar os registos de crimes de guerra, as Forças Armadas norte-americanas, a CIA, o FBI e outras agências federais, no seu conjunto teriam contratado cerca de mil nazistas como espiões e informadores. Na opinião de Norman Goda, historiador da Universidade da Flórida e também membro da equipe de desclassificação, o cômputo de nazis transformados em espiões deve ser ainda mais elevado, mas muitos registos continuam, ainda hoje, a ser secretos, o que torna impossível o cálculo do número exato.
“Direta ou indiretamente, as agências dos Estados Unidos contrataram muitos agentes policiais nazis e colaboradores da Europa do Leste que eram, obviamente, culpados de crimes de guerra, adiantou Goda. “Era fácil obter a informação de que se tratava de homens comprometidos.”
O uso alargado de espiões nazis nasceu de uma mentalidade da Guerra Fria partilhada por dois titãs dos serviços de informação, nos anos 5O: J. Edgar Hoover, diretor do FBI durante cerca de 50 anos, e Allen Dulles, diretor da CIA, com a ascensão à presidência de Eisenhower. Dulles pensava que os nazis “moderados” podiam “ser úteis” aos Estados Unidos. Hoover aprovou pessoalmente o recrutamento de alguns nazis, repudiando as acusações de que tinham cometido atrocidades durante a guerra e alegando que estas eram propaganda soviética.
Em 1968, Hoover autorizou o FBI a colocar sob escuta o jornalista de esquerda Charles Allen, que escrevia artigos críticos sobre os nazis nos Estados Unidos, alegando que Allen era uma ameaça potencial à segurança nacional.
Muitos espiões nazis revelaram-se incompetentes. Vários eram mentirosos inveterados, impostores ou enganadores“. Retrospectivamente, torna-se claro que Hoover, e por extensão o FBI, teve uma manifesta falta de visão, ao rejeitar provas da relação entre imigrantes alemães e do leste da Europa e os crimes de guerra dos nazis”, admite John Fox, historiador principal do FBI. “Contudo, convém lembrar que isso aconteceu no auge das tensões da Guerra Fria.”
A CIA recusou-se a fazer declarações para este artigo. Os documentos revelam que, ao longo dos anos 50 e 60, os espiões nazis realizaram diversas missões, das mais perigosas às mais triviais, por conta de agências norte-americanas.
No estado de Maryland, instrutores do Exército formaram vários antigos oficiais nazis em guerra de guerrilha, para uma possível invasão da Rússia. No Connecticut, a CIA encarregou um antigo guarda nazi de analisar os símbolos inscritos nos selos do correio proveniente do bloco soviético, em busca de sentidos ocultos. No estado de Virgínia, um dos principais conselheiros de Hitler dava conferências de acesso restrito sobre assuntos soviéticos. E, na Alemanha, oficiais das SS infiltraram-se nas zonas controladas pelos russos, para instalar cabos de escuta e vigiar o tráfico ferroviário.
Agentes duplos a soldo da URSS
Informes desses relatórios de segurança agora desclassificados, revelam no entanto que muitos espiões nazis revelaram-se incompetentes ou pior. Vários deles eram mentirosos inveterados, impostores ou burlões; verificou-se que alguns eram inclusive agentes duplos, a soldo dos soviéticos.
Richard Breitman observou que o aspecto ético de recrutar nazis raramente foi levado em conta: “Tudo isto resultou de uma espécie de pânico, do medo de termos poucos recursos para enfrentar os comunistas, vistos como terrivelmente poderosos”. As tentativas de ocultar os laços agora revelados duraram décadas. Em 1994, quando o Departamento de Justiça se preparava para processar um colaborador nazi de alta patente chamado Aleksandras Lileikis, que se encontrava em Boston, a CIA procurou intervir. Os próprios arquivos da agência ligavam Lileikis ao massacre de 60 mil judeus, na Lituânia. Da ficha de Lileikis na CIA constava que trabalhara “sob o controle da Gestapo, durante a guerra”, e “estivera possivelmente envolvido no fuzilamento de judeus em Vilnius”.
Apesar disso, os registros mostram que, em 1952, a agência o contratou como espião na Alemanha de Leste - pagando-lhe 1700 dólares por ano e dois pacotes de cigarros por mês - e que, quatro anos mais tarde, lhe abriu o caminho para emigrar para os Estados Unidos. Lileikis viveu em paz durante quase 40 anos, até o Ministério Público descobrir o seu passado nazi e se preparar para o deportar, em 1994.
Unidade de caça aos nazis
Mas, quando a CIA soube dessas intenções do Ministério Público americano, um dos seus advogados telefonou a Eli Rosenbaum, da unidade de caça aos nazistas do Departamento da Justiça, e disse-lhe que “não podia avançar com aquele Processo” - contou Rosenbaum, numa entrevista. A agência não queria correr o risco de divulgar registros secretos sobre o seu antigo espião. Rosenbaum disse ainda ter chegado a um entendimento com a CIA: se a agência fosse obrigada a entregar registros questionáveis, a sua unidade desistiria do processo. Mas isso não aconteceu e Lileikis acabou mesmo sendo deportado.
A CIA escondeu ainda dos legisladores o que sabia sobre o passado de Lileikis. Em 1995, num memorando para o Comitê de Informação da Câmara dos Representantes, a CIA reconheceu que o usara como espião, mas não fez qualquer referência aos registros que o associavam a assassínios em massa. “Não ha provas de que esta agência tivesse conhecimento das suas atividades durante a guerra”, informou a agência.
(*)Eric Lichtblau é jornalista do jornal The New York Times. Este artigo foi adaptado do seu livro The Nazis Next Door: How America Became a Safe Haven for Hitlers Men (Os nazistas da porta ao lado: Como a América tornou-se um porto seguro para homens de Hitler, recentemente publicado)
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