A morte dos pequenos jornais. Quando a imprensa local perece, a democracia também acaba
Cerca de 1,8 mil redações foram fechadas nos Estados Unidos desde 2004, deixando muitas comunidades sem serem vistas, sem serem ouvidas e no escuro. O fenômeno na verdade é mundial, e o Brasil está longe de ser exceção. Centenas de jornais e revistas foram extintos em nosso país.
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Palestra de: Chuck Plunkett
Tradução: Claudia Sander. Revisão: Maricene Crus
Nesta palestra apaixonante, o jornalista Chuck Plunkett explica por que ele se rebelou contra seu empregador: para lançar luz sobre a questão crucial de uma indústria ameaçada de extinção. Plunkett defende a imprensa local como parte essencial de uma democracia saudável. Ele fala da situação em seu país, os Estados Unidos. Mas suas reflexões, em essência, servem para todos os outros países. O Brasil na linha de frente.
Tradução integral da palestra de Chuck Plunkett
Sou jornalista há mais de 23 anos, no “Arkansas Democrat-Gazette”, no “Pittsburgh Tribune Review” e mais recentemente no “The Denver Post”.
Em 2003, quando comecei no “The Denver Post”, ele era um dos 10 maiores jornais dos EUA, com uma carteira de assinantes enorme e quase 300 jornalistas. Na época, eu tinha cerca de 30 anos. Todo jornalista ambicioso nessa idade aspira trabalhar para um dos grandes jornais nacionais, como o “The New York Times” ou o “The Wall Street Journal”. Mas fiquei muito impressionado nas minhas primeiras semanas no “The Denver Post” e pensei: “Este vai ser meu jornal, posso fazer uma carreira aqui”.
Bem, sete anos se passaram, fomos vendidos para um fundo de cobertura, o Alden Global Capital. Dentro de alguns anos…
O jornalista norte-americano Chuck Plunkett
Alguns aqui sabem essa história.
Dentro de alguns anos, aquisições feitas pelos donos atuais e anteriores reduziram a redação pela metade. E eu entendi. O princípio básico era que 80% da receita de um jornal vinha de anúncios e classificados. Com o surgimento de gigantes como Google, Facebook e Craigslist, os dólares de publicidades evaporaram. Toda a indústria passava por uma mudança massiva de impressa para digital. A ordem da Alden era ser digital. Tirar proveito de blogs, vídeos e mídias sociais. Eles disseram que, um dia, o dinheiro que ganhássemos on-line compensaria o dinheiro perdido no jornal impresso. Mas esse dia nunca chegou.
Em 2013, ganhamos um Prêmio Pulitzer pela cobertura do massacre no Teatro Aurora. A Alden cortou mais jornalistas. De novo, e de novo, e de novo, e de novo. Fomos forçados a dizer adeus a jornalistas talentosos e dedicados que considerávamos não apenas amigos, mas família. Os que ficaram eram exigidos ao máximo, cobrindo diversos turnos e escrevendo artigos apressadamente. Em uma sala de reuniões sem janelas, em março de 2018, soubemos que mais 30 seriam demitidos. Um jornal que já tivera 300 jornalistas agora teria 70.
Isso não fazia sentido. Tínhamos ganhado diversos Prêmios Pulitzer. Mudamos nosso foco do impresso para o digital, atingimos metas ambiciosas e um e-mail da diretoria alardeava as margens de lucro do “The Denver Post”, anunciadas por experts da indústria como sendo de 20%. Se nossa empresa era tão bem-sucedida e lucrativa, por que nossa redação era reduzida cada vez mais?
Capas do jornal The Denver Post
Eu sabia que o que estava acontecendo no Colorado acontecia no resto do país. Desde 2004, cerca de 1,8 mil redações fecharam. Conhecemos os desertos alimentares, áreas onde as pessoas têm pouca ou nenhuma comida. Agora estamos conhecendo os desertos de notícias. São comunidades, muitas vezes municípios inteiros, com pouca ou nenhuma cobertura jornalística. Para piorar a situação, muitos jornais se tornaram navios fantasmas, fingindo navegar com uma redação, mas na verdade só agrupando anúncios. Cada vez mais redações são vendidas para empresas como a Alden. E, naquela reunião, a intenção deles era muito clara. Colher o que pudessem, jogar fora o que sobrasse.
Então, trabalhando em segredo com um time de oito escritores, preparamos uma reportagem especial para o jornal de domingo sobre a importância da imprensa local.
A rebelião do Denver disparou como um míssil e explodiu como uma bomba de hidrogênio.
E as manchetes se sucederam em todo o país: “Num ato de rebeldia, Denver Post pressiona seu dono a vender o jornal”, “Conselho editorial do Denver Post convoca publicamente o dono do jornal”, “No Denver Post, predadores e super-heróis”.
Claramente, não estávamos sozinhos em nossa revolta. Mas, como era de se esperar, fui forçado a me demitir.
E, um ano depois, nada mudou. O “The Denver Post” tem uns poucos jornalistas que fazem seu melhor, de forma admirável, naquele que um dia foi um grande jornal.
Capas de jornais da imprensa alternativa brasileira
Agora, pelo menos alguns de vocês devem estar pensando: “E daí?” Certo? E daí? Deixe essa indústria moribunda morrer. E eu entendo. Por um lado, a imprensa local está em declínio há tanto tempo, que muitos de vocês nem se lembram como é ter um jornal local de qualidade. Talvez tenham assistido a “Spotlight” ou “O Jornal”, filmes que romantizam o que o jornalismo costumava ser.
Bem, não estou aqui para ser romântico ou nostálgico. Estou aqui para preveni-los que, quando a imprensa local morre, nossa democracia também morre.
E isso deveria preocupá-los, independentemente de serem assinantes. Eis o motivo. Uma democracia é um governo do povo. O povo é a principal fonte de poder e autoridade. Uma redação local forte atua como um espelho. Seus jornalistas veem a comunidade e a refletem. Essas informações conferem poder. Ver, saber, entender… é assim que se tomam boas decisões.
Quando temos uma imprensa local forte, os jornalistas estão presentes em todas as reuniões de conselho da cidade. Acompanham as audiências do governo e do senado. Audiências importantes, mas, vamos combinar, muitas vezes incrivelmente chatas.
Os jornalistas descobrem as falhas e as medidas mal elaboradas e esses projetos de lei não são aprovados porque o público estava bem-informado. Os leitores vão votar conhecendo os prós e os contras por trás de cada proposição porque os jornalistas fizeram o trabalho pesado por eles. Ainda melhor, os pesquisadores descobriram que ler um jornal local pode levar 13% dos não votantes a votar. Treze por cento.
Esse número pode mudar o resultado de muitas eleições. Quando não temos um jornal local forte, os eleitores ficam perdidos nas votações, confusos, tentando fazer a melhor escolha com base em um parágrafo de “juridiquês”. Medidas falhas são aprovadas. Medidas bem-elaboradas, mas altamente técnicas, são rejeitadas. Os eleitores se tornam mais sectários.
Recentemente, no Colorado, na eleição para governador, havia mais candidatos do que em qualquer outra eleição. Em anos anteriores, os jornalistas teriam verificado, escrutinado, checado os fatos, traçado o perfil, debatido cada um dos candidatos no jornal local. “The Denver Post” fez o seu melhor. Mas, no lugar das antigas pesquisas e reportagens rigorosas, o público cada vez mais é deixado a interpretar por si mesmo discursos patrocinados e a propaganda eleitoral. Com o custo das campanhas, a elegibilidade se reduz ao dinheiro. Então, no fim das primárias, os únicos candidatos que restaram eram os mais ricos e mais bem financiados. Muitos candidatos experientes e louváveis não tiveram gás pois, quando a imprensa local enfraquece, até mesmo as eleições mais importantes se reduzem ao poder financeiro.
Alguém se surpreende que nosso novo governador tenha gasto mais de US$ 300 milhões em sua candidatura? Ou que empresários bilionários como Donald Trump e Howard Schultz consigam se apoderar do palco político? Não acho que era isso que os Pais Fundadores tinham em mente ao falar sobre eleições livres e justas.
É exatamente por isso que não podemos depender só dos grandes jornais nacionais, como “The Journal”, “The Times” e “The Post”. Esses jornais são incríveis, e precisamos deles hoje mais do que nunca. Mas eles não têm como cobrir todas as eleições em cada município do país. Não. A redação mais bem equipada para cobrir as eleições locais é a da imprensa local. Se tivermos sorte de ainda existir alguma.
Quando a eleição acaba, uma imprensa local forte continua lá, esperando como um cão de guarda. Quando são observados, os políticos têm menos poder, a polícia se comporta corretamente com as pessoas, mesmo as grandes corporações se comportam melhor.
Esse mecanismo que por gerações nos manteve informados e nos guiou não funciona mais como antes. Vocês sabem bem como se parece o discurso nacional envenenado, como se tornou uma paródia de um debate racional. É isso que acontece quando as redações locais fecham e as comunidades de todo o país deixam de ser vistas e observadas.
Até reconhecermos que o declínio da imprensa local traz sérias consequências para nossa sociedade, essa situação não vai melhorar. Uma redação local com equipe adequada não é lucrativa, e, nessa era de Google e Facebook, elas não vão ser. Se os jornais são vitais para nossa democracia, devemos financiá-los como fatores vitais para nossa democracia.
Não podemos nos manter omissos e deixar nossos cães de guarda serem abatidos. Não podemos deixar mais comunidades desaparecerem na escuridão. É hora de debater uma opção de financiamento público antes que o quarto poder desapareça e, com ele, nosso magnífico experimento democrático. Precisamos muito mais que uma rebelião, é hora de uma revolução.
Obrigado.
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