Gautama Buda, um mestre cuja sabedoria não é posta em dúvida por ninguém, nunca afirmou que o mal da humanidade fosse o dinheiro. Ele ensinou, sempre, que todo sofrimento deriva da ignorância, do ódio e dos apegos. É importante levar essas lições em conta, num momento em que moedas e notas estão desaparecendo de nossos bolsos, substituídas pelos cartões de crédito e por sistemas automáticos de pagamento.
Há pouco anos, em Gotemburgo, na Suécia, tentei pagar uma corrida de táxi com dinheiro vivo. Para meu espanto, o taxista recusou. Disse que a empresa para a qual prestava serviço lhe proibia a manipulação de notas e moedas dentro do taxi. Tinha de ser com o cartão de crédito. E lá estava, bem ao lado do volante, a maquininha para se inserir o cartão, pagar a conta e… deixar bem registrados para os controles oficiais onde eu estava, de onde vim, para onde fui, em qual horário, o número do meu cartão e atrás dele todos os meus dados pessoais, etc. Mas a bendita máquina simplesmente não reconheceu o meu cartão brasileiro… Nada a fazer: tive de subir até o apartamento da amiga que me hospedava (Anne Palmers, jornalista sueca) e pedir a ela o favor de descer com seu cartão e pagar o taxi. Baita mão de obra.
O tema, no entanto, serviu para Anne, que é uma daquelas jornalistas rebeldes e inconformistas, tecer um longo discurso sobre a questão. Disse que os governos escandinavos estudam seriamente a possibilidade de eliminar completamente o dinheiro de papel e as moedas, e instaurar nesses países uma ditadura do cartão de crédito. Quem não tem cartão, melhor nem sair de casa. Fica a pé e morre de fome. E o que haverá por trás disso tudo, perguntei, já sabendo a resposta que Anne me daria. Ela veio a jato: “O controle fascista do indivíduo em nossa sociedade. Com o uso do cartão, eles sabem tudo a seu respeito. O que você come, como dorme, quais são suas preferências de leitura, artísticas, culturais, sexuais, onde você vai, com quem você fala, etc. Tudo e todos sob controle rígido, caro Luis. Como imaginou Orwell no romance ‘1984’, viveremos aprisionados em uma sociedade completamente dominada pelo Estado, e ninguém escapará à vigilância do Grande Irmão!”
Anne parecia uma vikinga inflamada quando fez esse discurso, e o pior, estou certo disso, é que ela tinha razão. O dinheiro vivo é afinal, uma ferramenta de liberdade, já que nos permite viver de modo relativamente anônimo nesta sociedade do consumo. É natural que os governos totalitários que estão sendo montados ao redor do globo queiram eliminá-lo.
Mal com ele, pior sem ele
Apesar disso, o dinheiro, de forma abstrata, continuará existindo, com todos os seus méritos e falhas. Afinal, nada podemos fazer sem ele. De fato, se ele desaparecesse do mapa, tudo seria muito pior.
Para começar, todo o comércio também desapareceria. Sem moedas nem notas, só nos restaria o escambo. As lojas não teriam mais razão de existir e seria muito mais complicado trocar os bens de primeira necessidade, como bebidas, alimentos, roupas e remédios, assim como os produtos tidos como supérfluos, como as máquinas industriais e as peças de carro. Na realidade, a troca é baseada no escambo de produtos com uma coincidência de interesses. E, mesmo que ela ocorra, fazer as trocas não é tão simples assim.
Suponhamos que um produtor de cachaça no Nordeste desejasse comprar uma garrafa do seu vinho gaúcho preferido. Na ausência de lojas, ele teria de ir até o Rio Grande do Sul para localizar o fabricante. Lá chegando, poderia descobrir que não iria conseguir adquirir o seu vinho predileto, pois o produtor não está interessado em trocá-lo por cachaça.
Mão-de-obra especializada extinta
A inexistência de dinheiro não causaria apenas o colapso do comércio, mas também não mais seria possível remunerar os trabalhadores. As indústrias fechariam e a produção de todos os objetos mais complexos sairia completamente de circulação, a começar pelo computador, o celular e a tevê. Em razão disso, não haveria mais empregos para os profissionais especializados, porque em tal mundo seria inútil a existência de engenheiros eletrônicos e técnicos de som.
Não haveria mais necessidade de existirem bancos. Com isso, as poupanças e aplicações desapareceriam. A economia mundial entraria em colapso e, de repente, o mundo descobriria ser demasiadamente pobre para sustentar a população mundial, hoje estimada em mais de 7 bilhões de pessoas. Consequentemente, a tensão social aumentaria e seriam inevitáveis as guerras para obter recursos para sobreviver. Finalmente, a população mundial diminuiria.
Partindo para o mundo da barganha
Num mundo destituído de dinheiro, mais parecido com o da Idade da Pedra do que com o hodierno mundo da produtividade e do consumismo insustentáveis, aqui estão algumas opções possíveis de “moedas”:
Sal e cigarros: Se esse mundo realmente existisse, seria natural para os homens adotar qualquer objeto que funcionasse como uma moeda de troca para usá-lo no “comércio”, como sal, ouro e até mesmo cigarros, como sempre ocorreu em tempos de guerra. Em resumo, a moeda – ainda que de outra forma – acabaria sendo reinventada. Até porque é impossível se fazer algo sem ela.
Pequenos grupos: A organização social mudaria: a família teria de se organizar para produzir os insumos essenciais à sobrevivência e, eventualmente, agregar-se em pequenas comunidades.
O método do escambo: Quantas galinhas por um vestido? Inexistindo as moedas, somente seria possível fazer o escambo, trocando sobretudo os produtos de primeira necessidade, como os alimentos e as roupas. Não haveria necessidade de existir lojas especializadas, que desapareceriam.
Nada de especialização: Muitas profissões e especializações não teriam mais razão de ser. Também desapareceriam as universidades e a grande maioria das escolas.
Força bruta: A força bruta passaria a ser importante não só para cultivar a terra, mas também para lutar e se defender. Presumivelmente, as mulheres teriam um papel de menor importância e de menor autonomia, pois dependeriam muito mais dos homens.
Todos ao trabalho: As pessoas teriam de trabalhar muito mais para sobreviver. O trabalho infantil seria uma regra, não uma exceção. Teríamos uma qualidade de vida bem pior, assim como a nossa expectativa média de vida diminuiria.
Guerra e carestia: Sem o comércio, a economia entraria em colapso e, consequentemente, a produtividade. A população mundial diminuiria muito e as guerras explodiriam por todas as partes.
Por tudo isso, e muito mais, melhor continuar lutando para que o dinheiro continue existindo. Sobretudo no interior de nossos bolsos. Alguns dizem, com acerto, que o dinheiro é coisa do diabo. Mas, como refletem alguns iluminados, até o diabo é necessário. Sem ele não haveria Deus.
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247