Meu lar não é onde durmo. É onde estou
Mais e mais pessoas mundo afora estão vivendo em países que não são considerados os seus. O escritor Pico Iyer - que tem três ou quatro 'origens' - medita sobre o significado de lar, a alegria de viajar e a serenidade de estar quieto
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
Vídeo: TED – Ideas Worth Spreading
Tradução: Wanderley Jesus. Revisão: Nadja Nathan
Pico Iyer é um escritor itinerante muito apreciado por suas crônicas e artigos nos quais dá exemplos de miscigenação cultural. Nesta conferência, ele explica como a viagem pode nos resgatar das distrações tecnológicas que, hoje, muitas vezes nos têm transformado em simples apêndices das máquinas que inventamos.
Vídeo:
Tradução integral da palestra de Pico Iyer:
"De onde você é? É uma pergunta tão simples, mas hoje, claro, perguntas simples trazem respostas cada vez mais complicadas.
As pessoas sempre me perguntam de onde venho, e elas esperam que eu diga Índia, e elas estão absolutamente corretas já que 100% de meu sangue e ancestrais realmente vêm da Índia. Exceto que nunca vivi um dia de minha vida lá. Não consigo falar sequer uma palavra de seus mais de 22.000 dialetos. Portanto não acho que tenha o direito de dizer que sou indiano. E se "De onde você é?" significa "Onde você nasceu, cresceu e foi educado?" então sou totalmente daquele país pequeno engraçado chamado Inglaterra, exceto pelo fato de ter deixado a Inglaterra assim que completei a faculdade, e enquanto eu crescia, eu era o único garoto de minha classe que não se parecia com os clássicos heróis ingleses representados em nossos livros didáticos. E se "De onde você é?" significa "Onde você paga seus impostos?" Onde você faz suas consultas ao médico e ao dentista?' então eu sou dos Estados Unidos, e vivo lá há 48 anos, desde que eu era uma criança. Exceto, que por muitos anos, em que eu carreguei este cartão rosa com linhas verdes sobre minha foto identificando-me como um estrangeiro residente. Na verdade me sinto cada vez mais estrangeiro vivendo lá.
E se "De onde você é?" significa "Qual o lugar que mais te toca e onde você tenta passar a maior parte do seu tempo?" então sou japonês, pois eu vivi o mais que pude nos últimos 25 anos no Japão. Exceto, pelo fato que em todos estes anos eu estive lá com visto de turista, e tenho certeza que não muitos japoneses iam querer me considerar um deles.
Digo tudo isto só para enfatizar como antiquado e direto meu passado é, pois quando eu vou a Hong Kong ou Sydney ou Vancouver, a maioria das crianças que encontro é muito mais internacional e multicultural que eu. Elas têm um lar ligado aos seus pais, mas um outro ligado aos seus companheiros, e um terceiro ao lugar onde eles estão no momento, um quarto ligado ao lugar que eles sonham estar, e muitos outros. E a vida delas será vivida juntando pedaços de diferente locais e colocando-os juntos em um único vitral. Lar para elas é realmente um trabalho em progresso. É como um projeto no qual eles estão constantemente incluindo melhorias e correções.
Para a maioria de nós, lar tem menos a ver com um pedaço de solo do que, poder-se-ia dizer, com um pedaço da alma. Se alguém de repente me pergunta: "Onde é seu lar?" Penso a respeito de minha amada e meus amigos mais próximos ou da música que viaja comigo onde quer que eu esteja.
E sempre me sinto assim, mas eu entendi, como era esperado, há alguns anos quando eu subia as escadas da casa de meus pais na Califórnia, e olhei através da janela da sala de estar e vi que estávamos cercados por chamas de 23 metros de altura, um daqueles incêndios que regularmente destroem as montanhas da Califórnia e muitos outros lugares assim. Três horas depois, aquele fogo tinha reduzido meu lar e tudo que estava dentro, exceto eu, a cinzas. Quando acordei no dia seguinte, eu dormia no chão da casa de um amigo, a única coisa que tinha no mundo era uma escova de dentes que tinha acabado de comprar em um supermercado 24 horas. Claro, se alguém me perguntasse naquela hora, "Onde é seu lar?" Literalmente não poderia apontar nenhuma construção física. Meu lar seria aquilo que eu levasse comigo.
De algum modo, acho que é muito libertador. Pois quando meus avós nasceram, eles tinham o seu sentido de lar, seu sentido de comunidade, e mesmo seu sentido de inimizade, dado a eles ao nascer, e não tinham muita chance de escapar disso. Hoje em dia, pelo menos alguns de nós podem escolher nosso sentido de lar, criar nosso sentido de comunidade, moldar nosso sentido de eu, e ao fazer isso podem dar um pequeno passo além de algumas divisões preto no branco da era de nossos avós. Não é coincidência que o presidente da mais forte nação da terra seja meio queniano, crescido parte na Indonésia, e tenha um cunhado sino-canadense.
O número de pessoas morando em países que não o seu soma hoje 220 milhões, e esse é um número inimaginável, mas significa que se tomarmos toda a população do Canadá e toda a população da Austrália e novamente toda a população da Austrália e toda a população do Canadá e dobrar esse número, ainda terá menos pessoas do que esta grande tribo flutuante. O número de pessoas que vive fora do velho conceito de nação-estado está aumentando muito rapidamente, em 64 milhões só nos últimos 12 anos, que em breve haverá mais pessoas como nós do que americanos. Já representamos a quinta nação mais populosa da terra. De fato, na maior cidade canadense, Toronto, a média de moradores hoje que costumavam ser chamados de estrangeiros, alguém que nasceu em um país diferente.
Sempre senti que a beleza de ser cercado por estrangeiros é que isso é que o mantém acordado. Não podemos tomar nada por óbvio. Viajar, para mim, é quase como estar apaixonado, pois de repente todos os seus sentidos estão ligados. De repente você está atento aos padrões secretos do mundo. A real viagem da descoberta, como disse Marcel Proust, não consiste em ver lugares novos, mas em ver com novos olhos. E claro, assim que você tenha novos olhos, mesmo os lugares antigos, mesmo seu lar tornam-se algo diferente.
Muitas das pessoas vivendo em paises estrangeiros são refugiados que não queriam nunca deixar seus países e anseiam retornar para o seu país. Mas para os afortunados entre nós,acho que a era do movimento trás novas possibilidades estimulantes. Certamente quando viajo, especialmente para as principais cidades do mundo, a pessoa típica que encontro hoje será, por exemplo, uma mulher meio coreana, meio alemã morando em Paris. E assim que ela encontra um jovem meio tailandês, meio canadense de Edimburgo, ela o reconhece como companheiro. Ela descobre que provavelmente tem muito mais em comum com ele do que com qualquer coreano ou alemão puro. Se tornam amigos. Se apaixonam. E se mudam para Nova Iorque. Ou Edimburgo. E a garotinha que nasce da união deles não será nem coreana, nem alemã nem francesa, nem tailandesa, nem escocesa, nem canadense ou mesmo americana, mas uma maravilhosa mistura em constante evolução de todos esses lugares. E potencialmente, sobre todo o jeito que a jovem sonha com o mundo, escreve sobre o mundo, pensa sobre o mundo, que poderia ser algo diferente, pois vem desta quase sem precedente mistura de culturas. De onde você é agora é muito menos importante do que para onde você vai. Mais e mais pessoas têm raízes no tempo futuro ou presente tanto quanto no passado. E lar, sabemos, não é o lugar em que aconteceu de nascermos. É o lugar no qual nos tornamos nós mesmos.
E ainda há um grande problema com o movimento: é muto difícil se orientar quando se está em transição. Há alguns anos, notei que tinha acumulado um milhão de milhas só na United Airlines. Todos conhecem aquele sistema louco, seis dias no inferno, e você recebe o sétimo de graça.
Comecei a pensar que realmente, o movimento era tão bom quando o sentimento de quietude que você pode trazer para poder analisar.
E oito meses depois que minha casa pegou fogo, pedi ajuda a um amigo que ensina no colégio da região, ele disse: "Tenho o lugar perfeito para você."
"Verdade?" eu disse. Sempre fui um tanto cético quando as pessoas dizem coisas assim.
"Não, sério", ele continuou, "são apenas três horas de carro daqui, e não é muito caro, e provavelmente diferente de tudo que já morou."
"Humm". Comecei a ficar intrigado. "O que é?"
"Bem..." Meu amigo titubeou "Bem, na verdade é um mosteiro católico."
Esta era a resposta errada. Eu passei 15 anos em escolas anglicanas, daí eu tinha hinos e cruzes o suficiente para o resto de minha vida. Várias vidas, na verdade. Mas meu amigo me assegurou que ele não era católico e nem a maioria dos seus alunos, mas levava turmas lá todas as primaveras. E quando o fazia, mesmo o mais inquieto, distraído, testosteronado garoto californiano de 15 anos só tinha de passar três dias em silêncio e algo nele se acalmava e esclarecia. Ele se encontrava.
Pensei: "Qualquer coisa que dê certo para uma garoto de 15 anos há de funcionar comigo."Daí peguei o carro, e dirigi três horas para o norte pela costa, as estradas se tornavam vazias e estreitas, e daí entrei em um caminho ainda mais estreito, mal pavimentado, que serpenteava por 3 quilômetros até o topo de uma montanha. Quando saí do carro, o ar pulsava. O lugar todo era um silêncio absoluto, mas o silêncio não era a ausência de barulho. Na realidade era a presença de um tipo de energia ou movimento. E aos meus pés o plácido azul do oceano Pacífico. À minha volta 3,2 quilômetros quadrados de arbustos secos e selvagens. Fui para o cômodo no qual podia dormir. Pequeno mas bem confortável. tinha uma cama, uma cadeira de balanço, uma grande escrivaninha e uma janela panorâmica ainda maior dando para um jardim pequeno, particular e murado, e dai 400 metros de grama dourada dos pampas descendo até o mar. Sentei-me, e comecei a escrever, escrever, escrever, apesar de ter ido para lá para me livrar de minha escrivaninha.
Quando me levantei, tinham se passado quatro horas. Tinha caído a noite, e caminhei sob um céu estrelado e pude ver as lanternas traseiras dos carros desaparecendo 20 quilômetros ao sul. E realmente parecia que minhas preocupações do dia anterior tinham sumido.
No dia seguinte, quando acordei sem telefones, TVs e laptops, os dias pareciam se arrastar por milhares de horas. Era toda a liberdade que conheço de quando estou viajando, mas também senti profundamente como se chegasse em casa.
E não sou uma pessoa religiosa, portanto não ia à missa. Não pedi orientação aos monges. Só fazia caminhadas pela estrada do mosteiro e mandava cartões postais aos que amo. Olhava as nuvens, e fazia aquilo que é mais difícil para eu fazer normalmente, que é fazer nada.
Comecei a voltar a este lugar, e notei que estava fazendo meu trabalho mais importante lás ó por sentar-se quieto, e certamente tomando minhas decisões mais críticas de um modo que nunca pude quando estava correndo do último e-mail para o próximo compromisso.
Comecei a pensar que algo em mim estava gritando pela quietude, mas claro eu não podia escutá-la, pois estava correndo tanto. Eu era como um cara louco que coloca uma venda nos olhos e reclama que não pode ver nada. E refleti sobre aquela frase maravilhosa de Sêneca que aprendi quando menino, que diz: "Pobre não é aquele que tem pouco, mas antes aquele que muito deseja."
E, claro, não estou sugerindo que ninguém aqui entre em um mosteiro. Não é este o ponto. Mas realmente acho que é só parando o movimento que você pode ver para onde ir. E é só saindo da rotina e do mundo que você pode ver o que realmente lhe importa e encontre um lar. Notei que muitas pessoas agora tomam medidas de consciência de sentar-se em silêncio por 30 minutos toda as manhãs só para se centrar em um canto do cômodo sem seus aparelhos, ou correr todas as tardinhas, ou deixar seu celular para trás quando batem um longo papo com um amigo.
Movimento é um privilégio fantástico, e permite-nos fazer muito do que nossos avós nunca teriam pensado em fazer. Mas movimento, no final, só tem um significado se você tem um lar para retornar. E lar, afinal, claro que não é só o lugar em que você dorme. É o lugar em que você está.
Obrigado."
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247