Como transformar um bebê generoso em um monstro egoísta
Somos todos, desde o nascimento, dotados de altruísmo. Mas esse instinto natural está sendo destruído pelas exigências da vida moderna – com destaque para o consumismo e a produtividade insustentáveis. É o que afirma um novo livro do psicoterapeuta britânico Graham Music
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Por: Luis Pellegrini
“Em nossa sociedade, estamos perdendo empatia e compaixão ao lidar com as outras pessoas”, afirma Graham Music, conhecido autor e psicoterapeuta de crianças e adolescentes nas clínicas Tavistock e Portman, em Londres. Em seu novo livro "The Good Life: Wellbeing and the new science of altruism, selfishness and immorality" (A boa-vida: O bem-estar e a nova ciência do altruísmo, egocentrismo e imoralidade) que será lançado na Inglaterra no final de maio, Graham Music sugere que as mudanças sociais e comportamentais atualmente em curso, bem como a mudança do próprio sentido da relação humana no seio de uma sociedade cada vez mais injusta e desigual produz, como primeira consequência, o esfriamento do coração das pessoas.
Segundo esse psicoterapeuta, todos nós temos propensão para nascer dotados de um coração grande e gentil, mas, muito cedo, levados pela educação e os condicionamentos, somos mais e mais empurrados para sermos egoístas e frios.
“Existe uma grande quantidade de evidências de que a velocidade insana da vida de hoje, e a ansiedade dela resultante, tem um enorme impacto sobre a forma como lidamos com as outras pessoas. Nós todos sabemos disso, mas parecemos não nos dar conta da gravidade do problema. Vivemos em um mundo homem-lobo-do-homem e temos de nos manter perpetuamente vigilantes para não sermos devorados. Mas o preço dessa vigilância incessante é o estresse. E com o estresse ocorrem mudanças realmente fundamentais em nosso comportamento. Os resultados desse processo são muito empobrecedores, em todos os sentidos, sobretudo no que diz respeito à saúde, à expectativa de vida e à felicidade”, alerta Graham Music.
Reality-shows exercem péssima influência
No ano passado, um estudo levado a cabo pela Universidade de Michigan demonstrou que adolescentes expostos às crueldades apresentadas nos reality-shows hoje levados ao ar pelas televisões em todo o mundo, tornam-se socialmente ainda mais agressivos. Programas como Big-Brother, X Factor, Britain Got Talent, e muitos outros da mesma linha, são famosos por transformar em entretenimento situações de brigas, conflitos e discussões vulgares e fúteis, bem como os julgamentos cruéis e muitas vezes humilhantes de outras pessoas.
Graham Music afirma que essas situações explícitas de maldade apresentadas em programas televisivos do gênero é um exemplo claro de como e o quanto estamos nos tornando frios em relação ao sofrimento alheio.
Este novo livro de Graham Music será o mais recente de uma série de publicações que sugerem a ocorrência na atualidade de um sério desequilíbrio sócio-comportamental no Reino Unido. Tais obras reúnem décadas de pesquisa experimental social e baseiam-se na experiência de seus autores que, como Music, são sociólogos ou psicólogo-sociais. Mas, extrapolando os limites da Grã-Bretanha, suas conclusões pintam um quadro sombrio da sociedade ocidental como um todo: Um mundo que vê a cada dia mais minada a sua tendência natural para a empatia, ao mesmo tempo em que caminha a passos largos para a sordidez social.
Em seu livro, Music contesta a noção – defendida por algumas escolas de psicologia - de que as crianças nascem egoístas. Ele aponta uma série de experimentos realizados no Instituto Max Planck, na Alemanha , quando dois grupos de crianças de 15 meses foram colocados em salas onde um adulto fingia precisar de ajuda. Em um dos grupos, as crianças foram avisadas que ganhariam uma recompensa se fossem ajudar o adulto necessitado. Para o outro grupo nada foi dito, não havendo portanto nenhuma recompensa em questão. Nos testes, no entanto, a imensa maioria das crianças dos dois grupos correram igualmente para ajudar o adulto em apuros, mostrando que o estímulo do prêmio era desnecessário. A criança corre em ajuda do outro obedecendo a um simples e natural instinto de solidariedade. Ela não precisa ser “comprada” para que isso ocorra.
A recompensa não torna ninguém feliz
Outros estudos mostram que as crianças se sentem mais felizes dando do que recebendo, diz Music. “Temos evidências de que adolescentes que se propuseram a praticar pelo menos uma boa ação por dia tornam-se menos ansiosos e deprimidos. Nós evoluímos para sermos úteis, para não negarmos ajuda ao próximo carente e para ajudar sem expectativa de recompensa. A recompensa não torna ninguém feliz. Algo de muito fundamental é perdido quando recompensamos certas atitudes e comportamentos. Todos nós sabemos disso, mas perdemos esse fato de vista quando nos deixamos sugar para dentro do ethos consumidor, quando nos deixamos convencer por essa insistência profunda de que necessitamos de um novo iPhone ou de uma nova cozinha para sermos felizes. Quando nos tornamos prisioneiros dessa convicção errônea, tendemos a repetir o gesto e a consumir mais e mais. Os vetores do capitalismo pós-industrial em prol do consumismo, bem como os apelos constantes da mídia, trapaceiam nossas necessidades tornando-as falsas. A verdade é que não se pode vender – nem comprar – bem estar e felicidade”.
Music também aponta o estresse que vivemos quando nos mantemos num estado permanente de conflito representado pelo “lutar ou fugir”. “Não faz nenhum sentido interessar-se pelos outros, por aquilo que os outros sentem ou pensam, se o nosso sistema nervoso está em permanente estado de fluxo e de agitação”, ele diz.
O livro detalha também diversas experiências sociais, incluindo uma de 1973, quando estudantes de teologia foram informados de que tinham de dar uma palestra sobre a parábola do Bom Samaritano. À metade foi dito que deveriam fazê-lo imediatamente, e ao resto foi dado um tempo de preparação. Quando, todos juntos, os alunos saíram da sala, eles passaram por um ator que simulava estar necessitando de ajuda. Os alunos que tinham de dar a palestra quase em seguida passaram pelo homem e praticamente o ignoraram. Mas os outros, que dispunham de mais tempo, pararam para ajudar.
“A velocidade da vida exerce um impacto sobre o nosso altruísmo”, diz Music. “Isso também está acontecendo nas escolas. O estresse está se infiltrando em nossas escolas, dominadas por currículos pesados e acadêmicos, constituindo uma verdadeira cultura de auditoria. Estou muito preocupado com isso, porque diariamente testemunho seus efeitos nefastos nas crianças que atendo em minhas clínicas”.
Music afirma que existe hoje uma necessidade desesperadora de repensar nossas tendências materialistas. “Este mundo ocidental cada vez mais monetarizado está nos fazendo perder o contato com nossas obrigações sociais”, ele conclui.
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