Jesus era judeu e moreno. A história de como ele se tornou um branco europeu
O Jesus bíblico era judeu da Galileia e, como tal, muito provavelmente teria pele escura, olhos castanhos e cabelos negros. Durante o Renascimento, ao redor do século 16, passou a ser cada vez mais representado com os traços de homem europeu, com pele clara e cabelos louros. Agora, na onda mundial das manifestações antirracismo, ativistas querem trazer de volta a imagem original do Cristo semita moreno.
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Por: Anna Swartwood House – Professora de história da arte na Universidade da Carolina do Sul, EUA.
Fonte: Site https://theconversation.com
A representação de Jesus como um homem branco e europeu passa por dura contestação neste momento em que as manifestações anti-racistas são cada vez mais fortes nas cidades americanas. Por outro lado, estudiosos examinam o legado do racismo na nossa sociedade, presente em mil e um detalhes sem que tenhamos consciência disso.
Ao mesmo tempo em que os manifestantes pedem a remoção das estátuas de figuras históricas de confederados considerados racistas e escravagistas, o ativista Shaun King vai além, sugerindo que murais e obras de arte representando um “Jesus branco” também devem ser removidos de seus pedestais.
Na pintura A Transfiguração de Jesus, de Rafael, Jesus surge louro e radiando luz no alto de uma montanha.
As inquietudes de Shaun King sobre a representação de Cristo e como ela é usada para sustentar noções de supremacia branca não são isoladas e únicas. Eruditos proeminentes e o próprio arcebispo de Canterbury pediram para se reconsiderar o retrato de Jesus como um homem branco de estampa europeia.
Como historiadora de arte do Renascimento Europeu, estudo a imagem em evolução de Jesus Cristo de 1350 a 1600. Algumas das representações mais conhecidas de Cristo, da “Última Ceia” de Leonardo da Vinci ao “Último Julgamento” de Michelangelo, na Capela Sistina, foram produzidas durante esse período.
Mas, nos Estados Unidos, a imagem mais reproduzida de todos os tempos de Jesus vem de outro período. É a “Cabeça de Cristo” de Warner Sallman, de cabelos claros, de 1940. Sallman, um ex-artista comercial que criou inúmeros trabalhos de arte para campanhas publicitárias, vendeu com sucesso essa imagem em todo o mundo.
“Cabeça de Cristo” (1940), de Warner Sallman
Por meio de parcerias de Sallman com duas editoras cristãs, uma protestante e a outra católica, a Cabeça de Cristo passou a ser incluída em tudo, desde cartões de oração a vitrais, pinturas a óleo falsas, calendários, hinários e até painéis de iluminação noturna. Essa pintura de Sallman marca o apogeu de uma longa tradição de europeus brancos criando e divulgando imagens de Cristo feitas à sua própria imagem e semelhança.
Em busca da santa face
O Jesus histórico muito provavelmente tinha os olhos castanhos e a pele morena da imensa maioria dos judeus do primeiro século na Galileia, uma região de Israel nos tempos bíblicos. Mas ninguém sabe exatamente como Jesus era. Não existe nenhuma imagem conhecida de Jesus, e, embora os reis Saul e David do Antigo Testamento sejam explicitamente chamados de altos e bonitos na Bíblia, há pouquíssima indicação da fisionomia de Jesus tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.
“O bom pastor”, Joseph Wilpert
Até mesmos esses textos são contraditórios: Isaías, o profeta do Antigo Testamento, diz que o futuro salvador “não teria beleza nem majestade”, enquanto o Livro dos Salmos afirma que ele era “mais justo do que os filhos dos homens”, a palavra “justo” aqui significando beleza física. As primeiras imagens de Jesus Cristo surgiram entre o primeiro e o terceiro século d.C., em meio a preocupações com a idolatria. Os primeiros retratistas cristãos estavam menos interessados em capturar a aparência real de Cristo do que em esclarecer seu papel como governante ou salvador. Para indicar claramente esses papéis, aqueles primeiros artistas cristãos costumavam confiar no sincretismo, o que significa que combinavam formatos visuais de outras culturas. Provavelmente a imagem sincrética mais popular é a de Cristo como o Bom Pastor, uma figura jovem e sem barba, bastante baseada nas representações pagãs de deuses e heróis como Orfeu, Hermes e Apolo.
Em outras representações comuns, Cristo usa a toga ou outros atributos do imperador. O teólogo Richard Viladesau argumenta que o Cristo barbudo e maduro, com cabelos longos no estilo “sírio”, combina características do deus grego Zeus e da figura de Sansão, personagem do Antigo Testamento, entre outras.
Cristo como autor de autorretratos
Os primeiros retratos de Cristo eram considerados autorretratos, tais como o da milagrosa “imagem não feita por mãos humanas”, ou acheiropoietos.
Acheiropoietos. Galeria Tretiakov, Moscou
Essa crença se originou no século 7 d.C., com base na lenda de que Cristo curou o rei Abgar de Edessa, na Turquia, através de uma imagem milagrosa de seu rosto, agora conhecido como Mandylion. Uma lenda semelhante adotada pelo cristianismo ocidental entre os séculos 11 e 14 conta como, antes de sua morte por crucificação, Cristo deixou uma impressão de seu rosto no véu de Santa Verônica, uma imagem conhecida como “Volto Santo” (Rosto Santo).
Cristo com coroa de espinhos. Artista: Antonello da Messina, atualmente no Metropolitan Museum de Nova York.
Essas duas imagens, juntamente com outras relíquias semelhantes, formaram a base de tradições iconográficas sobre a “imagem verdadeira” de Cristo. Do ponto de vista da história da arte, esses artefatos reforçavam uma imagem já padronizada de um Cristo barbudo, com cabelos escuros na altura dos ombros. No Renascimento, artistas europeus começaram a combinar o ícone e o retrato, fazendo Cristo à sua própria semelhança. Isso aconteceu por várias razões, e a primeira delas é a identificação com o sofrimento humano de Cristo.
Albrecht Dürer, autorretrato de Albrecht Dürer/Alte Pinakothek Collections
O pintor siciliano Antonello da Messina, do século 15, por exemplo, pintou pequenas imagens do sofrimento de Cristo, formatadas exatamente como retratos de pessoas comuns, gente que o artista encontrava pelas ruas no seu dia-a-dia, com o tema central do quadro posicionado entre um parapeito fictício e um fundo preto liso.
O artista alemão do século 16, Albrecht Dürer, obscureceu a linha entre a face sagrada e sua própria imagem em um famoso autorretrato de 1500. Para a obra, Dürer posou frontalmente como um ícone, com sua barba e cabelos na altura dos ombros, lembrando a imagem de Cristo. O monograma “AD” pode significar igualmente “Albrecht Dürer” ou “Anno Domini” – “no ano do Senhor”.
À imagem de quem?
Essa diversidade dos traços fisionômicos de Cristo não se restringiu à Europa: existem imagens dos séculos 16 e 17 de Jesus com, por exemplo, traços etíopes e indianos. Na Europa, no entanto, a imagem de um Cristo europeu de pele clara começou a influenciar outras partes do mundo através do comércio e da colonização europeus.
“Adoração dos Reis Magos”, artista Andrea Mantegna. Museu J. Paul Getty
A “Adoração dos Reis Magos”, do pintor italiano Andrea Mantegna, de 1505 d.C., apresenta três Reis Magos distintos, que, segundo uma tradição contemporânea, vieram da África, Oriente Médio e Ásia. Eles apresentam objetos caros de porcelana, ágata e latão que teriam sido valorizados pelas importações da China e dos impérios persa e otomano.
Mas no quadro a pele clara e os olhos azuis de Jesus sugerem que ele não é do Oriente Médio, mas sim nascido na Europa. E a escrita falsa-hebraica bordada nos punhos e na bainha de Maria desmente uma relação complicada com o judaísmo da Sagrada Família.
Na Itália de Mantegna – em pleno período renascentista -, os mitos antissemitas já eram predominantes na maioria da população cristã, com o povo judeu frequentemente segregado em seus próprios bairros nas principais cidades.
Foi então que os artistas, provavelmente estimulados pelas autoridades da Igreja, tentaram distanciar Jesus e seus pais, Maria e José, do judaísmo. Até mesmo detalhes aparentemente pequenos e destituídos de importância, como orelhas furadas, aparecem nas obras da época: os brincos eram associados a mulheres judias, e sua remoção representava uma conversão ao cristianismo.
Séculos depois, forças antissemitas na Europa, incluindo os nazistas, tentaram separar Jesus totalmente da sua origem judaica, em favor de um estereótipo branco ariano.
Jesus branco no exterior
Quando os europeus colonizaram terras cada vez mais distantes, levavam com eles a imagem de um Jesus europeu. Os missionários jesuítas estabeleceram escolas de pintura nos países pagãos colonizados, e nelas ensinava-se aos cristãos recém convertidos os padrões da arte cristã europeia.
“O noivado místico de Santa Rosa de Lima”, de Nicolas Correa
Na América Latina colonial – chamada “Nova Espanha” pelos colonos europeus – as imagens de um Jesus branco reforçavam um sistema de castas em que europeus brancos cristãos ocupavam o nível superior, enquanto aqueles com pele mais escura, com percepção de mistura com populações nativas, eram consideravelmente inferiores. A pintura do artista Nicolas Correa, em 1695, de Santa Rosa de Lima, a primeira santa católica nascida na “Nova Espanha”, mostra seu casamento metafórico com um Cristo loiro e de pele clara.
Os estudiosos Edward J. Blum e Paul Harvey argumentam que, nos séculos após a colonização europeia das Américas, a imagem de um Cristo branco o associou à lógica do império e foi usada para justificar a opressão sobre os indígenas nativos e os afro-americanos. Em uma América multirracial, mas desigual, havia uma representação desproporcional de um Jesus branco na mídia. A Cabeça de Cristo de Warner Sallman não foi a única imagem a ser amplamente reproduzida e divulgada; um grande número de atores que interpretaram Jesus na televisão e no cinema eram brancos de olhos azuis. As imagens de Jesus historicamente têm servido a muitos propósitos, desde simbolicamente representar o seu poder, até representar sua real semelhança. Mas, no atual momento histórico marcado pelo combate ao racismo, é importante que os espectadores conheçam a complicada história das imagens de Cristo que consomem.
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