Ditadura da economia global. Crise climática é oportunidade de transformação
“Aproveitemos a crise climática para mudar o modelo econômico mundial”, sugere Naomi Klein, paladina da globalização alternativa. Ela diz que é preciso aproveitar a luta contra as alterações climáticas para derrubar a ordem liberal e construir uma sociedade mais justa.
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Por: Naomi Klein
Fonte: Revista The Nation, Nova York
Há cerca de um ano, jantei com amigos em Atenas. Na manhã seguinte, ia entrevistar Alexis Tsipras, dirigente do Syriza, o então principal partido da oposição e um dos raros sinais de esperança numa Europa devastada pela austeridade insustentável. Perguntei aos meus amigos que questões devia colocar-lhe. Um deles sugeriu: “A História bateu-lhe à porta. Você a abriu?”
O Syriza combatia ferozmente a austeridade, mas tinha dificuldade em formular com clareza uma visão econômica positiva. Surpreendia- me, sobretudo, que não tivesse nada a dizer sobre as explorações de petróleo e gás - uma ameaça para o magnífico espaço marítimo grego e, mais genericamente, para o clima - decididas pelo Governo conservador. Limitava-se a declarar que as receitas deviam ser utilizadas para financiar as pensões e aposentadorias e não para pagar a dívida. Não propunha nenhuma alternativa ao “extrativismo” (intensificação da extração de recursos naturais) e defendia apenas uma distribuição mais justa dos lucros do petróleo - reivindicação comum a quase todos os países da América Latina governados pela esquerda.
Durante a entrevista, Tsipras reconheceu que a crise ecológica foi ofuscada por preocupações mais imediatas: “O nosso partido tinha o ambiente e as alterações climáticas no centro das suas prioridades. Mas depois destes anos de crise na Grécia, deixamos para trás as mudanças climáticas". É compreensível. Mas é também uma terrível oportunidade perdida.
Revolução 24 horas por dia
O trabalho que realizei nos últimos cinco anos convenceu-me de que a mudança climática representa a oportunidade histórica de iniciar uma transformação progressista. Com base no projeto para reduzir as nossas emissões de gases de efeito estufa para os níveis recomendados por muitos peritos, temos a oportunidade de promover politicas que melhorem significativamente a vida das pessoas, permitam preencher o fosso entre ricos e pobres, criem muitos bons empregos e redinamizem a democracia a partir da base.
Mas nada disso vai acontecer se não respondermos à História quando ela nos bate à porta, porque sabemos a que vai conduzir o sistema atual, se continuar neste rumo.
As emissões de gases de efeito estufa continuam a aumentar exponencialmente, ano após ano, década após década. Esses gases não vão deixar dissipar calor para o espaço durante várias gerações, criando um mundo mais quente, mais inóspito, com sede, com fome e crispado. Enquanto há esperança, por pequena que seja. de revertermos essa tendência, as meias–medidas não servem para nada: a revolução climática tem de ser movida como um parafuso sem fim, todos os dias, 24 horas por dia e em toda a parte.
Em outros períodos da História, movimentos de massas assumiram as rédeas dos processos de mudança e isso pode voltar a acontecer neste caso. No entanto, temos de ter consciência de que, para reduzir as emissões globais para os níveis preconizados pelos especialistas em clima, vai ser necessário operar uma mudança a um ritmo e a uma escala impressionantes. Só se podem alcançar as metas fixadas pelos cientistas obrigando algumas das empresas mais rentáveis do mundo a desistiram de muitos milhões de dólares de receitas futuras, renunciando a explorar a maioria das reservas conhecidas de combustíveis fósseis. Além disso, precisamos arranjar outros milhões para financiar as mudanças sociais capazes de enfrentar o desafio do carbono zero e de preparar o mundo para responder às catástrofes. Claro que queremos fazer essas mudanças radicais de forma democrática e sem derramamento de sangue.
As energias solar e eólica podem ser certamente rentáveis. Mas a sua produção é descentralizada por natureza, pelo que nunca irão gerar os lucros mirabolantes a que os gigantes das energias fósseis estão habituados. Por outras palavras, se a justiça climática prevalecer, o preço a pagar pelas nossas elites econômicas será bastante real - não só pelo que deixam de ganhar com o carbono inexplorado, mas também devido às regulamentações, impostos e programas sociais necessários para se conseguir a mudança pretendida. Essas novas exigências impostas aos ultra ricos poderiam colocar um fim à era dos desenvoltos oligarcas de Davos.
Mobilização produz mudanças
Mas a batalha só será ganha se os vários componentes da sociedade se mobilizarem numa escala sem precedentes. Apesar de não haver um precedente histórico comparável ao desafio trazido pelas alterações climáticas, os movimentos do passado não foram menos ricos em ensinamentos. Uma das lições diz que, quando grandes mudanças ocorrem no equilíbrio de poderes, são invariavelmente resultado de uma mobilização social extraordinária.
Nesses momentos-chaves, o ativismo deixa de ser apanágio de um pequeno grupo no interior de uma dada cultura, quer se trate de uma vanguarda radical ou de uma subcategoria profissional, passando a ser visto como uma atividade perfeitamente normal, à escala de toda a sociedade – das associações de moradores às sociedades femininas de voluntariado, dos clubes de jardinagem às assembleias de vizinhos, dos sindicatos aos grupos profissionais, das equipes desportivas às federações de clubes .
Em momentos históricos excepcionais - as duas guerras mundiais, o rescaldo da crise de 1929, o apogeu da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos -, a tradicional separação entre “militantes ” e "pessoas comuns" desapareceu porque o projeto de mudança social estava intimamente ligado ao projeto de vida. Os protagonistas da mudança eram cidadãos comuns.
Ainda está a tempo
Há que ter sempre em mente que o maior obstáculo a transpor pela Humanidade para resolver a crise climática não tem que ver com ser tarde demais para agir, nem com falta de conhecimentos técnicos. Ainda estamos a tempo e temos conhecimento de uma miríade de tecnologias e projetos verdes. Mas a razão pela qual ainda há tanta gente resignada é porque a classe política parece incapaz de se apropriar dessas ferramentas e pôr esses projetos em andamento.
No entanto, os culpados não são somente as pessoas que elegemos e de quem, depois, nos queixamos. Também temos a nossa parcela de responsabilidade. Com os olhos pregados nos nossos celulares inteligentes e uma capacidade de concentração tão curta quanto um clique do mouse do computador, espremidos pelo fardo das dívidas e da insegurança no trabalho, onde e como havemos de arranjar tempo para nos organizarmos? Em quem poderíamos ter confiança suficiente para nos conduzir? E, já agora, que “nós" vem a ser esse? Somos o produto do nosso tempo e de um projeto ideológico dominante – um projeto que muitas vezes nos ensinou a pensar em nós mesmos como unidades singulares constantemente em busca de satisfação pessoal e profissional.
Por todas estas razões, não seremos capazes de enfrentar o desafio climático enquanto não o encararmos como uma luta muito mais vasta entre diferentes visões do mundo, como um processo que pretende reconstruir e reinventar a própria noção de coletividade, comunidade, bem comum, sociedade civil e ação cívica - ideias depreciadas e abandonadas há décadas.
Se o desafio climático parece tão intimidante, é porque exige a substituição de uma série de regras - algumas inscritas nas legislações nacionais e acordos comerciais, e outras não escritas mas igualmente poderosas, ditando que nenhum governo se manterá no poder se não aumentar os impostos, se recusar grandes investimentos ambientalmente nefastos ou planejar reduzir gradualmente os setores da economia que nos colocam a todos em perigo.
Cada uma dessas regras nasceu da mesma visão coesa do mundo. Se esta perder legitimidade, as regras que gerou tornam-se todas muito mais fracas e vulneráveis. Essa é outra lição da história dos movimentos sociais, de todo o espectro político: quando ocorre uma mudança fundamental, normalmente isso não resultou de medidas legislativas aplicadas ao longo de décadas,mas de uma sucessão rápida de leis que encadeiam uns avanços nos outros. A direita chama a isso “terapia de choque”; a esquerda fala de “poder popular”, no sentido em que esse processo só pode ser bem-sucedido através de uma grande mobilização popular. (Recordemos o quadro regulamentar herdado do período do New Deal, ou, mais recentemente, a legislação ambiental das décadas de 60 e 70).
Renda mínima garantida
A humanidade não é como nos reality shows. Mas como mudar uma visão de mundo, uma ideologia incontestada? Primeiro, é necessário escolher as batalhas políticas certas, lutar por questões que mudem os dados da situação e procurem alterar, não apenas as leis, mas também os esquemas de pensamento. Neste sentido, poderia ser muito menos eficaz lutar por um imposto mínimo sobre o carbono do que, por exemplo, formar uma grande coligação para reivindicar um rendimento mínimo garantido.
Um rendimento mínimo garantido permitiria aos trabalhadores recusarem empregos relacionados com energias poluentes. O próprio ato de instituir uma proteção social universal abre caminho a um verdadeiro debate de valores – sobre aquilo que cada um de nós deve aos outros, em nome da nossa humanidade comum. E sobre o que possa ser mais importante do que o crescimento econômico e os lucros das empresas.
Grande parte desse processo de mudança profunda da sociedade deve passar por debates que sirvam para formular novos cenários que substituam os que falharam. Se alimentamos um mínimo de esperança de dar o salto civilizacional exigido por esta década decisiva, temos de começar a acreditar que a humanidade não é irremediavelmente egoísta e gananciosa, ao contrário do que dizem os reality shows e a teoria econômica neoclássica.
Trata-se de conceber não um mero arsenal de medidas alternativas, mas toda uma visão alternativa do mundo, capaz de combater as razões profundas da crise ecológica. Precisamos de uma visão baseada na interdependência e não no hiper-individualismo; na reciprocidade e não na dominação; na cooperação em vez da subordinação hierárquica.
Estratégia para vencer os economistas
Começam a acumular-se argumentos econômicos a favor do abandono dos combustíveis fósseis e cada vez mais investidores vão tomando consciência disso. Mas não ganharemos a batalha contra o aquecimento global se tentarmos combater os economicistas no seu próprio terreno. É o erro em que caímos quando defendemos que é mais rentável investir já na redução das emissões de carbono do que ter de reparar amanhã os danos do desastre ambiental.
Só venceremos se mostrarmos que tais cálculos são moralmente monstruosos, porque insinuam que seria economicamente aceitável deixar países inteiros desaparecerem, milhões de pessoas morrerem em terras sem vida e privar as crianças do direito de poderem viver num mundo fervilhante de maravilhas.
Os últimos anos foram ricos em momentos desse tipo. Várias sociedades decidiram de repente mostrar que estavam fartas. Pense-se na Primavera Árabe (não obstante as suas tragédias, as suas traições e tudo o mais), nos movimentos dos Indignados europeus, que tomaram de assalto as praças das grandes cidades durante meses, no Occupy Wall Street ou nas grandes manifestações de estudantes no Chile e no Quebec. O jornalista mexicano Luis Hernández Navarro chamou “efervescência da rebelião" a esses raros momentos políticos que parecem dissolver o cinismo dominante.
O aspeto mais marcante dessas revoltas, reivindicando mudanças estruturais, é serem muitas vezes inesperadas - até para os seus próprios organizadores. Quantas vezes ouvi a mesma história: “No início, éramos apenas um grupo de amigos a fazer planos no ar e, pouco depois, de um dia para o outro, parecia que o país estava todo ao nosso lado na praça”. E a verdadeira surpresa é que somos muito mais numerosos do que nos querem fazer crer e que há muito mais pessoas do que pensávamos compartilhando as mesmas aspirações.
Ninguém sabe quando irá se produzir um novo momento de efervescência, se será precipitado pela crise econômica, por uma catástrofe natural ou por um escândalo político. O que sabemos é que um planeta em aquecimento irá proporcionar, infelizmente, muitos riscos de novas explosões. “Aquilo que hoje é politicamente realista deixará seguramente de o ser, quando sofrermos outros furacões Katrina, outros ciclones Sandy, outros tufões Bopha”, explica Sivan Kartha, investigador do Instituto do Ambiente de Estocolmo. É verdade que o mundo ganha novos contornos quando, de repente, vemos os objetos acumulados ao longo de uma vida a boiar no meio da rua, aos pedaços, reduzidos a lixo...
Mudança a partir da base
Além disso, o mundo já não é como no final da década de 80. Quando a mudança climática emergiu no debate público, o liberalismo e o triunfalismo do “fim da História” estavam no apogeu. Mas agora estamos num contexto histórico diferente. Muitos dos bloqueios que nos impediam de reagir à crise estão desaparecendo: décadas de desigualdades e corrupção desenfreada desacreditaram a ideologia liberal, retirando-lhe muito do seu poder de persuasão (senão mesmo do seu poder político e econômico). Muitos de nós começam a perceber que não vai haver nenhum novo messias que venha do nada para nos conduzir na superação da crise. Se houver mudança, esta terá de ser impulsionada a partir da base.
Estamos muito menos isolados do que há 10 anos: as estruturas construídas sobre os escombros do neoliberalismo – dos órgãos de comunicação às cooperativas de trabalhadores, passando por feiras de agricultores e bancos de solidariedade - ajudaram-nos a formar uma rede comunitária, apesar da fragmentação da vida pós-moderna. Restam poucas dúvidas de que uma nova crise nos irá empurrar de novo para as ruas e praças, e que irá apanhar todos de surpresa.
Que farão as forças progressistas? Os momentos em que o impossível parece possível são preciosos e raros. Quando o próximo instante de mudança surgir, é preciso agarrá-lo. Não basta denunciar injustiças nem tentar construir bolsões efêmeros de liberdade.
Será o momento de construir um mundo no qual possamos estar realmente seguros. Os riscos são demasiado elevados e o tempo curto para que nos contentemos com menos que isso.
(*) Naomi Klein, ativista, jornalista e autora canadense, é hoje figura muito influente junto à esquerda norte-americana. Ficou conhecida após o lançamento, no ano 2000, do seu livro “Sem Logo: A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido”. Em 2014 lançou “This Changes Everything: Capitalism versus The Climate”. Site: wwwnaomikleinorg
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