Por: Sam Jones - Jornal The Guardian, Londres
Fonte: Site www.luispellegrini.com.br
O número de judeus britânicos que requereram passaporte português aumentou 80 vezes – de 5 para 400 – desde que o “Leave” (partir) venceu o “Remain” (ficar) no referendo sobre a União Europeia, em 2016. Para salvaguardar os seus futuros direitos na UE, eles esperam beneficiar de uma lei recente que dá cidadania aos descendentes dos sefarditas expulsos no final do século 15.
Para Portugal, o decreto-lei (em vigor desde fevereiro de 2015 depois de alterações na lei da nacionalidade de 1981) constitui “a reposição de um direito”. Para Espanha, que aprovou legislação no mesmo sentido, trata-se de uma tentativa de “corrigir um erro histórico”.
Há 500 anos, os judeus portugueses e espanhóis não foram apenas perseguidos e forçados ao exílio mas também obrigados pela inquisição a se converter ao catolicismo. Seriam queimados em praça pública se não o fizessem.
Dois judeus sefarditas do Panamá e um do Brasil foram os primeiros a se tornarem cidadãos portugueses, a 2 de outubro de 2015, ao abrigo da nova lei. Ela diz que “o Governo pode conceder a nacionalidade por naturalização, através da demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente sobrenomes, idioma familiar, descendência direta ou colateral.”
Ganhar cidadania portuguesa é, sobretudo, uma forma de lidar com a incerteza gerada pelo “Brexit”. Embora não haja números precisos, estima-se que milhares de judeus sefarditas vivam no Reino Unido.
Michael Rothwell, da direção da Comunidade Israelita do Porto (encarregado da certificação dos requerentes juntamente com a Comunidade de Lisboa), recebeu “apenas cinco pedidos” antes do referendo e “mais de 400” a partir de junho de 2016, apenas nos dois meses que se seguiram à votação.
“Acho que as pessoas estão nervosas e sentem que ter um passaporte da União Europeia pode ser uma vantagem, ainda que não estejam necessariamente com planos de se mudar para Portugal”, disse Rothwell. Ele declara não ter ficado nem um pouco surpreso: “Ter a cidadania de um país da UE pode ser vantajoso.
Nos arquivos da Comunidade Sefardita dos Espanhóis e Portugueses de Londres, a diretora-executiva, Alison Rosen, também informa que existe um número crescente dos que indagam sobre a sua ascendência portuguesa ou espanhola. “O aumento é superior a cem por cento”, salientou.
“Assim que o Brexit venceu, assistimos a um aumento muito significativo dos pedidos, e esse aumento ainda se mantém. No passado, era uma meia dúzia, talvez um pedido por mês. Agora é um fluxo constante, com vários pedidos por semana.”
Na Espanha, por enquanto, a subida existe mas não é tão acentuada como em Portugal, segundo a Federação das Comunidades Judaicas. Talvez porque os testes de língua exigidos pelo Governo de Madrid estejam empurrando os candidatos para a rota portuguesa.
O Reino Unido não figura entre os 10 principais países com candidaturas de judeus sefarditas entregues ao Governo espanhol. A lista é liderada pela Argentina, Israel, Venezuela. Estados Unidos e Canadá.
Gillie Traeger, auxiliar de educação, 45 anos, residente na área da Grande Londres, é uma das pessoas que pediram passaporte português. Para ela, a oferta de cidadania é um reconhecimento das suas raízes sefarditas e uma oportunidade de afirmação da sua identidade europeia, depois do “Brexit”.
Continuar europeu graças à lei lusa
“Entre os judeus da Inglaterra, existe um sentimento de orgulho por se pertencer a uma família judaica muito antiga”, afirma Gillie. “Historicamente, não me sinto apenas inglesa. Sinto que sou europeia e gostaria de continuar assim. Poder faze-lo é muito bom.”
Outro britânico descendente de judeus sefarditas, que pediu o anonimato, admitiu que a decisão de se candidatar à cidadania portuguesa é politica pragmática. “Assim que ouvi falar na lei portuguesa, disse para a minha mulher: ‘Se deixarmos a União Europeia, vou candidatar-me à cidadania portuguesa’. Estou de luto por causa do Brexit. Sou europeu, cosmopolita, e acho que todas as formas de nacionalismo são odiosas. Se olharmos para os séculos 19 e 20 e virmos o que o nacionalismo fez no mundo, isso não é uma coisa que nos deixe orgulhosos.”
Especialmente desagradável, no seu entender, foi a retórica dos debates entre os apoiadores do “Leave” e do “Remain”, marcada por ataques aos “odiosos estrangeiros”.
“O meu pedido de cidadania portuguesa é em parte simbólico”, acrescenta. “Tanto é um protesto como o reconhecimento de uma herança cultural. Mas tem também o lado prático de me permitir viajar pela Europa sem ter de apresentar um passaporte não europeu.”
Yoram Zara, advogado israelense que representa judeus sefarditas em todo o mundo, observa que as razões para o aumento das candidaturas são claras. “Estão habituados a fazer parte da União Europeia e a usufruir de todos os privilégios e direitos inerentes. Perante a incerteza sobre o que vai acontecer nos próximos anos, é mais seguro ter um passaporte europeu, caso se pretenda viver, trabalhar, estudar ou se aposenta na UE. Ter passaporte português não os prejudica e pode lhes dar coisas que um passaporte britânico deixará de assegurar.”
Sinagoga Bevis Marks em Londres, fundada em 1698 e historicamente ligada aos judeus portugueses e espanhóis.
Zara e Rothwell dizem que o interesse não se limita apenas ao Reino Unido. Ele também cresceu na Turquia, que acolheu muitos judeus sefarditas após a expulsão da Espanha e de Portugal.
Quinhentos anos depois, a comunidade judaica turca em declínio (cerca de 20 mil pessoas, a maioria residente em Istambul; chegou a ter 500 mil no período do império otomano) tem sido vítima de atentados (três israelitas foram mortos num atentado suicida em Istambul em março de 2016. Em 2002, seis tinham sido mortos em ataques de homens-bomba em duas sinagogas.
“Esta lei (em Portugal e na Espanha) surge num momento em que os judeus locais se sentem desconfortáveis com as tensões geradas pelas mudanças políticas na Turquia (onde o islamismo é cada vez mais a ideologia dominante)”, diz Rothwell, dirigente da Comunidade Israelita do Porto.
Insegurança na Turquia
“Há 500 anos, Espanha e Portugal expulsaram os judeus e o sultão (Bayazid II) otomano os recebeu, fazendo um excelente negócio. Os sefarditas viveram satisfatoriamente por lá durante 500 anos. Mas, agora, o ciclo parece fechar-se porque os judeus turcos não mais se sentem seguros, podendo ocorrer o processo inverso.”
Os judeus sefarditas da Turquia estão se candidatando às “centenas e milhares”, constata o advogado Yoram Zara. “Estão tão preocupados – e acho que os últimos meses provaram que existem razões para isso -,porque a situação na Turquia não é estável e talvez seja necessário ir embora, caso as coisas piorem”.
Apesar das palavras apaziguadoras de Madri e de Lisboa, alguns daqueles cujos antepassados foram perseguidos e retirados das suas casas não esquecem a injustiça de que foram vítimas os seus familiares.
“Para eles, pode ser uma oferta de reparação do mal causado, mas, para mim, representa parte da minha identidade cultural e patrimonial” , comentou Misty Kenney, que pediu a cidadania portuguesa antes mesmo da votação que levou ao Brexit. “Espanta- me que não tenham começado a fazer isto há mais anos. Se não fosse a Inquisição, talvez eu tivesse nascido em Portugal.”
(*) Info sobre a presença de sefarditas no Brasil e lista de sobrenomes brasileiros de origem judaica: http://www.coisasjudaicas.com/2010/04/sobrenomes-sefarditas.html
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