Anzick, o elo perdido: Descoberto o ancestral dos nossos índios

A análise do DNA de uma criança enterrada no estado de Montana há mil anos confirma que os nativos das Américas Central e do Sul têm a mesma origem: o Povo Clóvis, originário do nordeste da Ásia

A análise do DNA de uma criança enterrada no estado de Montana há mil anos confirma que os nativos das Américas Central e do Sul têm a mesma origem: o Povo Clóvis, originário do nordeste da Ásia
A análise do DNA de uma criança enterrada no estado de Montana há mil anos confirma que os nativos das Américas Central e do Sul têm a mesma origem: o Povo Clóvis, originário do nordeste da Ásia (Foto: Gisele Federicce)


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A ilustração mostra como deveriam ser os indígenas do Povo Clóvis, há 13 mil anos

 

 

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Por: Revista Science, Washington

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Eles viveram na região central da América do Norte há cerca de 13 mil anos. Caçavam mamutes, mastodontes e o grande bisão de longos cornos. Os indivíduos que integravam o Povo Clóvis, como ele é chamado pela moderna antropologia, não foram os primeiros humanos a viver na América, mas representam a primeira cultura humana a desfrutar de uma vasta expansão no continente americano. A partir de recentes descobertas, tudo leva a crer que todas as civilizações que surgiram nas Américas Central e do Sul descendem de um grupo do Povo Clóvis que decidiu migrar para o Sul. Mas, na América do Norte, o núcleo original dessa cultura desapareceu misteriosamente apenas alguns séculos após o seu desabrochar.

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Ilustração de algumas das várias etnias indígenas que povoaram as Américas ao longo de muitos milênios

 

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Nas últimas décadas, os meios acadêmicos discutem acaloradamente quem foi o Povo Clóvis e qual a sua relação com os nativos americanos dos dias atuais. Parece não haver grandes dúvidas de que essa cultura desempenhou um papel-chave no povoamento de todo o continente americano.

 

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Mapa mostrando as migrações humanas, a partitr da África, até chegar às Américas

 

Até hoje foi encontrado apenas um único esqueleto humano associado às ferramentas e utensílios geralmente líticos (pontas de flecha e de lanças feitas em pedra, etc) produzidas pela cultura Clóvis. Mas esse esqueleto figura entre os mais velhos restos mortais de humanos encontrados no continente americano. Trata-se do que sobrou do corpo de um menino pequeno, com idade entre 1 ano e 1 ano e meio, encontrado num sítio funerário de 12.600 anos, batizado Anzick Site, em Wilsall, Montana, EUA. Há pouco, uma equipe internacional chefiada pelo pesquisador dinamarquês Elske Willerslev completou o genoma desse pequeno esqueleto, e com isso reacendeu o debate científico a respeito da colonização do continente americano.

 

O antropólogo Dennis Stanford, do Smithsonian National Museum, posa com parte da impressionante coleção de artefatos da Cultura Clóvis

 

Em Wilsall, ossos e objetos pintados de ocre

 

Sarah Anzick tinha 2 anos quando, em 1968, um operário descobriu uma centena de utensílios de pedra e osso num terreno que pertencia à sua família (o local foi batizado com o seu sobrenome, Anzick). Os objetos estavam cobertos por uma camada de ocre vermelho; tinham sido enterrados com o crânio de uma criança, também coberto de ocre.

 

A geneticista Sarah Anzick. No sítio da família foi encontrado o esqueleto do Menino de Anzick

 

Nos anos seguintes, usando datação por carbono 14 e outros métodos, os arqueólogos determinaram duas coisas: o crânio tinha 12 mil e 700 anos, tratando-se do local funerário mais antigo da América do Norte; os utensílios pertenciam à cultura Clóvis, uma das mais antigas do Novo Mundo. Sarah  cresceu e tornou-se geneticista no Instituto Nacional de Saúde (NIH) e o seu sonho passou a ser sequenciar esses ossos.

Sarah Anzick é coautora de um artigo publicado em fevereiro de 2014, na revista Nature, que apresenta os resultados do sequenciamento completo do “menino de Anzick”. Vindos da Universidade de Copenhague, e especialistas na aplicação da genética aos estudos do passado da humanidade no planeta, os paleontólogos Elske Willerslev e Morten Rasmussen, especialistas em paleontologia, chegaram a uma conclusão surpreendente: a criança é um antepassado direto dos povos indígenas das Américas Central e do Sul!

 

Shane Doyle (esquerda) conta a Eske Willerslev, Sarah Anzick e Larry Lahren a história da descoberta do sitio de Anzick

 

“Os resultados são convincentes e tudo indica que o Menino de Anzick fazia parte da comunidade que deu origem a todas as populações do continente americano”, explica a geneticista Connie Mulligan, da Universidade da Flórida em Gainesville. Se forem comprovados, esses resultados refutarão a hipótese de um povo oriundo da Europa Ocidental ter dado origem à cultura Clóvis. O estudo também contraria a ideia de que os nativos americanos atuais descenderiam de imigrantes que teriam chegado depois dos primeiros paleoamericanos.

É uma boa notícia para as tribos que reclamam para que alguns esqueletos célebres voltem a ser enterrados, seja esse do Menino de Anzick, seja o do homem de Kennewick, datado de 9.400 anos e encontrado (em 1996) no estado de Washington. “É a prova de que o homem de Kennewick era nativo americano”, explica Dennis Jenkins, arqueólogo da Universidade do Oregon. A criança de Montana poderá voltar a ser enterrada em maio do ano próximo, indica Sarah Anzick, cuja família é proprietária das ossadas.

 

Assim deveriam ser e viver os indígenas do Povo Clóvis

 

Os cientistas esperaram muito tempo pela possibilidade de estudar o DNA dos primeiros americanos para encontrar o rastro das suas origens. Conseguiram desenvolver técnicas para recuperar DNA de ossadas mal conservadas, apesar de  terem a cooperação dos nativos americanos. Se os cientistas puderam estudar os restos do Menino de Anzick foi porque estes foram encontrados numa propriedade privada onde os direitos dos povos indígenas para recuperar e voltar a enterrar os restos mortais (Lei NAGPRA) não se aplicam.

A equipe de Eske Willerslev extraiu DNA de fragmentos de ossos do crânio e de uma costela do menino e sequenciou-o. Seguidamente, os investigadores compararam este genoma com o de 143 populações não-africanas contemporâneas, entre as quais 52 nativo-americanas: 45 amostras de DNA provenientes da América Central e do Sul, e sete do Canadá e do Ártico, mas nenhuma do continente (48 estados americanos sem contar com o Havaí e o Alasca). lsso porque os índios do território continental dos EUA se recusam a fornecer amostras de DNA.

 

Ilustração de parte da mega fauna que existia na América do Norte há 13 mil anos, época da Cultura Clóvis

 

A hipótese da bifurcação

 

Os investigadores conseguiram, no entanto, determinar que o genoma do Menino de Anzick está mais próximo das populações autóctones americanas atuais do que de qualquer outro povo do mundo. “O DNA dessa criança assemelha-se mais ao que se encontra na América Central e do Sul do que ao da América do Norte”, explica Eske Willerslev. Ao mesmo tempo, comparações do genoma do Menino de Anzick com o de um jovem siberiano de 24 mil anos e de um paleoesquimó da Groelândia com quatro mil anos confirmam que os nativos americanos são mesmo oriundos do nordeste da Ásia.  

Como explicar essa diferença? Os investigadores avançam a hipótese de uma população ancestral que apareceu milhares de anos antes do Povo Clóvis ter se dividido: um grupo ficou no norte e o outro partiu para o sul. As amostras genéticas  permitem determinar onde e quando essa divisão aconteceu, informam Eske Willerslev e Morten Rasmussen. Os habitantes do Norte teriam se misturado, em seguida, com os migrantes que chegaram posteriormente da Ásia, afastando-se Iigeiramente do patrimônio genético do Menino de Anzick.

 

O sítio arqueológico de Anzick, no estado norte-americano de Montana

 

Este estudo é “um verdadeiro processo técnico e analítico”, afirma Theodore Schurr, antropólogo da Universidade da Pensilvânia. Mas Schurr reconhece que a ausência de dados sobre o genoma dos índios que vivem no território dos EUA pode distorcer o resultado da análise. Para ele “os autores deveriam ser mais prudentes antes de proferir declarações definitivas”, a propósito da cultura Clóvis, pois “por enquanto, só possuem uma amostra muito pequena das populações indígenas da América do Norte”. Os investigadores gostariam de ter mais informações sobre os índios dos EUA. “Esperamos dialogar com as populações locais e que estudos como esse as incitem a participar dos estudos genéticos”, frisa Morten Rasmussen.

Shane Doyle, professor de Estudos Indígenas na Universidade de Montana, partilha a mesma esperança. Ele é o responsável pelas negociações sobre o enterro do Menino de Anzick com a família, os investigadores e 11 tribos locais. Compreende a importância dessas investigações para os nativos atuais. “lsso vai revolucionar a nossa forma de pensar nos paleoamericanos e nas suas ligações com as tribos modernas", afirma.

 

Magníficas pontas de lança feitas pela Cultura Clóvis com o uso de silex

 

Doyle e Sarah Anzick (falando em nome da família e não do NIH) aguardam informações sobre a forma como o menino será enterrado, de forma a não comprometer seu material genético, para que, graças a novas técnicas que certamente surgirão, ele possa ser futuramente estudado. Schurr compartilha dos seus receios: “É por isso que os cientistas se opõem à Lei NAGPRA: podemos aprender muito com as amostras de DNA dos cemitérios indígenas!”

Doyle e Anzick concordam, no entanto, que a criança deve ser enterrada, por respeito aos seus descendentes nativo-americanos. “O Menino de Anzick nos fez uma dádiva fabulosa. Agora é preciso fazer-lhe o mesmo e deixá-lo encontrar o seu lugar de descanso final”, reconhece Doyle.

 

Mamutes e mastodontes estavam entre as principais presas dos homens Clóvis. A ilustração mostra como deveria ser a técnica de caça dos indígenas Clóvis a esse enormes mamiferos

 

ÁSIA OU VALE DO LOIRE?

A cidade de Clóvis, no Novo México, deu nome à cultura pré-histórica paleoamericana que floresceu na região no fim do último período glaciar, há cerca de 13 mil anos. Dessa cultura foram encontradas muitas pontas talhadas em pedra, osso ou marfim. Mas os teóricos divergem sobre a proveniência desses restos e sobre o lugar que essa cultura ocupava. A maioria dos paleontólogos acredita que a cultura Clóvis veio do nordeste asiático, passando através do Estreito de Bering, e que foi a primeira a chegar ao continente americano.

A essa teoria opõe-se uma outra, a da Hipótese Solutreana (batizada com o nome do lugar de Solutré, em Mâcon, na região francesa de Saône-et-Loire): uma povoação ainda mais antiga, proveniente da Europa. As semelhanças na forma como as pontas são talhadas e sobretudo as características do homem de Kennewick, cujos traços se assemelham aos de um europeu, são consideradas provas que corroboram essa hipótese.

 

Peças variadas produzidas pela Cultura Clóvis

 

A LEI DO SANGUE

A Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA, lei sobre a proteção e repatriamento de sepulturas de nativos americanos), aprovada em 1990, determina que os bens culturais nativos americanos desenterrados sejam devolvidos aos seus descendentes. Os arqueólogos estão, no entanto, autorizados a estudar as suas descobertas, mas têm de faze-lo com rapidez. Esta lei aplica-se tanto aos restos mortais como aos objetos funerários.

 

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