Racismo (forma brutal de intolerância), como conceito filosófico, é a denominação que se dá à convicção que, além de proclamar a superioridade de uma raça, prega a separação, a subordinação ou a segregação de outras raças em relação àquela escolhida.
Qualquer postura racista é irracional, já que nenhum argumento lógico é capaz de sustentá-la. Vários pensadores, no entanto, tentaram encontrar razões racionais para justificá-la. No século dezoito, quando o alemão Blumembach diferenciou as características das raças humanas através da conformação craniana, aparecem as primeiras manifestações de um racismo pseudo racional. Simplesmente baseado nas diferenças morfológicas dos crânios dos indivíduos das diferentes raças, o francês Gobineau aproveita para afirmar em sua obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas que a única raça pura é a ariana e, por isso, superior às demais. Afirmação obviamente despropositada e ridícula, mas cujas consequências, ao longo da história, foram terríveis. O pangermanismo, que surgiu na Alemanha nas últimas décadas do século passado, adota a doutrina de Gobineau para justificar sua tentativa de unir as “raças puras” que povoavam não só a Alemanha como outros países europeus. Tal sentimento de “purismo racial” desembocou, finalmente, na primeira metade de nosso século, na loucura racista do nazismo antissemita, com todo o seu horrível séquito de muitos milhões de judeus, ciganos e indivíduos de outras minorias étnicas ou comportamentais trucidados nos campos de concentração.
Tais fatos, deve-se lembrar, não aconteceram num passado remoto, num momento tão recuado da história que nos permita dormir tranquilos, como se nada tivéssemos a ver com eles. São fatos muito recentes. Ocorreram há pouco mais de meio século, quando muitos de nós já tínhamos nascido. Por outro lado, e infelizmente, estão longe de serem fatos excepcionais. De certa forma constituem mais a regra do que a exceção no conturbado mundo moderno em que vivemos. Praticamente não há dia em que os jornais e as televisões não noticiem massacres étnicos em muitos países da África, renovados conflitos entre árabes e judeus no Oriente Médio, entre as diferentes etnias das nações da ex-União Soviética, entre organizações racistas norte-americanas e os cidadãos afro-descendentes do país. Ao mesmo tempo, na desenvolvida Comunidade Europeia, proliferam agora líderes políticos e partidos que desfraldam sem pudor a bandeira do racismo travestido de nacionalismos, na alegação de que “é preciso proteger nossas fronteiras nacionais contra a invasão dos refugiados”. Na África do Sul, só há poucos anos, e a duras penas, aboliu-se o famigerado apartheid, regime que privilegiava a minoria branca em detrimento da grande maioria negra, esta última segregada em guetos em nada diferentes das nossas favelas. Nos Estados Unidos permanece a generalizada hostilidade contra os negros e os chicanos (imigrantes latino-americanos).
O “país mulato” é um racista disfarçado
O Brasil, por seu lado, não escapa ao racismo. Bem ao contrário, em nosso “País mulato”, país da miscigenação, caldeirão de variadas raças que para cá vieram através da imigração, cultiva-se em larga escala uma das piores formas de racismo. Aquele que aparece como lobo em pele de cordeiro, disfarçado na ficção da “democracia racial”. Mas a realidade é outra: qualquer pesquisa sociológica demonstra que as classes mais pobres e desvalidas da nossa população são constituídas por extrema maioria de negros, mulatos e outros mestiços. Nosso país, que muitos ainda insistem em chamar de “coração do mundo e pátria do evangelho”, na assertiva generosa porem ingênua de Chico Xavier, trata com extrema crueldade os seus filhos mais carentes. Na base dessa postura madrasta, na pior acepção dessa palavra, o que persiste na verdade é um profundo sentimento racista.
O racismo que prega a separação racial pela cor da pele é a forma mais exterior e evidente de estabelecer qualificações e separações entre as raças. Mas se visualizarmos a questão como uma cebola composta de diferentes camadas, talvez nos surpreendamos com o que se encontra ao examinarmos os conteúdos dos seus estratos mais internos e ocultos. Suas origens remotas, em termos de socio-antropologia, vão ser achadas nos componentes primitivos do homem entendido mais como animal do que como ser humano pensante e consciente. Vêm do arcaico instinto de defesa territorial, que leva o bicho a tomar posse de um território e a atacar qualquer invasor que nele se aventure a penetrar.
Em termos psicológicos, o racismo tem outras explicações. Deriva de uma patologia do ego individual e coletivo à qual dá-se o nome bem conhecido de egocentrismo. O ego neurótico, ao concentrar-se cada vez mais em si mesmo, ao desenvolver a convicção falsa de que é o centro do mundo, de que é uma espécie de sol ao redor do qual tudo e todos giram como satélites, começa a perder cada vez mais a sua capacidade de ver o outro, e portanto de estabelecer relações verdadeiras com o outro. Não mais é capaz de projetar-se com entusiasmo e coragem no mundo, e de perceber o mundo naquilo que ele realmente é: um paraíso de diversidade. Longe disso, o ego autocentrado torna-se cada vez mais endurecido, menos flexível e maleável, e menos apto a desempenhar o seu verdadeiro papel de intermediário entre a consciência desperta e as coisas e fenômenos do mundo. Perdido no interior de si mesmo, esse ego doente vive na solidão e no medo. A patologia que imediatamente decorre dessa situação é o terror do diferente. Tudo aquilo que não o espelha e reflete, tudo aquilo que ele não reconhece como igual ou semelhante a si mesmo, e portanto como parte integrante de si mesmo, passa a ser para esse ego um perigo e uma ameaça. O contato com qualquer diferença o acua e amedronta, e ele, por instinto de defesa, tende a esmagar e destruir o que, neuroticamente, considera um “inimigo”.
No entanto, cada um de nós é um microcosmo que concentra e sintetiza em si todo o macrocosmo. Em cada um de nós convivem, de forma manifestada ou em potencial, todas os diferentes fenômenos do mundo e da natureza humana. E assim, quando combatemos aquilo que é diferente de nós apenas pelo fato de que é aparentemente diferente, estamos na verdade combatendo alguma coisa que existe em nós, que faz parte de nós, e que pode vir à tona e se manifestar a qualquer momento. O terror do diferente é portanto o terror da nossa própria diversidade.
Uma anomalia perigosa e mortal
O racismo, consequência direta do medo do diferente, é uma anomalia perigosa e mortal, porque antes de levar a pessoa racista a matar os seus pretensos inimigos, ele mata a alma do próprio racista. Ao contrário do ego neurótico, aquela componente fundamental da psique a que damos o nome de alma ama a diversidade. A alma sadia tende a se interessar e a integrar tudo aquilo de diferente com que entra em contato. Ela se alimenta das diferenças, e por isso não têm limites a sua curiosidade e o seu interesse pelos múltiplos fenômenos que ocorrem no mundo exterior e no mundo interior do ser humano. Por isso diz-se, com acerto, que a alma é a sede da criatividade. Sempre interessada pelo novo, pelo inédito, pelo transformado, é ela quem nos arrasta consigo, fazendo-nos mergulhar com ela na aventura do mundo onde vamos encontrar todas as infinitas formas criadas. É ela, a nossa alma aventureira que, ao agir de tal forma, impede a cristalização da nossa pessoa, fazendo com que sejamos realmente seres em permanente processo de evolução, e não pedras enrijecidas perdidas à beira dos caminhos.
Se o ego é o instrumento que nos liga ao mundo, a alma é o instrumento que nos conduz ao Self, o Eu Superior, a centelha divina que, segundo todos os grandes sistemas religiosos e a moderna psicologia, brilha no mais profundo de cada um de nós. Uma alma mal servida pelo ego ao qual está ligada, uma alma impedida por esse ego de lançar-se livremente no mundo de modo a poder alimentar-se de diversidade, certamente definhará e decairá. E uma alma definhada e decaída não tem condições de desempenhar aquela sua função primordial de ponte de conexão entre o indivíduo e o seu Self. Convém sempre lembrar que entre um indivíduo desconectado de seu Self e um indivíduo morto há, na verdade, pouquíssima diferença. Porque a vida sem o Self não é mais que existência mecânica, uma ilusão transitória e falível.
O racismo, algoz da alma, é um sentimento antinatural. Porque a mãe natureza, da mesma forma que a alma humana, também ama a diversidade. Nenhuma criação natural se repete; todas elas são infinitamente variadas. Não há uma única impressão digital igual a outra; nenhum rosto exatamente igual a outro, desde que o homem existe sobre a terra; nenhum planeta ou estrela, nenhuma folha; nenhum dia ou noite que se repitam. Como cada pessoa, cada coisa que existe é única, irrepetível, e diferente de todas as outras.
Por que, então, só aceitar e acolher aqueles ou aquilo que é igual a nós?
A partir de tudo isso, pode-se entender que o racismo é um conceito muito mais amplo do que aquele limitado às diferenças causadas pelo maior ou menor teor de melanina na pele humana. É também racismo, por exemplo, o ódio ou desprezo por aqueles que professam crenças religiosas diferentes das nossas; que defendem idéias, posturas existenciais, preferências afetivas ou sexuais que não correspondam exatamente às nossas. A homofobia, nesse sentido, é uma das formas mais odiosas de racismo. O homofóbico é, antes de tudo, um doente psíquico.
Do ponto de vista da espiritualidade o racismo é um tremendo equívoco. Ele contraria preceitos fundamentais de qualquer religião verdadeira. A começar pela religião de Cristo: “amai ao próximo como a ti mesmo”. Não à tôa Helena Blavatsky, ao estabelecer na segunda metade do século dezenove os fundamentos básicos da Sociedade Teosófica – que ela propunha como núcleo da Sabedoria Universal – defendeu em primeiro lugar a idéia da fraternidade universal, sem distinção de credo, raça ou cor.
No entanto, quando se examina a história das religiões, o que mais se vê são episódios de racismos, radicalismos e intolerância fratricida. Quase nenhuma Igreja escapa a esse estigma. Quantos milhares, ao longo dos séculos, a Inquisição católica assou nas fogueiras, torturou até à morte nos calabouços, fez sucumbir sob as lanças e espadas dos cavaleiros da Cruzadas, sob o mero pretexto de “destruir os inimigos de Deus”?
Não agiram de forma diferente, em muitos momentos da história, os judeus sequidores de Jeová, nem os muçulmanos seguidores de Maomé. Nem os hindus de Rama e Krishna, nem os budistas de Buda, nem os chineses taoistas de Lao Tsé. Razão pela qual, desde sempre, os conflitos religiosos constituem uma das principais causas de guerras, mortandades e sofrimentos sem fim.
“O diferente deve ser destruído”
Na origem de toda essa discórdia, lá está, antecedendo a todos os argumentos de ordem territorial, política, econômica, militar, a grande patologia do medo daquilo que é diferente. “Não é igual a mim, é perigoso e deve ser destruído”, afirmam na sua loucura os racistas.
Trazendo esse tema para bem perto, testemunhei recentemente um episódio exemplar de como o racismo patológico penetra no seio de movimentos religiosos travestido de ato de “purificação espiritual”. Visitei, como pesquisador jornalista, um templo de “inspiração bíblica” cujo nome prefiro omitir – até porque, para ser justo, deveria elencar junto a ele muitas dezenas de outros nomes de templos que adotam posturas similares. Num determinado momento do culto, dirigido por um pastor de voz inflamada, procedeu-se a um simulacro de exorcismo de “entidades” de umbanda e candomblé que se manifestavam em fiéis recém-chegados. O espetáculo era simplesmente repugnante. Uns pobres caboclos, pretos-velhos e outros tantos exus e pombagiras “incorporados” naqueles fiéis recebiam tratamento digno de demônios da pior espécie. Só faltou levarem pancada de porrete e sova de chicote. Segundo o pastor aquele exorcismo era necessário para “limpar os recém-chegados das cargas negativas que traziam”, sem o que não poderiam ser aceitos como novos membros da comunidade.
Examinei os sete ou oito candidatos que carregavam, talvez pela última vez, os caboclos, pretos-velhos, exus e pombagiras que durante tanto tempo os seguiram como companheiros espirituais de viagem. Eram todos pessoas muito humildes e quase todos pretos ou mulatos. Gente cujos antepassados aqui chegaram presos aos grilhões da escravidão. Gente arrancada da África, ou das suas tribos indígenas, de quem tudo foi tomado: seus nomes, sua língua, sua identidade nacional e pessoal, sua liberdade. Tudo, menos a sua espiritualidade, de alguma forma ainda preservada nos terreiros afro-brasileiros. E agora vinha uma outra religião, filha do puritanismo anglo-saxão, produto acabado da mentalidade capitalista e consumista, acabar com aquilo que restara da herança original daquela gente. Era demais. Levantei-me e fui embora, levando comigo um coração apertado.
Genocídio cultural
Um exu ou uma pombagira, no panteão afro-brasileiro, representam, entre outras coisas, a liberdade, a sensualidade, a esperteza lícita, a rebeldia contra os preconceitos descabidos e contra os condicionamentos que oprimem o indivíduo e a sociedade; os caboclos representam a sabedoria, o discernimento, a capacidade de lutar por ideais justos, a defesa dos valores que elegemos para nós e nos quais acreditamos; e os pretos-velhos representam, antes de tudo, a raríssima capacidade do amor compassivo, a compaixão. Por que, por quais motivos devem ser exorcizados todos esses valores? Resposta: por racismo.
Essa igreja dos exorcismos certamente daria o seu aval a todos aqueles valores, e sem pestanejar os incluiria na categoria dos fundamentos superiores da espiritualidade. Mas com uma condição: desde que eles viessem da Bíblia, ou da boca dos seus pastores, e nunca de outras fontes. O recado que ela queria dar àqueles candidatos às vagas de fieis era portanto bem claro: seriam aceitos, desde que renunciassem publicamente a tudo neles que cheirasse a negritude, tudo que tivesse sabor de índio, tudo que fosse diferente dos padrões eleitos pela igreja.
Racismo puro. Mas não racismo apenas pela cor da pele, e sim pela cor da alma. Racismo cultural e religioso.
Mas há, felizmente, uma grande diferença entre religião e espiritualidade, e nunca será demais insistir nela.
Religiões são sistemas de crenças que vão se cristalizando no tempo e no espaço, até tornarem-se, via de regra, organismos duros e impermeáveis. O movimento das religiões é em geral de tipo côncavo, voltado para si mesmo. Como o ego neurótico que pouco a pouco perde o contato com o mundo exterior e que desenvolve uma fobia para com tudo aquilo que é diferente dele, a maioria das religiões acaba comprimida e limitada em si mesma, isolada de qualquer contexto maior. Porisso precisa de dogmas, de postulados e fundamentos arbitrários, muitas vezes destituídos de qualquer lógica, para preservar o seu poder e a sua ortodoxia. Para as religiões, racismos disfarçados constituem uma triste constante.
Espiritualidade é o contrário de tudo isso. A verdadeira espiritualidade é aberta. Seu movimento é de tipo convexo, heterodoxo, voltado para o mundo e para o cosmo. Espiritualidade não é coisa do ego, e sim da alma. Daquela parte essencial de nós que, por estar mais perto do Self, não conhece barreiras nem limites, e está a um passo de Deus. Espiritualidade é livre, e não precisa de nenhuma lógica para existir, porque ela é a própria lógica na acepção superior da palavra. Suas crenças – se é que neste caso podemos usar o termo crença – são colhidas no vasto celeiro da Sabedoria Universal. Aquele acervo infinito de valores que, por não pertencerem a ninguém, pertencem a todos. E por isso podem ser encontradas na própria base da sabedoria de qualquer religião verdadeira, seja ela ocidental ou oriental, preta, branca, amarela, azul ou violeta. A espiritualidade, como a mãe natureza e como a alma humana, também ama a diferença, pois sabe perfeitamente que Deus, a Unidade, manifesta-se no mundo através da diversidade. E sabe que cada parte diversa que existe no mundo é uma parte de Deus. Por isso, para a espiritualidade, qualquer racismo é uma abominação.
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