Medo. Um inimigo necessário
Uma das emoções mais antigas armazenadas na memória humana, o medo se destinava a levar nossos ancestrais a uma decisão sobre o perigo iminente: lutar ou fugir. O desenvolvimento da civilização e a complexidade progressiva das relações humanas, porém, trouxeram novos e problemáticos componentes a esse sistema, responsáveis por numerosas doenças contemporâneas.
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Por Eduardo Araia
O que um carioca das favelas do Complexo do Alemão tem em comum com um iraquiano de Bagdá, um palestino da Faixa de Gaza ou um israelense que vive próximo a ela? Para quem está minimamente informado, a resposta não é difícil: todos vivem com medo.
A morte não manda aviso, diz o ditado, mas, nos casos desses grupos, a sensação de que a vida sempre pode ser abreviada parece ficar mais premente a cada dia. Nesses lugares, atividades cotidianas como ir à escola, ao mercado ou ao trabalho podem significar o fim. Às vezes, nem é necessário sair: como vemos constantemente pela televisão, tiros e explosões invadem os domicílios e consumam ali mesmo, no recesso do lar, seu objetivo macabro.
Nos últimos tempos, o medo tem avançado para um lugar de destaque em todo o planeta. O risco à integridade física já não impera só nos países com lutas internas, nas nações em conflito, nas periferias abandonadas das grandes cidades ou nos lugares ameaçados por catástrofes naturais; ele tem penetrado em redutos cuja segurança antes se imaginava inabalável. Há duas décadas, quem poderia imaginar, por exemplo, que um passeio por Nova York poderia ser marcado pelos choques de dois Boeings contra os prédios mais altos da cidade? Ou que uma viagem pelos metrôs de Tóquio, Londres ou Madri significaria o risco de ser envenenado por gás ou atingido por explosivos?
Viver em um constante estado de medo é uma experiência que beira o insuportável, como se vê pelas declarações de pessoas comuns envolvidas nessas situações-limite. Suprimir o medo, porém, é uma tarefa impossível – e, a julgar pela neurociência, indesejável. Desde a sua remota origem, ele tem sido um instrumento indispensável para a sobrevivência da raça.
Velho conhecido
Tão antigo quanto outras emoções primárias, como a alegria, a raiva e a mágoa, o medo está relacionado a sensações trazidas à tona por perigos tangíveis e reais. É, por exemplo, o caso de ser ameaçado por um animal predador, um incêndio ou uma onda gigantesca. O neurocientista Joseph Le Doux descobriu uma via neuronal sob o córtex consciente que liga, por meio do hipocampo, as informações reunidas pela percepção às estruturas cerebrais relacionadas a reações de medo. Esse “sistema de alarme” era perfeito para as necessidades de nossos ancestrais: uma vez acionada a sensação de medo no cérebro, duas alternativas se impunham – ficar e lutar ou fugir.
Hoje, considera-se que o medo pode ser causado por exposição a situações traumáticas, observação da postura física de outras pessoas demonstrando medo ou a descrição (visual, sonora ou até mesmo escrita) de uma informação ameaçadora. A exposição repetida ou prolongada a ele, como a vivida por moradores de regiões de conflito constante, pode levar a distúrbios caracterizados pela ansiedade duradoura e outros problemas emocionais. Chogyam Trungpa, um dos primeiros mestres do budismo tibetano a vir para o Ocidente, sintetizou assim esse quadro, no ensaio “O medo e a ausência do medo”:
“O medo pode assumir muitas formas. De fato, sabemos que não podemos viver para sempre. Sabemos que vamos morrer, por isso temos medo. Ficamos petrificados com a morte. Em outro nível, ficamos com medo de não conseguir fazer frente às exigências que o mundo nos faz. Esse medo se manifesta como um sentimento de inadequação. Sentimos que a carga da nossa existência é muito pesada e, ao nos confrontarmos com o resto do mundo, ela parece mais pesada ainda. Então há um medo inesperado, ou pânico, que surge quando novas situações acontecem de repente em nossa vida.”
O medo faz companhia ao ser humano desde muito cedo: aparece pela primeira vez por volta dos sete meses de idade. As crianças pequenas geralmente têm mais temores do que as pessoas mais velhas, os quais são vivenciados de modo mais intenso (curiosamente, pesquisas revelaram que os filhos do meio experimentam menos temores do que os mais velhos ou os caçulas). Os estudiosos não chegaram a um acordo a respeito de quanto o medo é inato ou aprendido. Para os behavioristas, ele é amplamente aprendido.
Certos medos inatos, como os relacionados a barulhos fortes, dores e ferimentos, parecem ser universais. Medos inatos ligados a espécies específicas também já foram documentados, incluindo-se o temor de formas semelhantes a falcões em certos animais e o medo de cobras em humanos e outros primatas.
O organismo sob pressão
O medo desencadeia uma série de mudanças fisiológicas, a cargo do sistema nervoso autônomo e das glândulas suprarrenais. Essas alterações incluem aumento dos batimentos cardíacos, respiração acelerada, tensão ou tremor muscular, sudorese e secura da boca. O sangue é subitamente desviado de outras partes do corpo para áreas nas quais a energia é mais necessária, tanto para fugir do perigo quanto para proteger-se.
Esse desvio do excesso de sangue do córtex cerebral também pode causar desfalecimento – o que, em certos animais, pode servir para protegê-los de predadores.
Quando uma pessoa se defronta com perigos reais, o medo pode ser um importante meio de autopreservação. Mas, ao longo da civilização, e com a progressiva complexidade das relações humanas, algo foi se distorcendo em todo esse processo. Ganhou força a ansiedade, que tende a exagerar a proporção da verdadeira ameaça ou do perigo corrido. Assim, o homem moderno convive com uma série de medos crônicos e irrealistas, inimagináveis no passado – e sua resposta a essas situações frequentemente descamba para o desequilíbrio e a doença.
Vencer o medo não é tarefa simples. Os budistas mostram que o caminho não é ignorá-lo, como imaginam os corajosos de plantão, nem fugir dele, pela rota fácil das distrações ou das drogas, mas vivenciá-lo, conhecê-lo – e, assim, ter uma noção verdadeira do que é a ausência de medo.
A esse respeito, Chogyam Trungpa observa no texto citado que a verdadeira ausência do medo não é a sua supressão, “mas sim o ato de ir além dele, superá-lo”. Esse caminho, que começa pelo exame do nosso medo – nossa ansiedade, nervosismo, preocupação e inquietação –, mostra que muito desses problemas deriva de um conflito ilusório em relação a outras pessoas.
Ao desenvolvermos nossos sentimentos de compaixão, bondade e amor, a comunicação com as outras pessoas, fica mais fácil entendê-las, descobrir que elas e nós somos iguais e comunicar-se com elas. Segundo o Dalai Lama, o líder máximo do budismo tibetano, isso nos confere um espírito de amizade – “então, há menos necessidade de esconder as coisas e, em consequência, sentimentos de medo, dúvida e insegurança se dispersam automaticamente”.
Essa trajetória – endossada, em linhas gerais, por outras correntes de pensamento – é ambiciosa, e ainda não encontraríamos muitas pessoas dispostas a percorrê-la por vontade própria. Alguém imagina um morador de uma favela carioca esforçando-se para atingir tal estágio de desenvolvimento interior em meio à guerra polícia x tráfico? Até chegar lá, é mais prático procurar o tratamento psicológico, que – em alguns casos, associado a remédios – serve para desfazer os sintomas mais incômodos. Mas, conforme a desarmonia na sociedade e entre povos dá sinais de avanço, vai-se tornando cada vez mais inevitável lidar a fundo com o medo.
Um sistema desatualizado
A versão do medo formatada originariamente por nossos ancestrais está longe de atender às necessidades contemporâneas. “Há muitas pesquisas recentes que mostram que as pessoas estão intuitivamente propensas a temer as coisas erradas”, disse David Myers, professor de psicologia no Hope College e autor de Intuition: Its Powers and Perils, à revista American Psychological Society Observer, ao analisar os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova York.
“Tememos o que leva nossa vida de imediato, e por isso tendemos a não ter medo de fumar, um ato cujo efeito surge depois de um longo período de tempo”, observou Myers. “Tememos coisas que não podemos controlar, e desse modo temos mais medo de aviões, nos quais estamos ‘desamparados’, do que de dirigir um carro, no qual estamos ‘no controle’.”
Sabe-se, estatisticamente, que o avião é o meio mais seguro de viajar, mas esses dados não influenciam a maioria das pessoas, ressaltou o professor. “Tememos o que está vividamente disponível em nossa memória, e assim as formas dramáticas de morte que têm imagens muito reais e duradouras no arquivo mental – tais como as dos aviões se chocando contra as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 – encontram uma forma de dirigir a nossa mente. Estamos cientes das estatísticas, no entanto elas não nos afetam tanto quanto as imagens vívidas.”
Baseado em suas conclusões, Myers predisse que, logo após o dia 11 de setembro, o movimento de passageiros nos aviões cairia 20% e os que desistiram de voar dirigiriam seus carros por distâncias 50% maiores do que as habituais – o que resultaria em centenas de mortes adicionais nas estradas. Infelizmente, a previsão se confirmou.
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