Francis Fukuyama. O 'fim da história' será democrático

Vinte e cinco anos após seu famoso vaticínio sobre o fim da História, Francis Fukuyama revê a sua posição mas insiste em que a democracia liberal, ainda que fragilizada, continua sem alternativa.

Vinte e cinco anos após seu famoso vaticínio sobre o fim da História, Francis Fukuyama revê a sua posição mas insiste em que a democracia liberal, ainda que fragilizada, continua sem alternativa.
Vinte e cinco anos após seu famoso vaticínio sobre o fim da História, Francis Fukuyama revê a sua posição mas insiste em que a democracia liberal, ainda que fragilizada, continua sem alternativa. (Foto: Gisele Federicce)


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Cena de Crime e Castigo, filme filipino de Lav Diaz, baseado na obra de Dostoievsky

 


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Por: Francis Fukuyama (excertos)

Fonte: The Wall Street Journal, Nova York

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Há 25 anos publiquei meu ensaio “O fim da História” na revista The National Interest. Saiu poucos meses antes da queda do Muro de Berlim, no mesmo momento em que na Praça Tianamen, em Pequim, ocorriam as manifestações pró democracia e no meio de uma vaga de transições democráticas na Europa do Leste, na América Latina, na Ásia e na África Subsaariana. Defendi então que a História - na acepção filosófica da palavra - estava seguindo um rumo muito diferente daquele que os intelectuais de esquerda tinham imaginado.

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O processo de modernização econômica e política levava não ao comunismo, como tinham postulado os marxistas, mas a uma forma de democracia liberal e de economia de mercado. A História parecia dirigir-se inevitavelmente para a liberdade - governos eleitos, direitos individuais e um sistema econômico em que capitais e pessoas circulassem sob um controle do Estado relativamente limitado. Ao rever esse artigo com o devido distanciamento, impõe-se uma primeira constatação: o mundo de 2015 não se parece em nada com o de 1989.

A Rússia tornou-se um regime eleitoral, mas autoritário e ameaçador, alimentado por petrodólares, que ameaça os vizinhos e tenta recuperar pela força territórios perdidos por ocasião da dissolução da União Soviética, em 1991. Também a China continua a ser um Estado autoritário, embora seja, atualmente, a segunda maior economia mundial.

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Francis Fukuyama, politólogo norte-americano autor da tese sobre 'O fim da história'

 

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Um outro fim da História

O problema de hoje é que, não só os regimes autoritários vão de vento em popa como muitas democracias enfrentam dificuldades. Muitos países que pareciam terem superado com sucesso a transição para a democracia - Turquia, Sri Lanka, Nicarágua - voltaram a práticas autoritárias. Outros, entre os quais membros recentes da União Europeia como a Romênia e a Bulgária, continuam corroídos pela corrupção.

Quanto às democracias desenvolvidas, Estados Unidos e União Europeia atravessaram graves crises financeiras nos dez últimos anos. Mesmo que a economia norte-americana dê sinais de crescimento, os lucros não foram distribuídos equitativamente e o sistema político, polarizado e partidarizado, não é um exemplo particularmente sedutor para as outras democracias.

Quer isto dizer que a minha hipótese do fim da História já não tem cabimento ou deve ser cuidadosamente revista? Creio que, nas suas grandes linhas, o postulado inicial mantém-se correto. Mas existem muitos aspetos relativos à natureza da evolução politica que são hoje para mim mais claros do que me pareceram durante a euforia de 1989.

Quando analisamos as grandes tendências históricas, convém não nos deixarmos influenciar pelas evoluções de curto prazo. A marca de um sistema político durável reside mais na sua viabilidade a longo prazo do que no seu desempenho durante uma determinada década.

 

'A minha hipótese do fim da História não pretendia ser determinista nem considerava inevitável o triunfo da democracia', Francis Fukuyama

 

Vejamos a alteração radical que os sistemas econômicos e políticos sofreram em duas gerações: a economia mundial foi marcada por um aumento considerável da produção, que praticamente quadruplicou entre o início dos anos 70 e a crise financeira de 2008. Apesar dos efeitos devastadores da crise, os níveis de prosperidade em todo o mundo aumentaram significativamente, o que é válido para todos os continentes.

Isso deve- se ao fato de a comunidade internacional ter cerrado fileiras em torno de um sistema liberal de comércio e investimento. Mesmo em países comunistas como a China ou o Vietnã dominam as leis do mercado e da concorrência.

A terceira onda da democratização

Também a esfera política conheceu enormes transformações. Segundo Larry Diamond, especialista no estudo da democracia na Universidade de Stanford, em 1974 existiam apenas 35 democracias eleitorais, ou seja, menos de 30% em todo o mundo, contra cerca de 120 em 2013, ou seja, mais de 60% do total. O ano de 1989 veio marcar uma aceleração repentina numa tendência mais geral, a que Samuel Huntirigton, investigador de Ciência Política em Harvard, chamou “a terceira onda de democratização”.

Trata -se de um movimento que começou com as transições democráticas na Europa meridional e, cerca de 15 anos mais tarde, passou à América Latina, propagando-se à África subsaariana e à Ásia.

Essa expansão do modelo democrático está estreitamente ligada ao aparecimento de uma ordem econômica mundial liberal. A democracia sempre assentou na existência de uma vasta classe média e, na última geração, em todos os países do mundo cresceram as fileiras de cidadãos prósperos que acumularam patrimônio.

 

'Quanto mais rica e instruída é uma população, tanto mais exigente é relativamente ao seu Governo', Francis Fukuyama

 

Ora, quanto mais rica e instruída é uma população, tanto mais exigente é relativamente ao seu Governo; além disso, como paga impostos, sente que tem legitimidade para pedir contas aos responsáveis políticos.

A maior parte dos grandes bastiões do autoritarismo são países ricos em petróleo, como a Rússia, a Venezuela ou os países do Golfo, onde a famosa "maldição dos recursos" garante enormes rendimentos ao Estado, independentemente das receitas fiscais.

Desde 2005 que assistimos a uma "recessão democrática" mundial, para retomar a expressão de Larry Diamond. Segundo a organização americana Freedom House, a quantidade e a qualidade das democracias (sendo a qualidade avaliada pela regularidade do processo eleitoral, a liberdade de imprensa, etc.) têm diminuído de forma sistemática nos últimos oito anos.

Olhemos, contudo, para essa recessão democrática de uma forma alargada: se, por um lado, é legítimo preocuparmo-nos com as derivas autoritárias na Rússia, na Tailândia ou na Nicarágua, não devemos, por outro lado, esquecer que, nos anos 70, esses países eram verdadeiras ditaduras.

Não obstante os entusiasmantes movimentos revolucionários da Praça Tahrir, no Cairo, em 2011, a Primavera Árabe acabou por não abrir caminho para a democracia em parte nenhuma, à exceção do país onde teve início, a Tunísia. A longo prazo poderia, ainda assim, traduzir-se numa política mais reativa nos países árabes. Foi absolutamente irrealista esperar que isso acontecesse rapidamente.

 

No modelo chinês, autoritarismo caminha ao lado da economia de mercado

 

Esquecemo-nos que foram necessários 70 anos após a primavera dos povos de 1848 para a democracia se consolidar na Europa. Acresce que, no campo das ideias, a democracia liberal continua a não contar com nenhum concorrente sério. A Rússia de Vladimir Putin e o Irã dos aiatolás louvam os ideais democráticos, mas, na prática, os espezinham. Como explicar de outro modo a organização de referendos fantoches sobre a “autodeterminação” no leste na Ucrânia?

O único sistema existente que poderia constituir uma alternativa à democracia liberal é o famoso “modelo chinês", que associa ao autoritarismo do Estado alguma economia de mercado e um elevado nível de competência tecnocrática e tecnológica. Contudo, muitas razões permitem pensar que o modelo chinês não é viável.

A legitimidade do sistema e a perenidade do poder do partido se assentam num crescimento forte e sustentado, um cenário pouco provável numa altura em que a China, país de rendimento médio, tenta tornar -se um pais de elevado rendimento.

A China acumulou uma quantidade considerável de passivos ocultos ao poluir o seu solo e o seu ar e, por muito que seja verdade que o Governo se mantém mais ágil do que a maioria dos regimes autoritários, a classe média desse país, que assume cada vez maior importância, não vai decerto aceitar o atual sistema de paternalismo corrupto em tempo de crise.

Não significa isto, porém, que devamos congratular- nos com o desempenho da democracia nos últimos 20 anos. A minha hipótese do fim da História não pretendia ser determinista, assim como não visava prenunciar o inevitável triunfo da democracia liberal em todo o planeta. As democracias só sobrevivem e prosperam se os povos estiverem dispostos a defender o respeito pelo Estado de direito, os direitos humanos e a responsabilidade política.

O maior problema das sociedades que aspiram à democracia tem sido a incapacidade de garantir a estabilidade daquilo que os indivíduos têm o direito de esperar do seu Governo: segurança, crescimento econômico partilhado e serviços públicos de base (em especial educação, saúde e infraestruturas), todos estes elementos indispensáveis à concretização das aspirações individuais de cada um.

Foi precisamente isto que a “revolução laranja” ucraniana não conseguiu. Os dirigentes levados ao poder pelas manifestações populares - Viktor Iuchtchenko e Julia Timochenko - desbarataram a sua energia em querelas internas e acordos duvidosos.

 

Na Índia, mulheres protestam à luz de velas contra a corrupção e o enfraquecimento da democracia

 

A Índia marca passo relativamente à China autoritária. O sistema indiano está minado pela corrupção e pelo clientelismo. Segundo a Associação para as Reformas Democráticas indiana, 34% dos vencedores das últimas eleições nacionais estão às voltas com processos judiciais, devendo mesmo alguns responder por acusações graves, como homicídio, sequestro ou violação.

A Índia é um Estado de direito, mas o seu sistema judicial é tão lento e ineficaz que não é raro os queixosos morrerem antes de o seu processo chegar às mãos de um juiz.

Em comparação com a China autocrática, a maior democracia do mundo viu a sua capacidade de garantir à população infraestruturas modernas ou serviços básicos como o acesso à agua, à eletricidade ou à educação totalmente paralisada. Mais do que qualquer outro povo, o americano tem dificuldade em compreender a necessidade de um governo eficaz e privilegia o condicionamento da autoridade.

Em 2003, a Administração de George W. Bush parecia pensar que, assim que os Estados Unidos libertassem o Iraque da ditadura de Saddam Hussein, surgiriam nesse país um governo democrático e uma economia de mercado. Não compreendeu que uma evolução nesse sentido só podia ser fruto de uma interação entre instituições complexas - partidos políticos, tribunais, direitos patrimoniais, uma identidade nacional compartilhada - que precisaram de décadas, por vezes mesmo de séculos, para se impor nas democracias desenvolvidas.

 

Nos Estados Unidos, a briga de foice entre os partidos Democrata e Republicano vem de longe, e está longe de terminar

 

Lamentavelmente, esta incapacidade de governar de forma eficaz estende-se aos próprios EUA. A Constituição americana, que multiplicou deliberadamente os mecanismos de freios e contrapesos em todos os níveis do Estado para proteger os cidadãos da tirania, transformou o país numa “vetocracia”. No ambiente polarizado que reina em Washington, o Governo não consegue mover-se em nenhum sentido.

Passados 25 anos, a mais grave ameaça que paira sobre a hipótese do “fim da História” não é a possibilidade de existir um modelo superior ou melhor que, um dia, ultrapasse a democracia liberal. A partir do momento em que as sociedades apanham o comboio da industrialização. a sua estrutura social começa a mudar e essa evolução estimula a exigência de participação política.

A dúvida reside em saber se todos os países apanharão necessariamente esse trem. O crescimento econômico passa, inevitavelmente, por uma série de instituições fundamentais, a começar por contratos executórios e serviços públicos fiáveis, mas é difícil criar essas instituições em situações de pobreza extrema e de divisão política.

Só por acasos da História aconteceu que as sociedades tenham escapado a essa “armadilha”, por exemplo, quando um mal (como a guerra) deu origem a um bem (como os governos modernos).

 

O nepotismo nos regimes democráticos é uma praga antiga. Retrato do Papa Paulo III com seus sobrinhos Alessandro Farnese e Ottavio Farnese, por Ticiano

 

Outro problema que não abordei há 25 anos é o da gral decadência política. Todas as instituições podem deteriorar-se a longo prazo. São, frequentemente, rígidas e conservadoras, e as regras que dão resposta às necessidades de determinado período histórico podem não ser as adequadas quando a situação muda. Além disso, muitas vezes acontece que, com o passar do tempo, instituições modernas, que se pretende impessoais, acabam por ser apropriadas por atores políticos poderosos.

Essa tendência natural do homem para recompensar a família e os amigos existe em todos os sistemas políticos e transforma as liberdades em privilégios. Este princípio é tão válido numa democracia como num sistema autoritário. Nestas circunstâncias, os ricos conseguem enriquecer ainda mais não apenas porque obtêm maior retorno do seu capital mas também porque acedem mais facilmente ao sistema político e podem recorrer àqueles com quem se relacionam para servir interesses próprios.

Ninguém que viva numa democracia estabelecida pode dar como certa a sua sobrevivência. Mesmo que nos interroguemos sobre o tempo necessário para que todos acedam a esse estágio, não restam dúvidas quanto ao modelo de sociedade a que o fim da História conduz.

(*) Um único artigo bastou para celebrizar o politólogo Francis Fukugama no verão de 1989: esse ensaio, que foi publicado na revista The National Interest com o título O fim da História, defendia que "com o desmoronamento do comunismo, a democracia liberal tornou-se a única forma de governo compatível com a modernidade socioeconômica", como resumia o jornal The New York Times. Associado num certo momento ao movimento neoconservador, Fukuyama defendeu a intervenção americana no lraque, distanciando-se depois do Governo de George N. Bush. É atualmente pesquisador na Universidade de Stanford. A sua última obra, Political Order and Political Decay (Ordem Política e Decadência Política), foi publicada nos Estados Unidos em setembro de 2014. O presente artigo retoma algumas das suas teses.

 

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