Caos egípcio: crise pode incendiar toda a galáxia muçulmana
O atual conflito no Egito entre as forças militares e a Irmandade Muçulmana não constitui apenas mais um episódio sangrento da interminável crise vivida no Oriente Próximo. Seu alcance é muito maior e poderá contaminar todo o mundo islâmico
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Por: Lucio Caracciolo, jornal La Repubblica, Itália
Esta não é uma crise egípcia, é uma crise mundial. Mas o mundo a observa impotente, sem saber como serená-la. Talvez por não perceber o seu alcance global.
As manifestações de solidariedade à Irmandade Muçulmana, no entanto, já se estenderam do Magreb à Indonésia. Elas, inclusive, se fazem sentir a poucas quadras de nossas casas em Roma ou Paris. Tais manifestações deveriam nos lembrar que não estamos apenas diante de uma violenta contenda intestina entre islâmicos e militares, como na Argélia dos anos 90, mas sim diante de um embate destinado a influir nas relações de força da inteira galáxia muçulmana.
A coisa vai além. Nas ruas e praças do Cairo, bem como em Alexandria e no Sinai, em Suez e no Alto Egito, está amadurecendo uma nova geração de jihadistas que terá nos "mártires" da matança em curso o próprio ponto de referência. Se é verdade que o 11 de setembro nasceu nas prisões de Mubarack, é melhor cruzar os dedos ao se imaginar o que poderá escapar dos cárceres (e dos cemitérios) do general al-Sisi.
A repressão movida pelas forças armadas egípcias não golpeia, com efeito, apenas uma grande organização radicada há 85 anos na sociedade nacional do país. Ela mira ao coração de uma rede transnacional, a rede da Irmandade Muçulmana, espalhada na inteira galáxia islâmica e com ramificações também entre os maometanos do Ocidente, dos Estados Unidos à Europa.
Essa rede é dotada de uma classe dirigente muitas vezes qualificada, recrutada nos círculos dos profissionais, bem como nas universidades e no comércio. "Erradicar" os Irmãos Muçulmanos não é possível. Certamente não no Egito, que é a sua terra de fundação e de inspiração, e nem em qualquer outro lugar, exatamente por causa da sua estrutura reticular de solidariedade. Essa rede conhece diversas declinações, várias agendas nacionais e locais, e inclusive algumas rivalidades, mas não conhece fronteiras intransponíveis.
Essa confraria não é a FIS (Frente Islâmica de Salvação), alvo da repressão dos militares argelinos nos anos noventa. Daquela guerra civil que lhe foi consequência, e que causou duzentos mil mortos sob o olhar indiferente do Ocidente, surgiu toda uma geração de terroristas que até hoje infesta o Magreb.
Se os chefes da Irmandade Muçulmana ainda insistem em predicar a não violência, é coisa certa que pelo menos uma parte dos seus afiliados decidirá recorrer às armas – e, portanto, também ao terrorismo – para reagir ao massacre atualmente em curso. São esses que responderão ao chamado de Ayman al-Zawahiri, o pediatra egípcio que hoje comanda aquilo que sobrou da Al Qaeda. Há décadas ele que, no entanto, aderira à Irmandade quando era jovem, aponta-lhe o dedo, acusando-a de ludibriar os "verdadeiros muçulmanos" por não querer restabelecer o califado através da guerra santa.
Embora seja verdade que Morsi e os que o acompanhavam tenham cometido todos os erros possíveis durante o ano em que estiveram no poder – e isso é admitido até mesmo por um dos líderes máximos da Irmandade, Muhammad Biltagi – permanece o fato de que o atual golpe militar cristalizou, para satisfação silenciosa de muitos líderes ocidentais, o princípio segundo o qual, em certas latitudes, o voto vale apenas quando vencem os "nossos", ou aqueles que consideramos como tal. Este excesso de cinismo está destinado a cair sobre as cabeças daqueles que o idealizaram.
As ondas de choque do tsunami egípcio, ápice atual do movimento ainda subterrâneo que grassa no inteiro fronte sul do Mediterrâneo, ameaça antes de tudo a nós, italianos, e as nações europeias mediterrâneas que estão mais expostas não apenas pela proximidade geográfica mas também pela amplitude das comunidades muçulmanas nelas emigradas. As vozes anêmicas que se manifestam de Roma a Paris, de Londres a Berlim, testemunham nossa angustiada impotência. A mascara tragicômica da baronesa Ashton (1) não impressiona ninguém, com certeza não ao general al-Sisi.
Até aqui, nada de novo. O que é realmente inquietante é a clara incapacidade dos Estados Unidos para influir nos acontecimentos egípcios. A estratégia de Obama parece se reduzir até agora no apoio ao patrão, o provisório vencedor da vez, fosse ele Mubarack, o Comando supremo das forças armadas, ou Morsi, pouco importa. Se entrincheirar-se abertamente por trás do açougueiro al-Sisi é coisa que sequer pode ser proposta, alguma outra alternativa viável ainda não surgiu no horizonte. É demasiado evidente a debilidade e o duplo jogo dos assim chamados cairotas "laicos", muitos dos quais aplaudem os soldados que atiram contra a multidão na ilusão de que, assim que o trabalho sujo estiver feito, o general al-Sisi passará a se dedicar à jardinagem e concederá a eles um poder que, a partir das urnas, nunca conseguiriam obter.
O impasse de Obama é certificado pela patética anulação das manobras conjuntas entre militares norte-americanos e egípcios. Al-Sisi não deu nenhum passo para trás. Talvez não o fizesse nem sequer se, num sobressalto de verdade, a Casa Branca decidisse dar seu verdadeiro nome ao golpe de estado anti-Morsi, com isso congelando por lei o bilhão e meio de dólares anuais que deposita no caixa das forças armadas egípcias. Os generais do Cairo não podem mais ser chantageados. Sabem que, para eles, é questão de vida ou morte. Se não conseguirem reprimir no sangue o protesto da Irmandade, acabarão diante de um pelotão de fuzilamento ou simplesmente linchados pela multidão.
Quem olha a situação do alto tem quase a impressão de que o Egito voltou à normalidade: os militares no poder à frente de um estado policial, os Irmãos Muçulmanos protestando e se fazendo de vítimas, os assim chamados liberais relegados ao limbo da não-influência, os membros do "partido do sofá" – que constituem a maioria silenciosa – cheirando o vento, prontos para se perfilarem ao lado do novo faraó, os cristãos coptas, mais uma vez, transformados em objeto das represálias dos islâmicos. Quanto aos salafitas, a novidade no cenário político pós Mubarak, esperam para ver se poderão tirar alguma vantagem da derrota dos apoiadores de Morsi, ou se serão atirados no abismo do esquecimento.
Mas as aparências enganam: agora, rompeu-se o vaso de Pandora, não existem faraós e nem outras autoridades intocáveis. Nem sequer os chefes do ainda prestigiado Exército Nacional. Ninguém, nem dentro nem fora do Egito, dispõe da fórmula mágica para novamente trancar o gênio dentro da garrafa. A revolução faliu, é certo. Ela talvez se suicidou, ou então foi suicidada. Talvez um dia ressurgirá. Mas a barragem do status quo desmoronou. As regras do velho jogo não funcionam mais. Não existem bombeiros capazes de dominar esse incêndio. As chamas se apagarão apenas quando o combustível estiver exaurido. Infelizmente, no Egito, e em toda aquela região e no mundo islâmico, existe ainda muito combustível à disposição. Sem falar nos incendiários que estão prontos a acender novos pavios.
(1) A baronesa Catherine Ashton é a atual chefe da diplomacia europeia. Ela garantiu há poucos que a responsabilidade da "tragédia" no Egito recai principalmente no governo interino e anunciou que a União Europeia discutirá possíveis medidas de retaliação à violência vivida no país norte africano. Ashton considerou "aterrorizante" o saldo de mortos e feridos, e explicou em comunicado que esteve em contato com os ministros europeus das Relações Exteriores e pediu aos países que estudem "medidas apropriadas" para responder a essa violência (Nota da Redação).
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