Alerta global. A Terra não aguenta mais o uso e abuso dos solos
Relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas especificamente sobre o uso do solo foi divulgado esta quinta-feira (8 de agosto) em Genebra, na Suíça. Os especialistas apresentam um diagnóstico de uma Terra debaixo de uma dupla pressão produzida pelo homem e das alterações climáticas. Previsões e soluções.
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Por: Andrea Cunha Freitas
Fonte: www.público.pt
A Terra está sob uma crescente pressão humana e as alterações climáticas estão aumentando ainda mais essa pressão. Esta pode parecer uma constatação óbvia, mas, desta vez, os especialistas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da ONU (IPCC, na sigla inglesa) fornecem uma série de dados, argumentos, previsões e até possíveis soluções para evitar o desastre. Está tudo no relatório sobre Alterações Climáticas e Solo que foi apresentado esta quinta-feira de manhã em Genebra. O importante documento mostra como o insustentável peso do homem na Terra é um problema que só pode ser resolvido pelo homem, com mudanças e adaptações e, sobretudo, com a redução de emissões de gases de efeito de estufa. “Sustentabilidade” ainda é a palavra-chave para um futuro melhor.
Se a superfície da Terra fosse uma pele, estaria seca, enrugada, coberta de cicatrizes, queimaduras e feridas abertas. Sem recurso a qualquer metáfora, sobra a realidade nua e crua: a atividade humana degradou os solos, expandiu os desertos, derrubou florestas, eliminou vida selvagem, entre outros danos. Até agora, o homem fez com que o solo passasse de um meio para combater as alterações climáticas para um agente causador dessa mudança. Os especialistas avisam que estamos forçando os limites da Terra, o uso do solo há muito tempo se tornou abuso. Há soluções e quase todas envolvem o conceito de sustentabilidade – a única forma de aliviar o peso do homem e das alterações climáticas no planeta.
Produção de gases aumenta
Estima-se que entre um quarto e um terço de todas as emissões de gases com efeito de estufa provenham do uso do solo. A agricultura, desflorestamento e outros usos da terra são responsáveis por 23% de todas as emissões de gases com efeito de estufa (CO2, metano, óxido nitroso). Se juntarmos ainda as emissões associadas as atividades pré e pós-produção do setor alimentar, a estimativa estará entre os 21% e 37%. Os processos naturais da Terra absorvem apenas o CO2 equivalente a quase um terço das emissões de gases com efeito de estufa (GEE) produzidos pelos combustíveis fósseis e indústria.
Mais de 70% da superfície da Terra (que não está coberta pelo gelo) é diretamente afetada pelo uso humano. Um quarto dessa superfície é sujeito a uma degradação induzida pelo homem. A erosão nos terrenos agrícolas está estimada como sendo dez a 20 vezes (no caso dos campos não lavrados) até a mais de 100 vezes (nos lavrados) superior à taxa de formação de solo.
Há mais: a agricultura é responsável por 70% do atual consumo de água no planeta. No comunicado à imprensa, Hans-Otto Pörtner, um dos especialistas no grupo de trabalho do IPCC, constata que os terrenos que atualmente são usados poderiam alimentar o mundo e fornecer biomassa para energia renovável, mas, para isso, é preciso que a ação em várias áreas comece cedo e chegue longe. “O mesmo vale para a conservação, recuperação de ecossistemas e biodiversidade”, acrescenta.
Atualmente entre 25% e 30% da produção de alimentos é desperdiçada ou perdida. Dados recolhidos desde 1961 mostram que o fornecimento per capita de óleos vegetais e carne mais do que duplicou e o de calorias per capita nos alimentos aumentou cerca de um terço. Cerca de 2 bilhões de adultos têm excesso de peso ou são obesos. Estima-se que existam 821 milhões de pessoas gravemente subnutridas.
Mudar a alimentação
Durante a semana, as notícias já faziam antever o tom dos especialistas reunidos em Genebra, na Suíça, na reunião do IPCC que deveria servir para discutir as alterações climáticas e o uso do solo. Íamos ouvir falar na urgência de avançar para biocombustíveis, substituir plásticos e fibras por material vegetal, proteger a vida selvagem, regular a produção de madeira e ter novas formas mais sustentáveis de alimentar uma população cada vez maior. O relatório, previa-se, deveria sublinhar que é preciso fazer escolhas sobre a forma como usamos o solo e que essas escolhas seriam difíceis. E são – porque mudam muita coisa.
“Este relatório mostra que uma melhor gestão do solo pode contribuir para combater as alterações climáticas, mas não é a única solução. Reduzir as emissões de gases de efeito estufa de todos os setores é essencial, se se pretender que o aquecimento global seja mantido a menos de dois graus centígrados, se não mesmo 1,5 graus”, refere o comunicado de imprensa que recorda a meta definida em 2015 no Acordo de Paris.
Um dos cavalos-de-batalha, também se adivinhava há já algum tempo, seria a produção e consumo alimentar, e, mais especificamente, o alto consumo de carne vermelha, que põe o planeta sob uma pressão insuportável, seja por precisar de solos para produzir ração animal, seja pela água e outros recursos que explora de forma intensiva.
“Algumas escolhas alimentares exigem mais terra e água e causam mais emissões de gases”, afirma Debra Roberts, que também assina o relatório do IPCC, recomendando dietas equilibradas com alimentos à base de plantas e grãos, tais como cereais (exceto o trigo e o arroz), legumes, frutas e vegetais, e produtos sustentáveis de origem animal que sejam produzidos em sistemas com reduzidas emissões de GEE.
O relatório destaca que as alterações climáticas afetam os quatro pilares da segurança alimentar: disponibilidade (rendimento e produção), acesso (preços e capacidade de obter alimentos), utilização (nutrição e cozinha) e estabilidade (interrupções na disponibilidade). “Veremos diferentes efeitos em diferentes países, mas haverá impactos mais drásticos nos países pobres da África, Ásia, América Latina e Caribe”, afirma Priyadarshi Shukla, outro dos investigadores do IPCC, citado no comunicado.
Soluções e limites
Entre outras opções, os especialistas apontam para a urgência de uma produção sustentável de alimentos, uma gestão sustentável das florestas, uma gestão do carbono orgânico do solo, conservação dos ecossistemas, recuperação dos solos, menos desflorestamento e degradação e uma redução das perdas e desperdício alimentar. Sem surpresas. Algumas das soluções podem ter um efeito imediato, outras podem demorar décadas para dar resultados, admitem no relatório.
“O solo deve permanecer produtivo para manter a segurança alimentar à medida que a população aumenta e que os impactos negativos das mudanças climáticas na vegetação crescem. Isso significa que há limites para a contribuição da terra para enfrentar as alterações climáticas, por exemplo, através do cultivo de culturas energéticas e de arborização. Também demora algum tempo até que árvores e solos armazenem carbono de forma eficaz”, refere o comunicado. Os bons resultados, dizem, vão depender de políticas locais adequadas e sistemas de governança.
“A maior parte das opções baseadas na gestão dos solos que não aumentam a competição por terra e quase todas as opções baseadas na gestão da cadeia de valor (por exemplo, escolhas alimentares, perdas reduzidas, redução de desperdício de alimentos) e na gestão de riscos podem contribuir para erradicar a pobreza e eliminar a fome, promovendo a boa saúde e bem-estar, a água, saneamento, ação climática e vida na Terra”, referem os especialistas no relatório.
Especificamente sobre a desertificação os cientistas propõem medidas que, dependendo da disponibilidade de água na região, podem, por exemplo, passar pela construção de “muros verdes” ou “barragens verdes”, em que a plantação de espécies de árvores resilientes pode ajudar a criar barreiras à erosão e melhorar a qualidade do ar. Aproximadamente 500 milhões de pessoas vivem em áreas que estão sofrendo a desertificação e que são mais vulneráveis às alterações climáticas e a fenômenos de seca, ondas de calor e tempestades de poeiras.
É claro que também encontramos no relatório a necessidade de recurso a fontes mais limpas de energia e a obrigatoriedade de pôr a tecnologia ao serviço do clima e da sustentabilidade do planeta. “Existem coisas que já estamos fazendo. Estamos usando tecnologias e boas práticas, mas, de fato, precisamos ampliá-las e transferi-las para locais mais adequados, onde ainda não estão sendo usadas”, diz Panmao Zhai, cientista do IPCC.
Pior do que hoje só o amanhã?
O relatório apresenta uma série de dados a que atribui uma confiança média, alta ou muito alta. São páginas e páginas de danos causados ao planeta, organizados em quatro capítulos com muitas (demasiadas) alíneas que denunciam a degradação e destruição do nosso planeta. Um dos gráficos mais esclarecedores mostra a curva (ascendente) do uso do solo a servir de sombra à mesma trajetória da linha sobre os efeitos das alterações climáticas. O que fazer com estes dados? Mudar – não há alternativa e não há tempo a perder.
O primeiro capítulo é dedicado a “pessoas, solo e clima num mundo em processo de aquecimento”. Entre outros dados que constatam o que já mudou, há uma parte dedicada a pensar o futuro. Para isso, os especialistas apoiam-se em cinco cenários, com mais ou menos exigências de mudança de comportamento ou de adaptação, que, por sua vez, se articulam com vários níveis de mitigação do aquecimento global. “A mudança climática cria tensões adicionais nos solos, exacerbando riscos existentes para a subsistência, a biodiversidade, a saúde humana e dos ecossistemas, infraestruturas e sistemas alimentares. Impactos crescentes no solo são projetados em todos os cenários futuros de emissões de gases com efeito de estufa. Algumas regiões enfrentarão riscos mais elevados, enquanto outras enfrentarão riscos que não estavam previstos. Os riscos que produzirão um efeito em cascata terão impacto em vários sistemas e setores e vão variar entre regiões”, anunciam os especialistas.
Região a região, ninguém parece estar a salvo de uma desgraça. Quase parece que alguém está rogando pragas a todas as regiões do mundo. Se a Ásia e a África se apresentam como as regiões que serão mais afetadas pelo aumento da desertificação, a América do Norte e do Sul, o Sul de África, a região mediterrânea e a Ásia central serão atingidas por incêndios e as regiões tropicais e subtropicais serão as mais vulneráveis ao declínio das colheitas. Nas regiões costeiras, a degradação do solo que vai resultar da elevação do nível do mar e ciclones mais intensos vão pôr vidas em risco. Entre todas as pessoas, são as mulheres, os muito novos, os idosos e os pobres que estão mais expostos ao perigo. “A gestão insustentável dos solos levou a impactos econômicos negativos. A mudança climática deverá exacerbar esses impactos”, avisam.
Mais exemplos: com o aumento do aquecimento global, a frequência e intensidade de cheias deverão aumentar particularmente na região mediterrânea e no Sul de África. Nas regiões tropicais, em cenário de emissões médias e altas de gases com efeito estufa, o aquecimento vai provocar “a emergência de condições climáticas sem precedentes” em meados do século 21. Com os níveis atuais de aquecimento global ficamos perante um “risco moderado” de escassez de água, erosão do solo, perda de vegetação, incêndios, degelo do permafrost, degradação das zonas costeiras e declínio do rendimento das culturas. Com um aumento de 1,5 graus Celsius os riscos passam a ser altos e com dois graus muito altos.
Fenômenos extremos
Em relação à estabilidade no fornecimento de comida as projeções indicam que se encontra ameaçada. Por um lado, os fenômenos extremos vão perturbar as cadeias alimentares, por outro, o aumento de CO2 na atmosfera poderá diminuir a qualidade nutricional das colheitas. Recorrendo uma vez mais aos cenários, os especialistas mencionam o mais provável (nem demasiado otimista, nem demasiado pessimista) para prever um possível aumento do preço médio dos cereais de 7,6% em 2050 por causa das alterações climáticas. Isto, por sua vez, vai levar a um aumento dos preços dos alimentos e a um maior risco de insegurança alimentar e fome. Os mais afetados serão, obviamente, os mais vulneráveis.
Ainda apoiados no cenário mais equilibrado em que a população mundial fica ao redor de 9 bilhões de pessoas, os peritos anunciam que, com um aumento da temperatura de 1,5 graus Celsius, em 2050 teremos 178 milhões de pessoas vulneráveis à escassez de água, enchentes e degradação do habitat. Se o aquecimento chegar aos dois graus Celsius, serão 220 milhões de pessoas e aos três graus serão 277 milhões.
Vamos continuar a ouvir falar nestes dados, previsões e soluções. Este relatório será “um contributo científico essencial para as próximas negociações sobre o clima e o ambiente”, como a Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (COP14) em Nova Deli (Índia) em Setembro e a Conferência da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas em Santiago, Chile, agendada para Dezembro.
O tom é alarmante, mas, pelo menos por enquanto, os cientistas do IPCC ainda deixam espaço para uma ponta de esperança. Se alterarmos o uso que estamos fazendo do solo, podemos ainda mudar muita coisa. Podemos, por exemplo, diminuir a probabilidade, intensidade e duração de fenômenos extremos. As mudanças na gestão e exploração de um pedaço de terra aqui, garantem os especialistas, podem afetar a temperatura e a precipitação numa região num raio de centenas de quilômetros de distância.
O relatório prometia ser um guia de boas práticas para usar o solo da Terra, depois de tantas décadas de abuso. Entre outras conclusões, percebe-se que a Terra pode ser uma chaminé de emissões de CO2 que irão nos sufocar ou um sumidouro de emissões de CO2 que nos serve de pulmão para respirar. Ou de uma forma mais geral: uma parte de um imenso problema ou uma parte da solução. A escolha é nossa, de todos e, sobretudo, dos que têm poder de decisão política. A melhor notícia do relatório será mesmo essa: aparentemente, ainda temos escolha. Até quando?
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