África aberta. Por um continente sem fronteiras

Na África pré-colonial, a hospitalidade podia ser concedida a todas as pessoas, inclusive inimigos. Quando chegavam à terra de outros e desde que fossem em paz, os estrangeiros não eram tratados como inimigos. Tinham amplas possibilidades de se tornarem habitantes e vizinhos, e o direito de permanência temporária era quase universal. Dividir territórios usando fronteiras políticas é uma invenção colonial, um conceito trazido pelos colonizadores europeus. Para o pensador camaronês Achille Mbembe, a próxima fase da descolonização de África será a abolição das fronteiras entre povos herdadas da colonização.  

Na África pré-colonial, a hospitalidade podia ser concedida a todas as pessoas, inclusive inimigos. Quando chegavam à terra de outros e desde que fossem em paz, os estrangeiros não eram tratados como inimigos. Tinham amplas possibilidades de se tornarem habitantes e vizinhos, e o direito de permanência temporária era quase universal. Dividir territórios usando fronteiras políticas é uma invenção colonial, um conceito trazido pelos colonizadores europeus. Para o pensador camaronês Achille Mbembe, a próxima fase da descolonização de África será a abolição das fronteiras entre povos herdadas da colonização.
 
Na África pré-colonial, a hospitalidade podia ser concedida a todas as pessoas, inclusive inimigos. Quando chegavam à terra de outros e desde que fossem em paz, os estrangeiros não eram tratados como inimigos. Tinham amplas possibilidades de se tornarem habitantes e vizinhos, e o direito de permanência temporária era quase universal. Dividir territórios usando fronteiras políticas é uma invenção colonial, um conceito trazido pelos colonizadores europeus. Para o pensador camaronês Achille Mbembe, a próxima fase da descolonização de África será a abolição das fronteiras entre povos herdadas da colonização.   (Foto: Luis Pellegrini)


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 Por: Achille Mbembe (*)

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Fonte: Jornal Mail The Guardian – Johannesburgo

 

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O drama da mobilidade humana pode bem ser o problema mais importante que o mundo enfrenta na primeira metade do século 21. A combinação de um capitalismo cada vez mais voraz com a saturação das comunicações pelas tecnologias digitais levou à aceleração e intensificação das interconexões. Vivemos numa época de interdependência planetária mas, para onde quer que olhemos, o impulso é no sentido do isolacionismo.

Se esta tendência persistir, o mundo de amanhã – e não apenas o mundo africano – será cada vez mais fechado, com toda a espécie de enclaves, becos sem saída e fronteiras inconstantes, movediças e difusas.

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O poder de decidir quem pode se deslocar ou se fixar – onde e como – em breve estará no centro das lutas políticas sobre soberania. É certo que o direito dos cidadãos de outros países atravessarem as fronteiras de um país de acolhimento ainda não foi abolido. Mas, como mostram numerosos acontecimentos, isso se torna cada vez mais dependente de práticas aleatórias e pode ser suspenso ou revogado a qualquer momento e sob qualquer pretexto.

 

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Se as coisas estão atingindo este ponto é porque está tomando forma um novo regime de segurança global. Um regime caracterizado pela externalização, a militarização e a miniaturização das fronteiras. Isso significa uma infinita segmentação e restrição dos direitos e uma expansão quase generalizada das técnicas de localização e vigilância como método privilegiado de prevenção. A sua função será facilitar a mobilidade de determinadas pessoas, proibindo ou recusando a (mobilidade a outras pessoas.

Um tal regime abre caminho a formas inéditas de violência racial dirigida principalmente contra as minorias, os mais desfavorecidos e os já vulneráveis. Uma violência sustentada por novas lógicas de retenção e prisão, de expulsão e deportação.

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Além disso, a mobilidade é cada vez mais definida em termos geopolíticos, militares e de segurança. Em teoria, só aqueles que apresentem o menor perfil de risco podem deslocar-se. Na prática, o cálculo do risco serve principalmente para justificar um tratamento desigual e discriminatório conforme a cor da pele.

Balcanização e isolamento

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À medida que a tendência a favor da balcanização e do isolacionismo se intensifica, a desigual distribuição de poderes para negociar fronteiras em escala global torna se uma característica-chave dos nossos tempos.

No Norte, o racismo anti-imigrantes continua crescendo. Os considerados “não-europeus” ou “não brancos” estão sujeitos a formas abertas ou veladas de violência e discriminação. O próprio racismo foi reformulado a nível de discurso. Diferença e estrangeirismo são agora preconceitos abertamente interpretados como culturais ou como religiosos.

 

 

Globalmente, a tendência é retirar o direito de deslocação ao maior número possível de pessoas, ou sujeitar esse direito a condições draconianas que objetivamente impossibilitem a mobilidade.

Nos casos em que o direito de deslocação tenha sido concedido, esforços similares são desenvolvidos para tornar o direito de permanência o mais precário possível. Neste regime de mobilidade global que lembra o do Apartheid, a África é duplamente penalizada, do exterior e do interior. É difícil encontrar no mundo um país que não considere indesejáveis os migrantes africanos.

Ao mesmo tempo, limitada por centenas de fronteiras internas que tornam os custos da mobilidade altamente proibitivos, a África está encurralada na faixa de tráfego lento da estrada e cada vez se assemelha mais a uma enorme prisão ao ar livre.

Na sua tentativa de conter os fluxos migratórios da África subsaariana, a Europa está financiando os países de origem e de trânsito para que as pessoas que procuram mudar de país não possam partir ou, caso o façam, não consigam atravessar o Mediterrâneo. O objetivo último do Fundo de Emergência da União Europeia para a África, recentemente criado, é cortar qualquer via legal às migrações africanas em direção à Europa.

Em troca de dinheiro, regimes africanos brutais e corruptos estão encarregados de bloquear a saída de potenciais migrantes africanos e de reter os que possam ir à procura de asilo. Muitos foram recrutados como elementos-chaves do sistema de deportação e de regressos forçados, que se tornou um marco da política europeia anti-imigração africana.

 


Controles discriminatórios

De fato, nenhum viajante com um passaporte africano ou pessoa de ascendência africana está hoje livre de buscas e detenções humilhantes na Europa. Muito poucos estão isentos de verificações invasivas e demoradas de identidade nos trens, ônibus e qualquer mio de transporte coletivo, bem como nas autoestradas ou nos postos de controle rodoviário. Muito poucos gozam do direito a uma audiência antes do confinamento no local de verificação ou antes da deportação para seus países de origem. Nas fronteiras e outros postos de controle, estão quase automaticamente entre aqueles que serão sujeitos a um exame detalhado ou cuidadosamente inspecionados. Permanentemente, sob o prisma do perfil racial, estão quase sempre entre aqueles que têm um estatuto proibido ou penalizado.

No próprio continente africano, os governantes africanos pós-coloniais não conseguiram articular um quadro legislativo comum e iniciativas políticas relacionadas com a gestão das fronteiras, a modernização dos registros civis, a liberalização dos vistos ou o tratamento dos cidadãos de outros países e continentes que residem legalmente nos Estados africanos membros.

O fim do domínio colonial não deu início a uma nova era caracterizada pela extensão do direito à liberdade de movimento para todos. Em vez disso, as fronteiras coloniais tornaram-se blindadas e não se verificou qualquer impulso decisivo para a integração regional. Com exceção da Comunidade Econômica da África Ocidental, o direito à mobilidade dentro e fora das fronteiras nacionais e regionais continua a ser um sonho.

Nesta era de alta velocidade, a mobilidade lenta corresponde de forma sistemática à cor da pele e o continente africano está paradoxalmente encurralado numa via de andamento lento.

Mas nem sempre foi este o caso.

Na nossa tentativa de elaborar uma política de migração centrada na África, podem ser contraproducentes as categorias e conceitos importados do léxico ocidental, tais como “interesse nacional”, “riscos”, “ameaças” ou “segurança nacional”. Referem-se a uma filosofia de movimento e a uma filosofia de espaço inteiramente baseada na existência de um inimigo num mundo dominado pela hostilidade. Esta é a razão pela qual, hoje, tradições profundamente arraigadas do anti-humanismo ocidental encontraram a sua expressão mais evidente nas atuais políticas anti-imigração. Estas últimas são usadas como meios para travar uma guerra social em escala global.

 

 

A África pré-colonial pode não ter sido um mundo sem fronteiras. Mas onde barreiras existiam, eram sempre porosas e permeáveis. Como mostram as tradições de comércio de longa distância, a circulação era fundamental na produção de formas culturais, políticas, econômicas e sociais. Sendo o veículo mais importante de transformação e mudança, a mobilidade era o princípio condutor da delimitação e organização do espaço e dos territórios.

Redes de comunicação, caravanas e encruzilhadas eram mais importantes do que fronteiras. 0 que mais importava era o quanto as correntes se cruzavam com outras correntes. Neste regime de interseção flexível e generalizada, um alto grau de mobilidade em todos os estratos da sociedade era também um meio de lidar com a vulnerabilidade e a incerteza.

Antigas tradições de mobilidade

Certamente, as fronteiras políticas definiam alguns indivíduos como membros ou como primeiros a chegar e outros como estranhos ou últimos a chegar. Mas a riqueza nas pessoas sempre venceu a riqueza em coisas e havia sempre outras formas de associação. A norma era construir alianças através do comércio, do casamento ou da religião e incorporar recém chegados, refugiados e requerentes de asilo nas políticas existentes.

A forma Estado era apenas uma das inúmeras formas de governo que as pessoas adotavam. A figura do indivíduo incluía não apenas os vivos mas também os mortos e os não nascidos, humanos e não humanos.

A hospitalidade podia ser concedida a todas as pessoas, inclusive inimigos. Quando chegavam à terra de outros e desde que fossem em paz, os estrangeiros não eram tratados como inimigos. Tinham amplas possibilidades de se tornarem habitantes e vizinhos, e o direito de permanência temporária era quase universal.

Dividir territórios usando fronteiras políticas é uma invenção colonial. Ao instituir uma relação hostil entre a circulação de pessoas e a organização política do espaço, o colonialismo inaugurou uma nova fase na história da mobilidade no continente.

Ao aderir ao modelo “estatocêntrico” de nações territorialmente delimitadas, com fronteiras fechadas e bem guardadas, os Estados africanos pós-coloniais rejeitaram longas tradições de circulação que sempre tinham sido o motor dinâmico de mudança no continente. Ao fazer isso, aderiram ao impulso anti-humanista inerente às filosofias ocidentais de movimento e espaço e voltaram-no contra o seu próprio povo.

Desde então, a entronização do Estado-nação causou danos incalculáveis ao destino de África no mundo. Os custos humanos, econômicos, culturais e intelectuais do regime de fronteiras existente no continente foram enormes. Chegou o momento de suprimi-lo.

África, novo espaço de liberdade

Tornar-se uma vasta área de liberdade de movimentos é sem dúvida o maior desafio que a África enfrenta no século 21. O futuro da África não depende de políticas de imigração restritivas e da militarização de fronteiras.

0 continente deve abrir-se a si próprio. Deve transformar-se num vasto espaço de livre circulação. Esta é a única maneira de se tornar o seu próprio centro num mundo multipolar.

Para que a mobilidade se torne a pedra angular de uma nova agenda pan-africana, precisamos deixar para trás modelos migratórios baseados em conceitos anti-humanistas como o “interesse nacional” e abraçar as nossas velhas tradições de flexibilidade, soberania interligada e segurança coletiva.

 

 

Num continente onde, como resultado da engenharia colonial, as fronteiras do Estado-nação estão fraturadas, e ainda assim os Estados nacionais têm uma capacidade limitada para inspecionar, registrar e localizar pessoas, chegou o momento de os Estados africanos desenvolverem uma genuína política comum de mobilidade, com instrumentos legalmente vinculatórios.

Para alcançar a meta de um continente sem fronteiras, a identificação biométrica e as bases de dados interligadas podem ser inevitáveis. Devemos utilizar métodos de identificação e tecnologias de segurança para gerar uma maior mobilidade no continente, em vez de consolidar o regime de duplo confinamento a que a África se viu reduzida.

Nova fase da descolonização da África

Estamos chegando a um ponto em que, devido à geopolítica dos nossos tempos, potências externas poderão estar em condições de ditar a cada um dos nossos frágeis Estados nacionais os termos e condições em que o nosso povo pode se deslocar, inclusivamente dentro da própria África.

A próxima fase da descolonização da África terá que ver com a concessão da mobilidade a todo s os povos e a reformulação dos termos de adesão num conjunto político e cultural que não se confina ao Estado-nação. No continente, não há nenhum país mais bem colocado para assumir a liderança desta questão do que a África do Sul.

Se isso não for feito, limitar-nos-emos a reforçar as classificações raciais já em vigor no imaginário global e em nome das quais somos constantemente humilhados e despojados de dignidade em quase todas as fronteiras existentes no mundo contemporâneo.

(*) Achille Mbembe, nascido na República de Camarões, é professor e investigador em História e Política no Hits Institute for Social and Economic Research (NISERJ. Professor de História na Universidade de Nitwatersrand, na África do Sul, Achille Mbembe é um dos maiores teóricos do pós-colonialismo na África. Graças aos seus trabalhos sobre a descolonização, Mbembe tornou-se uma das principais vozes do continente africano.

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