Democracia em perigo. Crise climática fortalece a extrema-direita
Não cabe aos cientistas definir as políticas de luta contra as alterações climáticas, afirma o sociólogo alemão Nico Stehr. A urgência em agir não justifica o autoritarismo.
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Por: Nico Stehr. Fonte: Revista Nature, Londres
A democracia enfrenta múltiplas ameaças. Parte da opinião pública tem a sensação de não ser ouvida pelos dirigentes políticos. Esse descontentamento traduz-se no crescimento da extrema-direita: o Tea Party nos EUA, o Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP), os manifestantes alemães do Pegida (Patriotas Europeus Contra a Islamização do Ocidente) ou a Frente Nacional na França.
Curiosamente, a elite política suscita uma irritação parecida na comunidade científica. Os homens e mulheres da ciência se irritam com a indiferença dos líderes políticos perante os alertas sobre as consequências a longo prazo das alterações climáticas. Estas são provocadas pela atividade humana, diagnóstico que é agora objeto de sólido consenso científico.
Se os governos não tomam medidas, a democracia pode começar a surgir aos olhos de muita gente como um sistema que não funciona. Daí vem a ideia de retirar poder de decisão à classe política e aos cidadãos, delegando-o aos cientistas, dadas as condições excecionais que estamos vivendo. Ora, para resolver o espinhoso problema do aquecimento global, há que reforçar a democracia e não voltar-lhe as costas.
As iniciativas dos países democráticos têm sido decepcionantes. As grandes conferências do clima ocorridas nos últimos dez anos em Copenhague, Cancun, Durban e Varsóvia foram enormes fiascos. E a recente conferência de Paris não suscita grandes esperanças. Cada vez mais intelectuais apontam a democracia como um dos motivos desse fracasso.
Não existem formas “boas” de autoritarismo
Em 2009, o jornal britânico The Guardian citava o climatologista da NASA James Hansen, para quem "o processo democrático não parece funcionar bem". No ano seguinte, o cientista político australiano Mark Beeson escrevia, numa edição especial da revista Global Environmental Politics, que formas “boas" de autoritarismo “podem tornar-se não só justificadas como essenciais à sobrevivência da humanidade". O título de um artigo de opinião publicado no início do ano na revista digital The Conversation, criada por universidades, resume o problema: “A crise oculta da democracia liberal cria um bloqueio no que toca às alterações climáticas".
Esta descrição das democracias contemporâneas como sistemas mal equipados para enfrentarem a ameaça climática baseia-se em ideias preconcebidas e numa visão pessimista da natureza humana: as pessoas têm escassa inclinação para se mobilizarem por questões que parecem longínquas e não possuem capacidade intelectual para compreender problemas complexos.
Acrescente-se a isso a presumível ignorância científica da maioria dos políticos e do próprio eleitorado, a incapacidade dos dirigentes, mesmo os mais iluminados (sujeitos a ciclos eleitorais curtos), em resolver problemas a longo prazo, a influência dos direitos adquiridos sobre os programas políticos, a dependência dos combustíveis fósseis e a impressão dos climatologistas de que os políticos fazem ouvidos moucos à sua mensagem. Todas estas considerações estão sendo constantemente evocadas nas mais altas esferas da climatologia.
Comodismo e ignorância
Em entrevista à revista Der Spiegel, em 2011, Hans Joachim Schellnhuber, fundador e diretor do Instituto de Investigação sobre o Impacto das Mudanças Climáticas de Potsdam e presidente do Conselho Consultivo alemão para as alterações climáticas, declarava: "O comodismo e a ignorância são os piores defeitos da natureza humana. A sua combinação pode ser fatal."
Há alternativa? Para muitos, a solução reside na tecnocracia, forma de governo em que as decisões são tomadas por quem tem conhecimentos técnicos. Esta opinião transparece nas declarações de autores dos relatórios do Painel intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla inglesa) que ultrapassam o seu papel consultivo e fazem recomendações políticas.
Soluções autoritárias não funcionam
Devemos refletir sobre o que queremos. Países que optaram pela “modernização autoritária", como a China e a Rússia, também não se podem gabar de grandes sucessos ambientais. Nos últimos dois ou três anos, Pequim tornou-se líder mundial nas energias renováveis (os seus investimentos no setor representam mais de um quarto do total mundial). Ainda assim, está longe de alcançar as suas ambiciosas metas ambientais e continuará a ser o maior emissor planetário de gases de efeito estufa. À medida que os chineses se tornarem mais ricos e instruídos, pressionarão no sentido de uma política ambiental mais democrática.
Foi através do debate democrático sobre a importância da natureza para a humanidade que as regulamentações ambientais obtiveram apoio alargado. As democracias aprendem com os erros, enquanto os regimes autoritários carecem de flexibilidade e capacidade de adaptação. Foram os países democráticos que forjaram os acordos internacionais mais eficazes, como o Protocolo de Montreal contra substâncias que destruíam a camada de ozônio (assinado em setembro de 1986 por 24 países e ratificado, até 2009, por 196).
Os cientistas impacientes tendem a privilegiar atores hegemônicos, como as potências mundiais, os Estados, as organizações transnacionais e as empresas multinacionais. A seu ver, políticas à escala planetária valem mais do que o saber local. Mas as tendências da sociedade vão no sentido inverso. As grandes instituições estão perdendo a capacidade de impor a sua vontade aos cidadãos. As pessoas cada vez mais mobilizam-se e se manifestam por causas e iniciativas locais. A avaliação pessimista da democracia perante circunstâncias excepcionais está ligada a uma avaliação otimista dos efeitos da planificação econômica e social a longo prazo. Nesta ótica, as incertezas em torno de acontecimentos políticos, econômicos e sociais são obstáculos menores, ultrapassáveis com as políticas preconizadas pelos especialistas. Mas a capacidade de planejamento do ser humano é limitada. A planificação centralizada caiu em desuso, e por boas razões.
Os argumentos a favor de uma política autoritária centram-se no efeito que se espera alcançar: a redução das emissões de gases de efeito estufa. Ao concentrarem-se neste objetivo, mais do que nas condições econômicas e sociais, as políticas para o clima reduzem o assunto a questões meramente científicas ou técnicas. Ora, há mais fatores a ponderar. Os assuntos ambientais estão ligados a problemas políticos, econômicos e culturais tão amplos como o leque de medidas para os solucionar. O conhecimento científico, por si só, não tem efeitos imediatos nem é muito convincente.
Ciência versus liberdade
Só há um regime capaz de encarar com mentalidade racional e legitimidade os interesses políticos divergentes afetados pelas alterações climáticas: a democracia. Só esta pode resolver os conflitos que dividem ou opõem países ou comunidades, escolher entre políticas diferentes e dar expressão às aspirações das diferentes camadas da população.
A aposta mais importante e mais urgente é reforçar a democracia, reduzindo as desigualdades sociais. Sem isso, o grande leque composto pelas ameaças à civilização irão se resumir ao ambiente, passando, também, pela erosão da democracia.
O filósofo Friedrich Hayek, critico da planificação social e econômica no século 20, assinalou um paradoxo que permanece atual. À medida que a ciência avança, reforça-se a ideia de que deveríamos "procurar um controle mais global das atividades humanas".
Pessimista, Hayek acrescentava: "É por isso que os que se inebriam com o progresso científico se tornam, tantas vezes, inimigos da liberdade". É perigoso acreditar cegamente que só a ciência e os cientistas podem apontar o caminho a seguir.
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