Meu pai, o falsário judeu: Nas suas mãos, nenhum documento estava a salvo

Sarah Kaminsky conta a extraordinária história de seu pai, Adolfo, e suas façanhas durante a Segunda Guerra Mundial; usando sua engenhosidade e talento para falsificar documentos e salvar vidas

Sarah Kaminsky conta a extraordinária história de seu pai, Adolfo, e suas façanhas durante a Segunda Guerra Mundial; usando sua engenhosidade e talento para falsificar documentos e salvar vidas
Sarah Kaminsky conta a extraordinária história de seu pai, Adolfo, e suas façanhas durante a Segunda Guerra Mundial; usando sua engenhosidade e talento para falsificar documentos e salvar vidas (Foto: Gisele Federicce)


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O falsificador argentino Adolfo Kaminsky e sua filha Sara Kaminsky

 

 

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Vídeo: TED – Ideas Worth Spreading

Tradução: Rafael Eufrasio. Revisão: Viviane Ferraz Matos

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Atriz e escritora, Sarah Kaminsky nasceu na Argélia em 1979, de pai judeu argentino e mãe tuaregue argelina. Sarah foi para a França aos 3 anos de idade. Apaixonada pela arte desde a infância, começou a estudar violoncelo aos 4 anos. Na adolescência descobriu duas outras paixões que ainda vibram em sua vida: o teatro e a escritura. Ela hoje divide seu tempo entre o trabalho como atriz e como escritora de contos e romances.

Em 2009, Sarah escreveu um novela baseada na história verdadeira de seu pai, Adolfo Kaminsky. Ele foi um falsário genial que empregou seu talento para servir a Resistência Francesa durante a Segunda Guerra mundial. Seu trabalho salvou a vida de milhares de famílias judias, e de muitas outras pessoas em vários países do mundo.

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Vídeo:

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Tradução integral da palestra de Sarah Kaminsky no TED:

Eu sou filha de um falsário, não apenas qualquer falsário... Quando se ouve a palavra "falsário", normalmente entende-se "mercenário". Entende-se "notas falsas", "fotos falsas". Meu pai não é tal homem. Durante 30 anos, ele falsificou documentos. Nunca para si mesmo, sempre para os outros, e para ajudar os perseguidos e oprimidos. Permita-me apresentá-lo. Este é meu pai aos 19 anos de idade. Tudo começou durante a Segunda Guerra Mundial quando, aos 17 anos de idade, ele encontrava-se numa fábrica de documentos falsos. Ele rapidamente se tornou o maior expert em documentos falsos da Resistência. E esta não é uma história banal. Depois da liberação, ele continuou a produzir documentos falsos até os anos 70.

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Quando eu era criança, não fazia a mínima ideia disso, é claro. Esta sou eu, no meio, fazendo caras. Cresci no subúrbio de Paris e era a mais nova de três filhos. Eu tinha um pai "normal", como todo mundo, sem falar no fato que ele era 30 anos mais velho que... enfim, ele tinha idade suficiente para ser meu avô. De qualquer forma, ele era um fotógrafo e um educador, e sempre nos ensinou a obedecer estritamente as leis. E, é claro, ele nunca falava sobre sua vida passada, quando ele era um falsário.

Aconteceu, porém, um incidente sobre o qual vou lhes contar agora, que talvez deveria ter-me feito desconfiar de algo. Eu estava no Ensino Médio e tirei uma nota baixa, um evento raro para mim, então eu decidi esconder o fato dos meus pais. Para fazer isso, eu decidi falsificar suas assinaturas. Comecei com a assinatura da minha mãe, porque a do meu pai era absolutamente impossível de falsificar. Então, comecei o trabalho. Peguei algumas folhas de papel e comecei a praticar, praticar, praticar, até conseguir firmar bem a mão, e entrei em ação. Depois, quando estava checando minha mochila, minha mãe pegou meu dever de casa e imediatamente viu que a assinatura era falsa. Ela gritou comigo como nunca havia feito antes. Eu fui me esconder no meu quarto, embaixo das cobertas, e esperei meu pai voltar do trabalho com, pode-se dizer, muita apreensão. Eu o ouvi entrando. Permaneci embaixo das cobertas. Ele entrou no meu quarto, sentou no canto da cama. Ele estava calado, então eu puxei o cobertor da minha cabeça e quando ele me viu, pôs-se a rir. Ele estava rindo tanto, que não conseguia parar. Ele estava segurando minha tarefa. Então disse, "Mas sério, Sarah, você poderia ter feito um trabalho melhor! Não vê que ela é muito pequena?" De fato, é bem pequena.

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Eu nasci na Argélia. Lá eu ouvia as pessoas dizerem que meu pai era um "moudjahid", que significa "lutador". Mais tarde, na França, eu adorava escutar as conversas dos adultos e ouvia todo tipo de histórias sobre o passado do meu pai, especialmente que ele havia "participado" da Segunda Guerra Mundial, que ele havia "participado" da guerra da Argélia. E, na minha cabeça, pensava que "participar" de uma guerra significava ter sido um soldado. Mas, conhecendo meu pai, e como ele falava que era um pacifista e contra violência, eu não conseguia imaginar meu pai de capacete e fuzil. E, de fato, eu estava completamente errada.

Capa da edição argentina do livro que conta a vida de Adolfo Kaminsky

Um dia meu pai estava preparando a documentação para que obtivéssemos a nacionalidade francesa. Eu vi alguns documentos que chamaram a minha atenção. Estes são os verdadeiros! Estes são meus, eu nasci na Argentina! Mas o documento que vi, e que ajudaria nosso processo com as autoridades, era um documento do exército que agradecia meu pai pelo seu trabalho para o serviço secreto. E, imediatamente, eu me espantei! Meu pai, um agente secreto?! Era como o James Bond, enfim... Eu queira perguntar, mas ele nunca dava pistas. E depois eu cheguei a conclusão que um dia teria de questioná-lo. E depois eu tive um filho, e finalmente decidi que era tempo, que ele teria de nos contar. Eu me tornara mãe e ele estava celebrando 77 anos e, de repente, eu estava com muito, muito medo. Eu temia que ele se fosse e levasse consigo o seu silêncio, e levasse consigo seus segredos.Eu consegui convencê-lo que isto era importante para nós, mas possivelmente para outras pessoas também, que ele compartilhasse sua história. Ele decidiu me contar e escrevi um livro, do qual vou ler algumas partes daqui a pouco.

Então, a história dele. Meu pai nasceu na Argentina. Seus pais eram de origem russa. A família inteira veio para a França na década de 30. Seus pais eram judeus, russos e, acima de tudo, muito pobres. De forma que com 14 anos meu pai teve de trabalhar. E com o único diploma que tinha, seu certificado de ensino fundamental, ele conseguiu emprego como tintureiro. Foi lá que ele descobriu algo totalmente mágico, e quando ele fala sobre isso, é fascinante. É a mágica da química da tintura. Enquanto a guerra acontecia sua mãe foi morta quando ele tinha 15 anos. Isto coincidiu com o tempo em que ele embarcou de corpo e alma na química, pois este era o único consolo para a sua tristeza. Ele perguntava o tempo todo pro seu chefe muitas coisas, para aprender, para acumular mais e mais conhecimento, e, de noite, quando ninguém estava olhando, ele botava em prática sua experiência. Ele se interessava mais por descoloração de tintas.

Tudo isso para contar-lhes que meu pai se tornou um falsário, na verdade, quase que por acidente. Sua família era judia, então eles foram perseguidos. Finalmente eles todos foram presos e levados pro campo de Drancy e conseguiram sair no último minuto por causa dos documentos argentinos. Bem, foram soltos, mas sempre estavam em perigo. Sempre havia o enorme carimbo de "judeu" em seus documentos. Foi meu avô que decidiu que eles precisavam de documentos falsos. Meu pai tinha tanto respeito pela lei que muito embora ele estivesse sendo perseguido, ele nunca pensou em falsificar documentos. Mas foi ele quem se encontrou com um homem da Resistência.

Naquela época, documentos tinham capas duras, eles eram preenchidos a mão e constava sua profissão. Para sobreviver, ele precisava trabalhar. Ele pediu ao homem para escrever "tintureiro". De repente, o homem ficou muito, muito interessado. Como assim "tintureiro", você sabe como apagar tintas? Claro que ele sabia. E logo o homem explicou que de fato a Resistência inteira tinha um problema enorme: mesmo os melhores experts não tinham conseguido apagar uma tinta chamada "permanente" a tinta da "Mancha d'água" azul. E imediatamente meu pai respondeu que sabia exatamente como apagá-la. Agora, é claro, o homem estava impressionado com aquele jovem de 17 anos que poderia imediatamente dar a fórmula, então o recrutou. E, de fato, sem saber, meu pai inventou algo que podemos encontrar em todo estojo de criança: o "corretivo". (Aplausos)

Mas isto era apenas o começo. Este é o meu pai. Logo que chegou ao laboratório, embora ele fosse o mais novo, ele imediatamente viu que existia um problema em falsificar documentos. Tudo se limitava a falsificar. Mas a demanda só crescia e era difícil alterar os documentos existentes. Ele então decidiu que era necessário confeccioná-los. Começou a imprimir. Começou a trabalhar com fotografia. Começou a fazer selos. Inventou todo tipo de coisa, com alguns materiais, ele inventou uma centrífuga usando uma roda de bicicleta. De qualquer forma, ele teve de fazer isso tudo porque ele era completamente obcecado com o resultado. Ele fez um cálculo simples: Ele falsificava 30 documentos em uma hora. Se ele dormisse uma hora, 30 pessoas morriam.

Este senso de responsabilidade pela vida de outras pessoas, quando ele ainda tinha 17 anos, e também sua culpa por ser um sobrevivente, já que havia escapado do campo quando seus amigos não haviam, ficou consigo sua vida inteira. E talvez isso explique porque, por 30 anos, ele continuou a falsificar documentos a preço de todo tipo de sacrifício. Eu gostaria de falar sobre estes sacrifícios, pois foram muitos. Claro que houve sacrifícios financeiros, pois ele sempre se recusou a ser pago. Para ele, ser pago significava ser um mercenário. Se aceitasse pagamento, ele não seria capaz de dizer "sim" ou "não" dependendo no que ele julgasse ser um caso justo ou não. Ele foi um fotógrafo durante o dia, e um falsário durante a noite, por 30 anos. Ele estava na pior o tempo todo.

Sarah Kaminsky (direita). Na tela projeção de foto dela mesma com seu filho no colo

E também havia os sacrifícios emocionais: Como alguém podia viver com uma mulher tendo tantos segredos? Como se pode explicar o que se faz no laboratório, todo santo dia? É claro, existia um outro tipo de sacrifício envolvendo sua família, que eu entendi bem mais tarde. Um dia meu pai me apresentou à minha irmã. Ele também explicou que eu tinha um irmão e a primeira vez que eu os vi, eu devia ter três ou quatro anos de idade, e eles eram 30 anos mais velhos que eu. Ambos estão com sessenta e poucos anos agora.

Para escrever o livro, eu interroguei a minha irmã. Eu queria saber quem meu pai era, quem era o pai que ela conhecia. Ela me explicou que o pai que ela tinha tido lhes dizia que viria pegá-los no domingo para um passeio. Eles se vestiam e esperavam por ele, mas ele quase nunca vinha. Ele dizia, "Ligarei." Nunca ligava. E depois ele não vinha. Então um dia ele desapareceu completamente. O tempo passou e eles achavam que ele os havia esquecido, inicialmente. Depois o tempo passou e ao fim de dois anos, eles imaginaram,"Bem, talvez nosso pai falecera." E depois eu entendi que fazer tantas perguntas ao meu pai estava mexendo num passado sobre o qual ele não queria falar, pois era doloroso. E enquanto meu meio-irmão e minha meio-irmã achavam que tinham sido abandonados, ficado órfãos, meu pai estava fazendo documentos falsos. E se ele não lhes contou, claro que foi para protegê-los.

Depois da liberação ele falsificou documentos para permitir aos sobreviventes dos campos de concentração emigrar para a Palestina antes da criação de Israel. E como era um anticolonialista convicto, ele falsificou documentos para argelinos durante a Guerra Argelina. Depois da Guerra Argelina, no coração dos movimentos internacionais de resistência, o nome dele circulou e o mundo inteiro veio bater na porta dele. Na África, havia países lutando por independência: Guiné, Guiné-Bissau, Angola. E então meu pai ligou-se ao partido de Nelson Mandela contra o apartheid. Ele falsificou documentos para negros sul-africanos perseguidos.

Também havia a América Latina. Meu pai ajudou aqueles que resistiam a ditaduras na República Dominicana, Haiti, e depois foi a vez do Brasil, Argentina, Venezuela, El Salvador, Nicarágua, Colômbia, Peru, Uruguai, Chile e México. Depois veio a Guerra do Vietnã. Meu pai falsificou documentos para os desertores americanos que não queriam lutar contra os vietnamitas. A Europa não ficou de fora, não. Meu pai falsificou documentos para os dissidentes contra Franco na Espanha, Salazar em Portugal, contra a ditadura dos coronéis na Grécia e mesmo na França. Lá, aconteceu, apenas uma vez, em maio de 1968. Meu pai assistiu, benevolentemente, é claro, às demonstrações do mês de maio,mas seu coração estava em outro lugar, tal como o seu tempo, pois ele tinha mais de 15 países para servir.

Uma vez, porém, ele concordou em falsificar para alguém que vocês reconheceriam. (Risos) Ele era muito mais jovem naquela época e meu pai concordou em falsificar para permiti-lo voltar e discursar em um encontro. Ele me contou que aqueles documentos eram os mais relevantes para a mídia e o menos útil que ele fez a vida inteira. Mas ele o aceitou fazer, embora a vida de Daniel Cohn-Bendit não estivesse em perigo, só porque era uma boa oportunidade de tirar sarro das autoridades e que não há nada mais poroso que fronteiras e que ideias não têm fronteiras.

Toda a minha infância, enquanto os pais dos meus amigos lhes contavam contos de fadas,meu pai contava histórias de heróis discretos com utopias inabaláveis, que fizeram milagres. E aqueles heróis não precisaram de um exército por trás deles. De qualquer forma, ninguém os teriam seguido, exceto um punhado de homens e mulheres de convicção e coragem. Mais tarde eu entendi que na verdade era a sua própria história que meu pai me contava para que eu dormisse. Eu o perguntei se, considerando os sacrifícios que ele teve de fazer, ele tinha algum arrependimento. Ele disse "Não!" Ele me contou que seria incapaz de testemunhar ou submeter-se à injustiça sem fazer nada. Ele foi persuadido, ele ainda está convencido que um outro mundo é possível. Um mundo em que ninguém jamais necessitará de um falsário. Ele ainda sonha com isso. Meu pai está aqui na sala hoje. Seu nome é Adolfo Kaminsky e eu quero pedir que ele se levante. (Aplausos) Obrigada.

 

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