Legalizar as drogas. Portugal dá o exemplo no combate ao narcotráfico
Da Europa aos EUA alerta-se que a "guerra à droga", lançada por Nixon em 1971, não apenas não impediu o aumento do consumo como fortaleceu os cartéis. Nos últimos anos, a estratégia mundial de combate à droga baseou-se na militarização do combate ao narcotráfico. Tornou-se evidente que esta abordagem fez mais mal do que bem. Portugal é o exemplo mais bem sucedido de legalização da droga.
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Por: Dan Baum. Fonte: Harper’s Magazine, Nova York
Em 1994, John Ehrlichman, um dos protagonistas do escândalo Watergate (*) revelou-me um dos grandes mistérios da história moderna: como enveredaram os EUA pela proibição de estupefacientes, daí resultando tanto sofrimento e tão poucos resultados?
A América criminaliza as substâncias psicoativas desde a lei de 1875 que proibiu o ópio nas casas de fumo de São Francisco, mas foi o chefe de Ehrlichman, o Presidente republicano Richard Nixon, o primeiro a declarar guerra à droga, lançando o país numa via de repressão contraproducente que ainda hoje se mantém.
Encontrei Ehrlichman, ex-conselheiro de Nixon para os assuntos internos, numa empresa de engenharia de Atlanta, onde trabalha no recrutamento de minorias étnicas. Mal o reconheci. Engordou desde o Watergate e exibe uma barba de lenhador. Respondeu às minhas perguntas iniciais com alguma indiferença: “Quer mesmo saber o que aconteceu?” Disse isto com o ar de quem, depois de ter conhecido o opróbrio e a prisão, já nada tem a perder.
“Nixon tinha dois inimigos: a esquerda pacifista e os negros. Sabíamos que não podíamos perseguir nem as pessoas que se manifestavam contra a guerra do Vietnã nem os negros. Mas quando conseguimos que os cidadãos associassem os hippies à marijuana e os negros à heroína, e os apresentamos como perigosos delinquentes, foi possível desestabilizar essas comunidades, deter dirigentes, fazer buscas domiciliárias, interromper as reuniões, denegri-los sistematicamente nos telejornais. Sabíamos que estávamos mentindo quanto à relação desses grupos com as drogas. Claro que sabíamos."
A invenção da guerra à droga foi uma cínica manobra de Nixon, mas, desde então, todos os Presidentes, republicanos ou democratas, a mantiveram, embora por razões diversas. Não é possível ignorar o colossal custo dessa guerra: milhões de dólares desperdiçados, um banho de sangue na América Latina, assim como em algumas ruas de cidades americanas, e milhões de vidas destruídas por penas draconianas de prisão.
Já, em 1949, o jornalista H.L. Mencken tinha identificado, nos americanos, “o medo, a raiar a obsessão, de que alguém pudesse ser feliz", formulação que responde à nossa necessidade puritana de criminalizar a tendência do ser humano para aspirar a uma vida melhor. A procura de estados de consciência alterados criou um mercado; ao reprimir esse mercado criamos novos gangsters: dealers, vadios, contrabandistas, assassinos... A dependência de drogas, sendo terrível, é rara. Aquilo que mais tememos - violência, overdoses, criminalidade - deriva da proibição e não das drogas em si. E, aqui, nunca poderemos ganhar.
Está na hora de mudar. Estão em curso, nos EUA e em outros países, alternativas à proibição pura e dura. Há 23 estados, a que se junta o distrito federal de Columbia (que inclui Washington), que autorizam a marijuana para fins terapêuticos e outros quatro - Colorado, Washington, Oregon e Alasca - legalizaram a cannabis (maconha). No Arizona, Califórnia, Maine, Massachusetts e Nevada deverão ocorrer referendos em novembro. No Vermont, os viciados em heroína podem evitar a prisão se aceitarem seguir um tratamento financiado pelo Estado. Na Europa, Portugal descriminalizou a cannabis. a cocaína, a heroína e outros estupefacientes. Em 2014, o Canadá lançou, em Vancouver, um projeto piloto que permite que os médicos receitem aos toxico-dependentes heroína farmacêutica. Na Suíça. Existe um programa semelhante e, no Reino Unido, a Comissão dos Assuntos internos da Câmara dos Comuns aprovou uma recomendação nesse sentido. Em julho de 2015, o Chile adotou um projeto lei de legalização do uso terapêutico e recreativa da cannabis, autorizando os particulares a cultivarem um máximo de seis plantas em suas casas.
Meio século de guerra
"Quando travamos uma guerra durante 47 anos e não vencemos é preciso pensar em outras soluções", declarou o Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos à BBC, em dezembro último, imediatamente antes de assinar um decreto de legalização da cannabis para fins médicos. Em novembro, o Supremo Tribunal do México considerou inconstitucional a proibição do consumo de marijuana por se imiscuir “na esfera individual" e violar o direito "à dignidade" e "ao livre desenvolvimento do indivíduo". O Supremo Tribunal Federal Brasileiro poderá seguir o exemplo.
A ideia de legalizar a droga pode convencer tanto os conservadores que, por principio, desconfiam do excesso de intervenção governamental e do desrespeito da liberdade individual - como os progressistas, chocados com as prerrogativas da polícia, a violência na América Latina e a criminalização de gerações inteiras de negros. Vai ser necessária muita coragem para alargar o debate à legalização de todas as drogas, mas não será tão difícil como pensam alguns responsáveis políticos.
Entre 19 e 21 de abril, a Assembleia-Geral da ONU realizou a primeira sessão extraordinária sobre o tema desde 1998, na altura convocada com o lema: " É possível um mundo sem drogas ?". Muitos países já não acreditam em medidas puramente repressivas. Esta mudança tornou- se patente em 2012, na Conferência das Américas de Cartagena das Índias (Colômbia), onde, pela primeira vez, dirigentes da América Latina questionaram se a legalização e regulamentação das drogas não seriam uma abordagem mais adequada ao Hemisfério Sul. A Assembleia-Geral ocorreu numa altura em que quatro estados e a própria capital dos EUA, inimigo número 1 da droga, terem legalizado a marijuana.
"Há um dado novo: Washington já não pode aplicar no país aquilo que defende no estrangeiro", frisa um membro do Órgão Internacional de Controle dos Estupefacientes (OICS), que vela pelo respeito das orientações da ONU.
Legalizar, mas com prudência
No momento em que entrevemos o fim, ainda ontem impensável, da guerra contra a droga, façamos avançar o debate do porquê para o como. Para tirar o máximo de benefícios da legalização, não basta declarar que as drogas passam a ser lícitas. Há riscos colossais. Entre 2001 e 2014, os EUA registaram um aumento de 500% de mortes por overdose de heroína e de 300 % de óbitos atribuídos a medicamentos vendidos com receita médica (sobretudo analgésicos opiáceos). Isto demonstra a nossa incapacidade para gerir a utilização de opioides, proibidos ou regulamentados. Uma progressão significativa das dependências ou das overdoses na sequência da legalização das drogas seria uma catástrofe a nível da saúde e poderia convencer a comunidade internacional a regressar à era da proibição da qual, finalmente, estamos saindo.
Para minimizar riscos, é preciso encontrar sistemas mais eficazes de regulação da venda, normalização, inspeção, distribuição e tributação das drogas perigosas. Há um milhão de possibilidades e talvez de início não tomemos as decisões mais acertadas. Mas podemos nos basear no desmantelamento da Lei Seca nos anos 30.
Mark Kleiman, professor de Políticas Públicas na Universidade de Nova lorque e crítico da guerra à droga desde os anos 70, explica que, caso a cocaína fosse legalizada, nada demonstra que o número de cocainômanos nos EUA viesse a ser inferior ao número de alcoólicas: 17,6 milhões de pessoas. E acrescenta que a legalização da cocaína poderia agravar a dependência tanto de cocaína como do álcool: "O problema do álcool é que dá sono, mas a cocaína dá uma chicotada. O problema da cocaína é que tira o sono, mas o álcool compensa esse efeito". Assim, o previsível enorme aumento das taxas de dependência parece plausível.
Mas não é forçoso que assim seja. Os Países Baixos descriminalizaram oficialmente o consumo e a posse de cannabis em 1976, e pouco depois a Austrália, a República Checa, a Itália, a Alemanha e o estado de Nova York seguiram o exemplo. Em nenhum caso, a cannabis levantou problemas significativos de saúde ou segurança. No entanto, como a cannabis é uma droga leve que não provoca grande dependência física, o desafio estava ganho desde o início.
A experiência portuguesa
Portugal, em 2001, decidiu descriminalizar não só a cannabis mas também a cocaína, a heroína e praticamente todas as outras drogas. Tecnicamente, as drogas continuam a ser proibidas e a venda é considerada crime, mas a aquisição, consumo e posse de uma quantidade máxima equivalente a dez dias de consumo próprio são, quando muito, penalizados com admoestação. Nenhum outro país foi tão longe e os resultados são surpreendentes. A vaga de turistas de droga que alguns temiam nunca se verificou. O consumo dos adolescentes portugueses aumentou numa primeira fase, antes e após a descriminalização, mas depois estabilizou, quando o efeito novidade se esbateu.
Também o consumo regular de drogas pesadas regrediu após a descriminalização, tendo passado de 7,6% para 6,8%. Comparemos estes números com os da Itália, que não descriminalizou e onde as taxas passaram de 6% para 8,6% no mesmo período. Como os toxicodependentes portugueses podem obter seringas descartáveis, a descriminalização parece ter reduzido consideravelmente o número de contaminações com HIV (267 ocorrências em 2008, contra 907 em 2000). Finalmente, a nova legislação portuguesa teve um efeito notável na população prisional. 0 número de detidos por delitos relacionados com drogas diminuiu mais da metade e, hoje, representa apenas 21% dos presos. Mas se seguirmos as lições de Portugal, teremos de recordar que, antes de conceder livre acesso a drogas perigosas, as autoridades previram estruturas de apoio aos toxicodependentes. Investiram em programas médicos. Existem comissões de dissuasão, compostas por um médico, um assistente social e um jurista, que podem intervir do ponto de vista terapêutico e, se necessário. impor uma multa relativamente modesta.
A experiência portuguesa não nasceu de um dia para o outro: desde os anos 70, o país vem investindo nos serviços sociais e criou, no fim dos anos 90, a renda mínima garantida. A rápida expansão do Estado-providência contribuiu sem dúvida para os graves problemas econômicos do país, mas ajudou a reduzir casos graves de toxicodependência. A descriminalização teve tanto sucesso em Portugal que ninguém coloca a hipótese de se voltar atrás.
Reprimir o tráfico ou o consumo?
Partindo destes ensinamentos, por que os Estados Unidos, por exemplo, não consideram a via da descriminalização? A ideia é brilhante: deixar em paz os pequenos consumidores inofensivos e os drogados e concentrar a repressão no tráfico. No entanto, não basta descriminalizar. Embora a experiência portuguesa tenha sido coroada de êxito, Lisboa não controla, nem o grau de pureza das drogas nem as doses e não arrecada um centavo em receitas fiscais da venda dos estupefacientes. Os circuitos de abastecimento e distribuição continuam nas mãos do crime organizado e continuam a verificar-se atos de violência relacionados com droga, corrupção e repressão. O efeito da descriminalização das drogas na criminalidade não é evidente. Alguns delitos mais ligados ao consumo de drogas aumentaram depois da descriminalização – 66% para os delitos leves como bater carteiras e arrebatar objetos como bolsas e celulares, 15% para os roubos de viaturas -, enquanto outros diminuíram (os assaltos a residências caíram 8% e a lojas l0%.) Um estudo da polícia portuguesa revelou um aumento dos delitos de oportunidade e uma redução dos crimes premeditados e violentos, mas ainda não tirou conclusões quanto a uma eventual ligação à descriminalização das drogas.
O modelo português de descriminalização, no entanto, possivelmente não daria os mesmos resultados nos Estados Unidos porque Portugal é um país pequeno, com legislação e forças policiais nacionais, enquanto os EUA são um mosaico de jurisdições. Para já, a administração Obama decidiu não se imiscuir nos assuntos dos estados que legalizaram a cannabis, mas o tempo passa e os governos mudam. Não conseguiremos beneficiar dos efeitos de uma abordagem sanitária em vez de judiciária enquanto os estupefacientes não tiverem sido legalizados em todos os níveis da jurisprudência americana, assim como o álcool foi legalizado em 1933, após a revogação da 18o emenda da Constituição (Lei Seca).
Um dos flagelos que conduziram à Lei Seca foi o sistema de tied houses, lojas de bebidas alcoólicas que pertenciam a fábricas de cerveja ou destilarias que comercializavam os seus produtos de forma agressiva. Quando a Lei Seca já estava no fim, o filantropo John D. Rockefeller Jr encomendou um relatório que aconselhava um controle governamental total da cadeia de distribuição de álcool. Claro que isso nunca aconteceu. As tied houses foram proibidas mas a destilaria Seagram, a fábrica de cerveja Anheuser- Busch e outras empresas enriqueceram graças à fabricação e à venda do álcool.
Estudar o exemplo da Lei Seca
Nós nos habituamos a viver com as consequências do álcool legalizado, embora o álcool saia caríssimo ao país em termos de mortalidade e de perda de receita fiscal. Mas hoje ninguém defenderia o regresso à proibição, em parte porque o setor dos vinhos e bebidas alcoólicas é muito lucrativo e poderoso. Os binge drinkers (20% da população norte-americana) consomem mais de metade do álcool vendido no país.
Somos, portanto, forçados a reconhecer que, apesar das boas intenções dos apelos a um “consumo responsável", todo o setor se assenta sobre bebedores irresponsáveis, enquanto simultaneamente a influência do lobby do álcool mantém os impostos baixos.
Segundo Keliman, os impostos sobre o álcool representam 10 centavos de dólar por copo, enquanto o custo do alcoolismo para a sociedade em termos de doenças, acidentes rodoviários e violência em geral é cerca de 15 vezes superior. Será necessário gerir a legalização das drogas melhor do que a legalização do álcool se queremos limitar a tóxicodependência, impedir as crianças de aceder à droga, garantir substâncias o mais puras possível, controlar as doses e limitar a condução de veículos sob o efeito de estupefacientes.
Se conseguirmos mobilizar a vontade política temos de estabelecer, desde logo, um monopólio da distribuição de drogas, antes que o gênio saia da garrafa. Suíça, Alemanha e Países Baixos conseguiram disponibilizar heroína aos toxicodependentes através de redes de dispensários públicos sem fins lucrativos. As vantagens de um monopólio estatal sobre um mercado liberalizado, mesmo regulamentado, seriam enormes. Quase todos os que se debruçaram seriamente sobre o fim da proibição das drogas concordam que um dos primeiros objetivos seria desencorajar o consumo. Isso pode ser feito, pelo menos em parte, no âmbito de um sistema de lojas regulamentadas, através de campanhas de publicidade e promoção enquadradas; proibindo a venda a menores; fixando distâncias mínimas obrigatórias entre os locais de venda e as escolas; regulamentando a dosagem e a pureza das substâncias; limitando o número de locais de venda e horas de abertura.
Porém, num sistema comercial a única forma de o estado influenciar os preços - primeiro fator de dissuasão - reside na tributação dos produtos. O mais difícil é estabelecer o montante da taxa. Quais os critérios para fixá-lo? Os impostos federais sobre vinhos e bebidas alcoólicas são calculados em função do teor em álcool, mas é impossível medir o teor de THC [tetra hidrocanabinol] de cada tipo de cannabis.
Com base no peso? Correríamos o risco de promover a aquisição de drogas duras, pois quanto mais forte é uma droga, menos se compra. Com base no preço de venda? Os preços das substâncias legalizadas podem cair subitamente, já que os dealers não poderão continuar a beneficiar do “prêmio de risco da atividade”, vai nascer a concorrência e a inovação fará aumentar a produção. Para manter os preços a um nível suficientemente elevado que desencoraje o consumo, os legisladores terão de controlar permanentemente os preços e os políticos terão que arriscar a sua reeleição ao defender aumentos fiscais impopulares do ponto de vista político. Impostos demasiado elevados, pelo contrário, poderiam dar alento a um mercado paralelo, cujo produto escaparia aos impostos.
Um monopólio estatal para a distribuição resolveria este problema, já que a fixação dos preços se tornaria uma questão administrativa e não legislativa. A produção de cannabis, cocaína e heroína poderia manter-se nas mãos de operadores privados e os produtores poderiam fornecer lojas do Estado, tal como as empresas Smirnoff, Coors e Mondavi fornecem as lojas de álcool controladas pelo estado. Se o custo de produção de determinada droga baixar devido à inovação ou à concorrência, aumentam os rendimentos da agencia governamental que a comercializar.
Paralelamente, é muito mais fácil o estado fixar a dosagem e o grau de pureza de produtos que vende em lojas próprias, do que controlar as de produtos distribuídos num mercado liberalizado. O governo poderia então regulamentar a publicidade, a atratividade da embalagem e a comunicação.
Mais receita para o estado
Por fim, quando o Estado detém um monopólio, os lucros entram nos cofres do estado e não nos bolsos de acionistas privados. O fato de o Estado retirar lucros de um produto cujo consumo tenta desencorajar pode parecer hipócrita, mas, na verdade, é o que se passa atualmente com o tabaco, o álcool e os jogos de azar. Normalmente, os estados compensam o lado imoral desses lucros, aplicando-os na educação ou em outros programas sociais. No caso das drogas, as receitas poderiam servir para financiar o tratamento dos toxicodependentes.
No entanto, enquanto a legislação federal americana continuar a proibir formalmente a cannabis, a cocaína ou a heroína, e a impor restrições severas às meta-anfetaminas, é difícil imaginar um monopólio estatal sobre o comércio da droga copiado do modelo das lojas de álcool. Mesmo que levantassem a proibição das substâncias inscritas no Anexo I da lei americana sobre substâncias controladas, estariam os legisladores dispostos a legalizá-las e, sobretudo, a desenvolver estruturas governamentais para as distribuir comercialmente?
Enquanto o Congresso americano não tiver requalificado a cannabis, a heroína e a cocaína, teremos de nos contentar com uma solução menos ruim: experiências a nível dos estados que contornam a proibição federal da cannabis e confiam a exploração comercial a indústrias privadas.
O estado do Colorado é o que foi mais longe nesta matéria e a sua experiência permite tirar muitos ensinamentos. Desde 2000, autoriza a cannabis para uso terapêutico, distribuída através de um sistema de dispensários privados autorizados. Inicialmente, tinha exigido uma integração vertical do mercado de cannabis: os dispensários apenas poderiam vender as plantas que cultivassem, o que, em teoria, iria facilitar a regulação do mercado, “da planta ao consumidor". Depois, em novembro de 2012, 55% dos eleitores aprovaram a emenda 64 da Constituição do Colorado que legalizava a cannabis para uso recreativo.
A partir dai, em vez de impor o seu monopólio, o estado preferiu estabelecer uma rede de estabelecimentos autorizados. Em 2014, renunciou também à exigência de integração vertical. Cinco semanas após o referendo de 2012, os cidadãos do Colorado maiores de 21 anos podiam possuir e consumir cannabis legalmente. Mas os varejistastas e produtores só foram autorizados a operar a partir de janeiro de 2014, ou seja, 14 meses depois do referendo. O prazo visava permitir que o estado tivesse tempo para criar um serviço de controle da cannabis (dependente das Finanças) e integrar a cannabis na legislação de venda a varejo e que o referido serviço redigisse as normas relativas à sinalização, publicidade, tratamento de resíduos, vídeo vigilância, rotulagem, tributação e distância entre locais de venda e escolas.
No Colorado, a economia da cannabis legal começa a assemelhar-se à do álcool: os fumadores quotidianos são apenas 23% dos utilizadores, mas consomem 67% da produção. Talvez as proporções fossem as mesmas quando a marijuana era ilegal e, provavelmente, o número de fumadores diários manteve-se. Nunca saberemos. Em compensação, sabe-se que o mercado da cannabis, tal como o do álcool, tem a sua base nos grandes consumidores.
É igualmente difícil avaliar o impacto da legalização na criminalidade. Esta diminuiu perto de 2% em Denver em 2014, primeiro ano em que a marijuana foi plenamente legalizada. Curiosamente, sondagens efetuadas junto de 40 mil adolescentes antes e depois da legalização mostraram que, por um lado, menos jovens consideram a marijuana perigosa - como previam os oponentes da legalização -, mas menos jovens fumam baseados. Estarão mentindo? Será uma anomalia estatística? Ou será que o fim da proibição fez a marijuana perder um pouco do seu atrativo?
Apesar de tudo, houve falhas no Colorado. Os 14 meses de diferença entre o referendo e a abertura dos locais de venda não bastaram para elaborar a legislação sobre aspectos como o uso de pesticidas pelos produtores ou as dosagens nos produtos alimentares à base de cannabis. As autoridades também não tiveram tempo de elaborar as novas orientações para a polícia, que não sabia bem como atuar quando se deparava com quantidades de marijuana elevadas.
Houve quem fizesse ligações elétricas em série para alimentar plantações domésticas e ateasse fogo à casa toda. E, em Denver, houve uma onda de assaltos e roubos a estufas e a locais de venda de cannabis.
A lei dá às jurisdições locais liberdade para autorizarem ou não os locais de venda a varejo. Inicialmente, apenas 35 condados do Colorado o fizeram, o que explica que a nova receita fiscal desse estado nos seis meses que se seguiram à legalização fosse de apenas 12 milhões de dólares, ou seja, um terço do esperado. É também possível que, ao fixar o imposto sobre a cannabis no varejo em 10%, acima do imposto normal, o estado tenha elevado muito a meta.
Parece que alguns consumidores continuam a se abastecer no mercado negro, muitas vezes mais barato. Ainda assim, em 2015, o Colorado arrecadou quase 135 milhões de dólares de imposto sobre a marijuana.
Um novo setor econômico
Reprimir as plantações não autorizadas e dar formação especial à polícia foi relativamente fácil. Mais difícil será impedir as grandes empresas de açambarcar o mercado e viciar as cartas. Embora a legalização se limite, para já, a quatro estados e ao distrito federal de Columbia e a cannabis terapêutica seja autorizada apenas em 23 estados, a produção legal já tem um peso de 5,4 mil milhões de dólares. A revista Forbes publicou uma lista das “oito empresas de cannabis mais cotadas na Bolsa”: inclui empresas de biotecnologias, fabricantes de distribuidores automáticos especializados e de vaporizadores que permitem inalar sem engolir alcatrão ou sem combustão.
O próprio Wall Street Journal já apresenta a cannabis como um investimento sério. Os cidadãos dos estados americanos que legalizaram a marijuana puseram em marcha uma máquina mais potente do que pensavam. “Sem proibir a cannabis o governo não pode continuar a sua guerra contra a droga", repete lra Glasser, que dirigiu a União Americana das Liberdades Civis entre 1978 e 2001. “Tirando a cannabis, o consumo de drogas é mínimo e não se justificam as despesas policiais e judiciárias para os outros estupefacientes, cujo consumo é ridiculamente reduzido. Sempre pensei que, se cortássemos a esta hidra a sua cabeça, ou seja, a marijuana (maconha), a guerra contra a droga deixaria de fazer sentido."
Quando pensamos (nós, habitantes do Colorado) na marijuana legal, sentimos a satisfação de termos sido dos primeiros a fazer algo inteligente. Estamos tão divididos como os outros no que diz respeito à imigração, armas de fogo e alterações climáticas, mas a nossa polícia já não perde tempo perseguindo quem está a fumar um baseado.
Mesmo que as receitas fiscais da cannabis - afetadas as escolas públicas - não sejam tão elevadas como esperávamos, o estado ganha com um produto que, antes, lhe custava tão caro. A marijuana já faz parte dos hábitos das pessoas. E não compreendemos quando vemos os outros estados insistindo em considerá-la uma ameaça para o público. Falei com muitas pessoas, nos Estados Unidos e no exterior, e não encontrei ninguém que defenda locais de venda de heroína, cocaína ou meta-anfetaminas semelhantes aos pontos de venda de cannabis no Colorado.
A maioria dos especialistas pensa que, embora não passando pelo monopólio estatal, a distribuição de drogas duras devia ser sujeita a algum enquadramento. Uma rede de conselheiros, que não seriam obrigatoriamente médicos, controlaria o papel de determinada droga na vida das pessoas.
Quando Mark Kleiinan pensa na legalização da cocaína imagina, por exemplo, que os consumidores poderiam estabelecer a própria dose. “As pessoas poderiam decidir aumentar a dose através de um procedimento administrativo ou consultar alguém para controlar a sua dependência. Assim poderíamos privilegiar a saúde a longo prazo e não nos atermos ao imediato."
Eric Sterling, diretor executivo da Criminal Justice Policy Foundation, uma associação anti-proibição, imagina um sistema semelhante. “A alguém que dissesse: ‘Quero cocaína porque estimula a minha criatividade', ou 'Quero cocaína para ter orgasmos mais intensos', poderíamos responder : 'Por que é que você não tem energia? Pratica esportes?’, ou: “Que outros fatores podem estar afetando a sua vida sexual?”
Sterling sugere que as pessoas que queiram experimentar LSD ou outras substâncias psicodélicas poderiam dirigir-se a acompanhantes especializados que, como os guias de montanha, receberiam formação, seriam pagos e teriam seguro para conduzir o neófito através de um território potencialmente perigoso.
Os viciados em cocaína, heroína ou alucinógenos poderiam não aderir e continuar no mercado negro. Mas como salienta Sterling, esta atitude comporta riscos. “A vida do toxicodependente é uma via sacra: encontrar um traficante, negociar, encontrar um local para se injetar...” Se o sistema legal for bem concebido - se as drogas forem fiáveis e vendidas a preço razoável, se o procedimento não for muito pesado, se os impostos sobre o produto não forem demasiados -, os consumidores acabarão por preferir a legalidade ao mercado negro.
Será a concorrência e não a violência a vencer os criminosos que controlam a distribuição de drogas. “Criaremos um enquadramento adaptado ao consumo de drogas", conclui Sterling. Onde “os exageros e as ficções desaparecerão por si”.
(*) O escândalo Watergate foi um caso de espionagem política que levou à demissão do Presidente republicano Richard Nixon, em agosto de 1974.
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